O realejo tocava uma valsa antiga na esquina sobre a calçada. O tripé montado no concreto manchado por uma fina camada de lodo parecia sem firmeza com suas marcas de ferrugem e tinta gasta. As bases de borracha preta comida deslizavam na umidade prestes a cair. Os movimento de cordas e fole, um mecanismo já antigo e gasto, faziam sair o som grave e melancólico misturado com ruído de engrenagens oxidadas, uma combinação de balada de amor imperfeito com ranhuras metálicas ao fundo.
As pessoas paravam e rodeavam apreciando aquele espetáculo soturno, atraídas por um tipo negativo de curiosidade. O ritmo não causava estranheza aos ouvidos e alguns transeuntes ousavam dizer já tê-las ouvidas nos bailes de roça há muitos e muitos anos. Havia quem contasse detalhes e desse palpites quanto ao nome de seu compositor, um dito cujo que percorria o Nordeste com o acordeon nas costas.
Um senhor de cara enrugada, de linhas desenhadas a navalha, girava a manivela com seu braço frágil, dando origem à movimentação da máquina e produzindo a música. Saiba seu futuro por apenas dois reais, leia apenas quando chegar em casa, dizia um cartaz afixado à lateral de madeira corroída pelos cupins do realejo.
Sobre uma pequena bancada, atado por uma corrente, um papagaio mexia o pescoço ao ritmo da valsa, balançando de quando em vez as patas. Tomada de curiosidade e com sorriso divertido nos lábios, Clarice, que passava distraidamente, se deixou hipnotizar pelo som e assistiu pasma à apresentação da música e da ave esverdeada. Impressionada pelo exotismo e com desejo de participar daquela experiência inusitada, sacou uma nota e entregou ao velho. Ele deu algumas batidas com os nós dos dedos contra a madeira, sonorizando uma espécie de código, e o papagaio abaixou para bicar um pequeno envelope branco com um lacre dourado e os dizeres ratificando o “Só abra em casa” impresso, para em seguida entregá-lo. Pôs o papel dentro da bolsa, enviou um pequeno sorriso ao velho, que não retribuiu, e saiu, desejosa de ver o que o destino lhe reservaria.
O que deveria se tratar de simples brincadeira, algo de cunho altamente jocoso com o qual se deparara andando pela rua sem qualquer tipo de pretensão de seriedade (não haveria de acreditar numa simples previsão do futuro feita por um papagaio dançante bicando pedaços de papel escritos à mão sabe-se lá por quem) acabou lhe causando forte impacto. Abriu o envelope, viu a mensagem e um misto de agonia e raiva sucedeu; seus olhos esmaeceram e perderam repentinamente o brilho. Emburrou a cara e ficou recostada à janela pelo resto do dia, condoendo-se internamente e regurgitando a mensagem martelante em sua cabeça. Não conseguia simplesmente ignorar aquela predição maliciosa e para aliviar a tensão tamborilava furiosamente os dedos.
Everaldo olhou-a e notou com estava estranha. Em um lampejo de interesse perguntou o que havia ocorrido. Acostumara-se com suas crises, sua comiseração, seu pedido de piedade por si própria, porém nunca a vira com raiva; achava inclusive que fosse incapaz de ter este sentimento. Buscando confortá-la, dirigiu-lhe a palavra, coisa que raramente fazia, e ela rosnou um xingamento, levantou irritada e saiu de casa. Ele não entendeu nada e ficou a fitar o infinito tentando achar nele alguma resposta.
Caminhando pelas ruas, o papel não saía de sua cabeça. Tudo que ocorria indubitavelmente a levava a crer que sua vida não valia nada e mais e mais sentia esta confirmação. Parecia tratar-se de uma verdade inconveniente, quando lhe dizem algo que você é simplesmente incapaz de admitir, mas se vê diante da obviedade e simplesmente não pode negar. Era absurdo demais para qualquer ser humano admitir, ver real aquilo que tem de mais escondido em si, aquela verdade que nunca põe para fora, os segredos íntimos jamais revelados, aquilo que é preferível esquecer; Clarice viu-se com este lado exposto, atingida no âmago. Toda a verdade que se recusava a enxergar sobre si mesma cuspida em sua cara e da pior forma possível por alguém que não conhecia.
