Vanessa Henriques — Crack: a droga dos excluídos

 

(Divulgação)

 

 

Nos últimos anos, notícias sobre o uso de crack no Brasil ganharam notável destaque nos principais meios de comunicação. Muito se falou a respeito de uma suposta epidemia desta droga, cuja potência seria tão destruidora que seria capaz de não apenas criar uma dependência instantânea, mas como também levaria o seu usuário a um óbito inevitável em poucos meses. Na cidade de São Paulo, a formação de uma cena de uso de grandes proporções, que logo ganhou o apelido de “cracolândia”, potencializou ainda mais os discursos alarmantes a respeito do poder arrasador dessa substância.

Os usuários de crack – não raras vezes designados como “cracudos”, “zumbis” ou “mortos-vivos” – são representados pelos noticiários, grande parte das vezes, como seres subtraídos de sua humanidade: a droga teria roubado desses indivíduos parte de sua energia vital, transformando-os em criaturas movidas pelo único desejo de reinstalar, incessantemente, a intoxicação causada pelo estimulante. Desta forma, consolidou-se no imaginário social a noção de que se deveria imputar apenas aos efeitos físico-químicos proporcionados pela substância a responsabilidade pelo surgimento das “cracolândias”.

Neste contexto, políticos e acadêmicos uniram esforços para compreender este fenômeno social. Era preciso afastar as narrativas construídas pelo senso comum e pelo sensacionalismo midiático a respeito do tema, para que então fosse possível empreender a tarefa de descrever e analisar o fenômeno a partir de um ponto de vista amparado pelo conhecimento científico.

Em 2014, uma pesquisa realizada em parceria entre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) mostrou quem e quantos são os usuários de crack no Brasil[1]. Foi detectado que 8 em cada 10 usuários regulares são negros e não chegaram ao ensino médio. Além disso, outros marcadores de vulnerabilidade social foram encontrados: 40% se encontravam em situação de rua e 49% tiveram passagem pelo sistema prisional. Em grande medida, esses indicadores de vulnerabilidade social precediam o começo do envolvimento com o crack. Além disso, foi estimado que 0,8% da população adulta brasileira faça uso regular de crack; número preocupante, mas que é de oito a quinze vezes menor do que o número de dependentes de álcool no Brasil, por exemplo.

Dando continuidade aos achados da pesquisa realizada pela Fiocruz, outra pesquisa[2], capitaneada pelo sociólogo Jessé Souza, da qual tive o prazer de participar, e que contou com as valiosas contribuições de um grupo de sociólogos, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, pôde investigar mais profundamente como o uso abusivo de crack e suas propriedades físico-químicas, junto ao processo de exclusão social, formam um ciclo vicioso que se retroalimenta; o cotidiano intragável vivenciado por uma grande massa de indivíduos conduz a um desejo de autodestruição que se materializa no abuso de crack e que, por sua vez, só faz aumentar o desprezo social e a degradação subjetiva e objetiva a que esses indivíduos estão sujeitos.

Além de termos entrevistado usuários de crack que faziam uso da substância há mais de 20 anos – o que comprova que o crack não mata necessariamente em poucos meses – percebemos diferenças significativas nos padrões de uso de usuários pertencentes a diferentes classes sociais. Os indivíduos mais atingidos pela marginalização social e sua consequente privação de recursos, correm mais riscos de serem mais afetados pelos efeitos físico-químicos destrutivos proporcionados pelo uso abusivo do crack. Durante a pesquisa, tivemos acesso a indivíduos pertencentes à classe média que conseguiam controlar o uso de crack graças ao acesso a recursos econômicos e afetivos que proviam sustentação institucional e psicológica, o que impedia que o uso de crack se tornasse o elemento central e totalizante de suas vidas, como acontece com muitos dos usuários que vão morar nas “cracolândias” e tem seus laços familiares completamente esgarçados.

Neste sentido, pudemos concluir que qualquer política pública que se pretenda efetiva no enfrentamento do problema do crack, deve aliar o tratamento químico à oferta de serviços básicos que atenuem a “patologia social” subjacente ao uso abusivo de crack enquanto um fenômeno socialmente expressivo. O programa “De Braços Abertos”, criado pelo governo Haddad, foi exemplar nesse sentido, obtendo reconhecimento internacional e resultados bastante positivos em outra pesquisa recentemente realizada[3]. No entanto, o prefeito Dória já sinalizou que o programa ou será extinto ou sofrerá mudanças significativas em seu projeto original. Aguardemos, então, os próximos capítulos.

 

[1] https://www.icict.fiocruz.br/content/livro-digital-da-pesquisa-nacional-sobre-o-uso-de-crack-%C3%A9-lan%C3%A7ado

 

[2] http://crres.ufes.br/conteudo/lan%C3%A7amento-da-pesquisa-crack-e-exclus%C3%A3o-social

 

[3] http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2016/12/Pesquisa-De-Bra%C3%A7os-Abertos-1-2.pdf

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Sandra Santos

    Disse tudo

    1. leonardo

      é verdade! Disse tudo!

  2. leonardo

    é verdade! Disse tudo!

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