Fabio Bottrel — Quando Acordei no Mundo das Ideias de Platão

 

Sugestão para escutar enquanto lê: Noturno, Op.9 No.2 – Frédéric Chopin

 

 

 

 

Bottrel 14-08-16

 

 

Quando acordei tudo o que pude ver foi luz, um enorme clarão ofuscou meus olhos e a dúvida se estava cego ofuscou a minha mente, sentia águas calmas com sons de paz acariciando a minha pele por todo o corpo, percebi estar parcialmente imerso, pela textura dos dois ambientes. Metade do meu corpo era acariciado por vento e a outra metade repousava em água, apoiado sobre areia macia com pequenas pedras que não machucavam. O único som a entrar nos meus ouvidos eram as minúsculas ondas da água rasa com a correnteza a levando embora, talvez pelo meu ouvido estar imerso não conseguia escutar nenhum som afora o rio. O ar chegando no meu pulmão é tão puro quanto um mundo verde, inspirei fundo para sentir todo aquele sabor de ar primata. A temperatura tanto da água quanto do clima estava agradável como uma noite de sonhos tranquilos, senti tecidos encostando no meu corpo e notei que estava vestido com algo largo.

Aos poucos minha visão voltou, se é que posso chamar de minha, não sei onde estou e nem o que me pertence. As cores lentamente tomaram forma como uma obra pontilista, houve um fade verde de folhas, fotossínteses azuis. Aos poucos o pontilhismo tornou-se impressionista e os pontos se embaçaram, mas se unificaram, as formas ainda disformes tornaram-se pinceladas de tinta a óleo em tela grossa. Aos poucos as tintas foram se tornando imagens e fixando na fotografia do mundo que eu via: árvores com espessos galhos e folhas, formando uma mata fechada bem delineada em dois lados separados por um rio, onde eu estava imerso. A sensação era tão boa que eu não queria me levantar, nem mesmo me mexer.

Percebi longos fios de cabelos brancos levitando ao meu lado com o vento suave, girei a cabeça um pouco para a esquerda e vi um senhor de cabelos e barba grisalhos olhando para mim, vestia uma manta branca grande e seu aspecto medieval transpassava uma sabedoria milenar. Seu rosto tinha uma fisionomia agradável e não saberia responder se ele estava rindo, seus gestos e olhares eram tão discretos e calmos que aparentavam tudo e ao mesmo tempo nada.

– Olá, Vicente.

– Como sabe meu nome?

– Eu sei de tudo.

Sua voz era doce e grave, aparentava ter me analisado ou estava me esperando acordar por completo para proferir seu cumprimento, havia um esforço da minha mente para não entrar em curto-circuito, tudo estava muito confuso para mim e esse encontro me deixou ainda mais. Quem era o homem que me olhava como se soubesse cada detalhe do meu corpo e vida, como sabe meu nome, de onde me conhece e que história é essa de saber de tudo? Será que a morte, algo tão trágico e violento para nós em vida se transforma em algo tão calmo e maduro?

– Onde estou?

– Descobrirá por si mesmo… onde acha que deveria estar?

Era angustiante ele não responder minhas questões, o meu maior desejo naquele momento era um pouco de norte, levantei das águas rasas e sentei, olhei para o meu corpo envolto na mesma manta branca que o homem ao lado vestia. Será ele um morto, tal como eu? Um morto antigo talvez, com tempo suficiente para amadurecer na morte como precisamos para amadurecer na vida. A manta molhada rapidamente secou-se e me impressionei, somente a parte de baixo que continuou imersa no rio estava molhada, tal como minhas pernas. Ali, percebi, as leis naturais a reger aquele mundo não eram as mesmas leis que regem a Terra.

Continuava a pensar na pergunta do homem ao lado, “Onde acha que deveria estar?”, mas a minha cabeça estava um caos. Será que digo – devo estar onde os humanos de cada cultura acham que deveriam estar? Céu, inferno, purgatório, reencarnando, transformando, energizando etc. Tudo o que eu via não se assemelhava a nada do que a minha cultura me permitiu conhecer em vida, por isso não conseguia distinguir, a não ser que o ser ao meu lado fosse divino.

– Por que não responde as minhas perguntas?

– Você deseja que eu te dê respostas ou te torne a resposta?

Cada frase proferida por ele me demandava um tempo de reflexão.

-Acostume-se, Vicente, a única resposta da vida é a morte. E aqui você é a própria pergunta e sua própria resposta.

– Então… estou morto?

– Você acabou de nascer.

Não entendi o seu discurso e ele percebeu, formulou uma explicativa breve:

– Não se nasce para viver, se vive para nascer.

– Quem é você? – Perguntei.

Aquele homem estava confundindo a minha mente ainda mais com toda essa filosofia estranha de vida e morte, com toda a tranquilidade ele desviou o olhar de mim e olhou para o céu sem sol. Eu não entendia como havia tanta luz se não havia sol, a claridade aparentava vir de todos os cantos e logo reparei não ter sombras também, somente o som da natureza sem nenhum animal ou indício de um. Era estranho, pois em toda mata fechada havia uma orquestra de cantos dos pássaros e animais que nela habitam. Naquela, só havia luz.

Todos os meus pensamentos divagantes e toda a minha atenção ao ambiente fora cortada abruptamente quando o homem ao lado proferiu suas palavras:

– Eu sou você.

 

Trecho do livro Platônico quando Vicente acorda no Mundo das Ideias, lançado ontem na IX Bienal do Livro de Campos.

 

Sobremesa musical, após a degustar o texto: La Vieen Rose – letra de Edith Piaf interpretada por Cynthia M.

 

 

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