Dez horas da manhã. O relógio apitou duas vezes antes de Estela abrir os olhos. Na juventude, era chamada de Estelinha pelos amigos e parentes. Hoje, poucos usavam o apelido que tanto lhe era caro há anos. A prova de que o tempo passou. Os cabelos esbranquiçados e as rugas de expressão contrastavam com a jovialidade presente no olhar. “Tens a curiosidade em ti, menina”, dizia o avô quando ela era criança. Costumava observar todos os passos, casos e vidas que se desenrolavam ao seu redor.
Novamente, o despertador se dedicava a acordar Estela. Desativou-o. Sempre fazia o mesmo gesto quando o terceiro apito soava, quinze minutos depois da hora programada. Levantou-se. Estava sol. Caminhou até a janela, que oferecia a chance de olhar o jardim antes de sair de casa. Estava bonito. Verde, limpo e bem cuidado. Josias havia preparado-o com carinho no dia anterior. As poucas nuvens combinavam com a nobreza da área externa.
Naquela área, Estela viveu parte da infância e adolescência. Voltou à casa de seus pais somente depois da morte do casal. Era a herança que os dois deixaram para a filha única. Todas as paredes guardavam histórias da menina, que lhes confidenciara amores e maturidade. Elas, silenciosas, escutavam os detalhes narrados sob lágrimas. Outros, entre risos. Sentia-se sozinha. Os pais trabalhavam fora e pouco tempo tinham para dedicar a ela. A mãe, quando podia, ouvia a menina, mas os compromissos levaram-na a se afastar mais de Estela durante a adolescência. E ela tinha necessidade de compartilhar suas vivências.
Seus retratos se mesclavam à tinta encardida da construção. Os recantos da casa escondiam seus segredos, agora desimportantes. Ninguém quer saber. Nem ela. Todas as primeiras vezes registradas: o beijo no quarto, durante os estudos. A transa na casa ao lado, com o vizinho por quem se apaixonara perdidamente. O amor adolescente que parecia ter se desfeito tão rápido quanto surgiu. “Um chato”, contou a uma amiga. Ela concordou. Em pouco tempo, os dois namoravam. O relacionamento magoou Estela, que percebeu a não simplicidade do amor.
“Por que as pessoas nos enganam, mãe?”, perguntou, em um dia de sol como aquele que se apresentava agora. As duas conversaram no jardim, sentada em uma canga sobre a grama, enquanto faziam um piquenique. Era período de férias de Marta, que aproveitava os dias com filha de 15 anos.
“Porque as pessoas nunca vão agir como você espera, minha criança. Nem você agirá de acordo com o que elas querem. E, assim, a vida se torna uma sucessão de erros e decepções.”
A certeza com que a frase fora pronunciada fez com que as palavras nunca saíssem da cabeça de Estela. Mais de 40 anos se passaram, e aquela tarde continuava pintada na paisagem da janela. O sol inundava o quarto quando a mulher se afastou e seguiu em direção ao guarda-roupa. Ele também era parte de seu passado. Ela vestia uma camisola branca. Abriu a porta e pegou o roupão da mesma cor. Dentro do armário, junto aos perfumes, duas fotografias: uma registrava a formatura simbólica da quarta série; a outra mostrava a adolescente sorrindo entre os pais, em seu aniversário de 15 anos. “Tudo parece ter acontecido nessa idade”, pensou. As principais histórias de sua vida. Depois, tudo seguiu o inacreditável marasmo a que estava adaptada: casa, trabalho, afazeres diários e direitos adquiridos.
O único momento diferente ao que estava acostumada aconteceu quando se apaixonou por Orlando. Era alguns anos mais velho do que ela. A amizade se transformou em interesse dos dois lados. Primeiro, o envolvimento sexual. Depois, os sentimentos vieram à tona. Namoraram e se casaram. Do matrimônio, restaram apenas os conflitos.
“Maldita seja a hora em que te conheci”, gritou o então marido, alternando gritos e mãos na arrumação das malas.
“Maldita seja a hora em que aceitei essa merda de casamento.”
“Maldita seja a hora em que subi àquele altar e concordei com o desperdício dos meus melhores anos.”
Orlando segurou a mala em uma mão e abriu a porta com a outra, proferindo palavras misturadas ao rancor. Nunca mais o viu. Soube, poucos dias depois, que ele retornou para a cidade de origem. Estela não chorou. Nem na despedida e nem ao saber da partida. Nesses anos, não se emocionara com o que a vida mostrava a ela. Era considerada fria pelos poucos com quem convivia. Mas, no íntimo, sabia que sentia de forma diferente. Sem sofrimento e ressentimento. Só saudade. Cada canto de sua alma era um resquício das ausências. E a mulher se sentia grata por todas as experiências.
Desistiu do roupão e da camisola. Trocou-os por um vestido azul turquesa que se estendia até a coxa. “Sim. Estou bonita”, e sorriu. A roupa se assemelhava a uma que ganhara em seu décimo quinto aniversário. A diferença estava no comprimento. Usou-o em diversas ocasiões até que ficasse desbotado. Desde então, manteve-o guardado em uma caixa na parte superior do guarda-roupa. Ele era parte de sua história, de seu contato com o passado. Não poderia jogá-lo fora.
Olhou-se novamente no espelho. Os cabelos estavam bagunçados; o rosto; envelhecido; o sorriso, amarelado. Ao lado de Estela, posicionou-se uma jovem. Usava o vestido azul turquesa. Ambas, mulher e menina, sorriam. Os gestos ensaiados. Encararam-se. Deram-se as mãos e rodopiaram no centro do quarto, sobre o tapete marfim. Dançavam. Os passos levavam-nas da esquerda para a direita. Seguiam o ritmo da canção que ecoava entre quatro paredes. Da direita para a esquerda.
Mulher e menina. Olhos nos olhos. Os traços jovens e velhos em perfeita harmonia. Os vestidos balançavam juntos. Rodopiaram outras vezes até pararem. Estela caminhou para frente do espelho. Era menina. Era adolescente. Era mulher. Um misto de todas as Estelas. Da menina curiosa. Da adolescente inexperiente. Da mulher vivida. Das lágrimas vertidas. Do riso frouxo. Contida em certos momentos. Em outros, alvoroço pela casa agora silenciosa.
“E como está a sua vida?”, perguntou a moça.
“Está tranquila. Sempre aqui, sempre à espera.”
“Sei. Conheço seus passos e caminhos. Do passado ao futuro, ando por eles.”
“Sim, querida. Por essas trilhas, já caminhei.”
Abraçaram-se. Estela abriu novamente o armário. Despiu-se. Escolheu o roupão branco. Vestiu-o e retornou à cama. À menina, sorriu em despedida. Mas ela continuaria pelos cantos, no quarto, com seu vestido azul turquesa a clarear os dias.
Maravilha! Texto e foto! Obrigado.