Sugestão para escutar enquanto lê: “Choros No 5 “Alma Brasiliera” (Villa-Lobos) Yo-YoMa’sBrazil, Live Concert”
Sócrates outrora disse: a vida sem reflexão não merece ser vivida. Complementaria, esse mero autor que vos escreve, que sem a reflexão sobre si mesmo, a justiça seria inalcançável. Desde cedo compreendi, pelo ofício da escrita, qualquer atividade que demanda do indivíduo o autoconhecimento, este, de uma maneira geral, está descobrindo para todos nós. Sabendo de suas necessidades e, assim, da sociedade, tem-se o parâmetro de justiça: desenvolvimento da educação, assistência médica, segurança, liberdade etc. e toda ação a considerar justa, seria um ajuste nessas condições. Diante de tais circunstâncias e percepções cabe-nos a pergunta: por que vivemos numa sociedade injusta? O que nos torna tão impotentes?
O Direito, força que emana da vida coletiva, alma da sociedade suposta a nos tornar potentes e justos, diante de tais desajustes e estatísticas de classes punidas, não serviria como fiador de grupos dominantes a desequilibrar essa balança tão infame? Como Pascal já afirmava, a justiça sem força é impotência, a força sem justiça é tirânica. Talvez a tirania hoje esteja arraigada numa estrutura social que force caminhos discrepantes entre indivíduos tão próximos geograficamente, cujos discernimentos mais escassos não percebem, que na curta distância a separá-los há um abismo de anos-luz. Não é onde há pobreza que nasce a violência, mas onde permeia a desigualdade e injustiça. Quem sabe a justiça, de fato, seja o triunfo dos fracos.
Talvez Ferreira Gullar tenha sentido essa impotência ao escrever o poema O açúcar, no conforto punitivo decada gole de café a adoçar sobre seus lábios o inferno trazido para a consciência:
“O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.”
Samuel Richardson, famoso escritor inglês cujas obras epistolares germinaram no século XVIII e contribuíram, tanto quanto os romances de Rousseau, num novo florescer da mentalidade à época que ecoaria as primeiras vozes dos Direitos Humanos, disse em frase curta e imponente: as leis não foram feitas para o homem honrado. Penso então, se foram feitas por aqueles que adoçaram seu café na manhã de Ipanema, com suas honras intactas bem abaixo da bunda acolchoada pelo sofá.