Fabio Bottrel — O que é uma sociedade justa?

 

Sugestão para escutar enquanto lê: “Choros No 5 “Alma Brasiliera” (Villa-Lobos) Yo-YoMa’sBrazil, Live Concert”

 

 

 

 

 

 

Sócrates outrora disse: a vida sem reflexão não merece ser vivida. Complementaria, esse mero autor que vos escreve, que sem a reflexão sobre si mesmo, a justiça seria inalcançável. Desde cedo compreendi, pelo ofício da escrita, qualquer atividade que demanda do indivíduo o autoconhecimento, este, de uma maneira geral, está descobrindo para todos nós. Sabendo de suas necessidades e, assim, da sociedade, tem-se o parâmetro de justiça: desenvolvimento da educação, assistência médica, segurança, liberdade etc. e toda ação a considerar justa, seria um ajuste nessas condições. Diante de tais circunstâncias e percepções cabe-nos a pergunta: por que vivemos numa sociedade injusta? O que nos torna tão impotentes?

O Direito, força que emana da vida coletiva, alma da sociedade suposta a nos tornar potentes e justos, diante de tais desajustes e estatísticas de classes punidas, não serviria como fiador de grupos dominantes a desequilibrar essa balança tão infame? Como Pascal já afirmava, a justiça sem força é impotência, a força sem justiça é tirânica. Talvez a tirania hoje esteja arraigada numa estrutura social que force caminhos discrepantes entre indivíduos tão próximos geograficamente, cujos discernimentos mais escassos não percebem, que na curta distância a separá-los há um abismo de anos-luz. Não é onde há pobreza que nasce a violência, mas onde permeia a desigualdade e injustiça. Quem sabe a justiça, de fato, seja o triunfo dos fracos.

Talvez Ferreira Gullar tenha sentido essa impotência ao escrever o poema O açúcar, no conforto punitivo decada gole de café a adoçar sobre seus lábios o inferno trazido para a consciência:

 

“O branco açúcar que adoçará meu café

nesta manhã de Ipanema

não foi produzido por mim

nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

 

Vejo-o puro

e afável ao paladar

como beijo de moça, água

na pele, flor

que se dissolve na boca. Mas este açúcar

não foi feito por mim.

 

Este açúcar veio

da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.

Este açúcar veio

de uma usina de açúcar em Pernambuco

ou no Estado do Rio

e tampouco o fez o dono da usina.

 

Este açúcar era cana

e veio dos canaviais extensos

que não nascem por acaso

no regaço do vale.

 

Em lugares distantes, onde não há hospital

nem escola,

homens que não sabem ler e morrem de fome

aos 27 anos

plantaram e colheram a cana

que viraria açúcar.

 

Em usinas escuras,

homens de vida amarga

e dura

produziram este açúcar

branco e puro

com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.”

 

Samuel Richardson, famoso escritor inglês cujas obras epistolares germinaram no século XVIII e contribuíram, tanto quanto os romances de Rousseau, num novo florescer da mentalidade à época que ecoaria as primeiras vozes dos Direitos Humanos, disse em frase curta e imponente: as leis não foram feitas para o homem honrado. Penso então, se foram feitas por aqueles que adoçaram seu café na manhã de Ipanema, com suas honras intactas bem abaixo da bunda acolchoada pelo sofá.

 

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