Manuela Cordeiro — Moradas

 

 

 

Tinha aberto a porta da sacada da frente da casa da avó e se debruçado. Lembrava quando era criança de sentar no mármore frio do parapeito, junto com a sensação de liberdade que vinha ao somente mudar a perspectiva do olhar. E ver, do alto, a rosa vermelha do jardim que tanto admirava.

Contemplava pela porta de vidro da frente da casa o cenário da vida pacata da roça. O cavalo que gostava de chamar de seu, o pequeno aglomerado de árvores. Sentia-se extremamente feliz com o cheiro da terra molhada e os limites serem traçados só com arame farpado. Ao fundo, o pé de ingá e o balanço de criança sempre afagavam suas tardes.

Ao receber as chaves da quitinete, saberia que muitas outras portas serão abertas. Mesmo sem divisão nenhuma no espaço, conseguia organizar os seus sonhos entre a mesa de estudos, o lugar de dormir e a geladeira emprestada. O cheiro da tinta barata recém aplicada não se comparava ao alto preço da novidade de morar sozinha.

Gostava mesmo do burburinho. Abria a porta de entrada do prédio antigo, estilo português para adentrar um pouco a vida dos outros, o aroma do alho fritando para o almoço. Depois dos três lances de escada, ficava um pouco atordoada com a divisão esquisita dos espaços do apartamento, mas adorava a possibilidade de ter um cantinho na metrópole.

O apartamento não era tão grande, mas talvez a maior viagem de sua vida tenha mudado tudo de perspectiva. Tratou de juntar as malas no quarto que seria seu, com mobília nova, estrear a roupa de cama e apagou. Ao acordar, olhou ainda sonolenta para o pátio e se surpreendeu com a neve. Parecia um quadro emoldurado pela janela hermeticamente fechada por conta do frio. Branco e sereno.

A casa estalava de nova. Em seus planos de vida, fazia parte aquele momento de começar absolutamente do zero e imprimir sua personalidade a um espaço. Se orgulhava de cuidar imaculadamente da mesa de vidro, dos moveis com os tons corretos. Era como se vangloriava de encaminhar a sua vida. Até que os copos começaram a quebrar.

Nos sonhos, as casas tinham grandes corredores com inúmeros armários. Cada pequeno compartimento poderia revelar um segredo, uma pequena lembrança. As casas também geralmente eram perto de água e tinham vários andares. Um empilhar de coisas, fluxos e memórias.

Eram casas muito engraçadas. Tinham teto, tinham coisas, abrigavam sonhos e choros. Ao longo do tempo, percebeu que deveriam ser cuidadas com grande esmero, para que pudesse sentir amparada. Em cada espaço, podia limpar o espelho aos poucos, deixando cada vez mais nítida sua própria imagem. E se perguntava, olhando nos seus olhos: “Quantas casas para ensinar ser o seu coração sua verdadeira morada”.

 

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