Talvez fosse uma simples brincadeira de mau gosto, algo arranjado para simplesmente incomodá-la. Rodou pelas ruas à procura do velho do realejo. Não estava mais no local onde se encontrava pela manhã. Desaparecera e nem as marcas do tripé permaneciam na camada de lodo, já apagadas pelos passos. Perguntou às pessoas próximas e ninguém lembrava que ele estivera ali. Realejo, o que é isto? Não, não vi nada. Aqui, com um papagaio? Você é louca? Ninguém viu. Ninguém sabia. Ninguém lembrava. Uma figura de traços tão singulares manipulando um aparelho completamento fora de uso em uma tradição de oráculos esquecida passou completamente despercebida. Todos comentavam durante a manhã e reparavam na estranheza da música emitida pelo aparelho. Agora nada.
Desesperou-se no meio da rua. Terá sido um sonho? Uma simples mensagem? Havia pago dois reais a ele com absoluta certeza. Ouviu o soar melancólico fundido com as engrenagens emperradas, estava claro em sua mente. Não se tratava de uma mera ilusão. Tudo parecia ser completamente real. Não fantasiou a música, o papagaio, o velho ou a mensagem. O que ocorreu? Aonde estava o velho? Qual significado disso tudo?
Clarice saiu andando repleta de confusões em sua mente. Teve momentaneamente algumas lembranças de infância, quando se perdia em meio a indagações diversas sobre várias coisas ao mesmo tempo. Um presságio de seu futuro. Mais parecia o presente. Cenário turvo. Sentiu um mal-estar no meio da rua. Correu a uma lixeira e vomitou. Os passantes se assustaram, um guarda veio perguntar se está tudo bem, ela disse que sim enquanto ainda cuspia os restos de caldo amarronzado com gosto de bile e limpava a boca com os dedos. Saiu andando envergonhada procurando algum canto para se esconder. Qual será seu futuro? Algo explicado em um pedaço de papel? Clarice sempre tentou achar explicação para tudo. Queria que tudo fizesse sentido. Desde a infância. Perguntava sobre as coisas ao redor, a lógica envolvendo cada processo do mundo captado pelos seus sentidos. Buscava um senso coerente para tentar entender. Qual o sentido do papel? Precisava haver. Qual a lógica da mensagem e do velho que tocava o realejo?
Tão sem sentido. Reles brincadeira. Não. Havia sentido. O que aquilo queria dizer? Seu pequeno momento capaz de destruir suas perspectivas de vida. Pedras rolando. Ou não haveria sentido algum e tudo seria mera obra do acaso? Assim como a origem do universo, do Big Bang à bomba de nêutrons; não havia coerência em nada daquilo que entendia como existência.
Clarice correu para a beirada do rio e vomitou. Os restos descerem junto com as águas. Permaneceu durante algum tempo. Ouvia o barulho do rio, as lágrimas desciam de seus olhos e murmurava baixinho consigo mesma o quanto odiava a própria vida. Perambulou desnorteada pelo resto do dia. As imagens distorciam em seus olhos. Estava perdida na cidade onde sempre morou. as ruas entortavam, sentia-se tonta, cambaleava pelas ruas, deixou-se cair no meio-fio, esforçou-se para permanecer em pé, circulou sem rumo até se cansar e voltar para casa.
Ao ver Everaldo, jogou-se aos seus braços em busca de amparo. Deixou todas as lágrimas saírem e reclamou de como sua vida era horrível. Ele a levou à cama e deu um remédio para dormir. Ficou sem entender porque ela estava deste jeito. Sobre a mesinha da sala havia um envelope que ele não tinha reparado. Talvez tivesse alguma ligação. Pensou que fosse alguma carta com notícias negativas, apesar de não haver remetente. Pegou o envelope e abriu. Lá dentro havia um papel em branco.
Narrativa perfeita que nos leva a desenrolar uma histórica romântica com realejo. Mas se segue ao impacto de um desvario de uma mulher insana… “Buscava um senso coerente para tentar entender. Qual o sentido do papel? Precisava haver. Qual a lógica da mensagem e do velho que tocava o realejo?” A pp Clarice perdida de si mesma em suas fantasias fantasmagóricas era uma mulher alienada.