A problemática do narrar
Por Sérgio Arruda de Moura
A estratégia de criação de um personagem que sai em busca de uma história pra contar guarda sempre muitas surpresas. Em geral, ele narra a história em primeira pessoa, mas nem sempre. O ganho mais notório de romances que vão em busca de uma poética desta natureza é a inelutável inserção do leitor na trama, a partir de fora, evidentemente. Lembro-me de vários romances, mas não é o caso discuti-los agora, mas lá para o final, se for relevante, pode ser. Ocupo-me agora do romance A inocência dos mortos (2024), do romancista, dramaturgo e poeta Adriano Moura.
Trata-se de um romance que se enovela na sua própria criação. Tem início um pouco antes de quando o protagonista chega a Campos para rever a família depois de muito tempo afastado da cidade. São tempos de crise, culminados pela pandemia recente. Logo, logo, depois de algumas lembranças que lhe tomam de assalto, fica sabendo da morte de um amigo de adolescência, que havia se transformado de Gilberto em Esther. Sua morte é atravessada de suspeita de crime de transfobia, e o protagonista Antônio Prustiano resolve investigar por conta própria, depois que lhe chega às mãos o relato por escrito de toda uma vida, o diário de Esther.
Pronto. Aí está o confronto de textos necessários para se urdir uma trama que retomará a própria trama nacional dos últimos 40 anos da nossa história política, principalmente política, com os eventos mais importantes que fez o Brasil transparecer o país que é hoje e que sempre foi: intolerante, abertamente racista, injusto, preconceituoso, homofóbico. Todo esse corolário de horror afeta os personagens de diversas maneiras e, obviamente, este é um dos efeitos da leitura e um dos trunfos d’A inocência dos mortos.
Eu poderia dizer que aí está um dos livros em trânsito no romance, precisamente o diário de Esther, testemunha do que de pior alguém tão estigmatizado pôde vivenciar, sua própria história, documento a partir do qual o protagonista Antônio Prustiano investiga tanto um assassinato transfóbico quanto os sinais da transformação do amigo e o modo como foi afetado pela história, tudo enraizado nas memórias afetivas que saltam das páginas.
Não podemos relevar o fato de que o protagonista é também o escritor que validará os fatos com intenções de ficcionalizá-los, tendo antes que anotar tudo e depois estruturar. É nesses termos que considero o metarromance um antirromance por ser um projeto em aberto e exigir uma contrapartida extra do leitor.
No caso de A inocência dos mortos, todo o trajeto romanesco funciona como um rol de anotações para um romance, que ele tem intenção de escrever, intenção que nasceu precisamente dos fatos que encontrou com seu retorno a Campos e a inevitável afloração de nomes, episódios, lugares, cheiros — memórias. A esse respeito, é bem suspeito o nome do personagem narrador, Antônio Prustiano — ou bem Proust-iano — revelador do aspecto central da trama, como o signo máximo do ato de reaver a memória a partir signos insuspeitos, tais como o cheiro e o gosto que exala de uma madeleine e uma xícara de chá, ah, desculpem, de uma broa de milho e uma xícara de café…
Também o traçado da cidade importa porque participa da trama principalmente nos endereços dados como campo de atuação e da vida pregressa dos personagens, e assim, a memória da cidade vai se estruturando e dando forma às simbologias necessárias à sustentação da narrativa, além de fornecer a Campos o status de cidade literária.
Tudo isso é muito importante e do mais alto interesse para a narrativa romanesca não fosse o dado de linguagem que se sobressai a todos esses expedientes: o ato em si de ficcionalizar, quer dizer, de fingir, que Adriano Moura conduz com mão firme, apuro, economia e elegância. O último capítulo nesse aspecto é mais que revelador do que pode e do que quer a linguagem, quando se descortina a farsa e faz o leitor exclamar: Ah, não era nada daquilo, mas outra coisa e a mesma! Mas desde sempre havia pistas encobertas sobre o processo: um texto compondo a orelha assinado por um tal Gael Fernandes, jornalista, editor, agente e amigo do protagonista-narrador Antônio Prustiano, que é nomeado na trama pelo protagonista. Também temos um certo Cláudio do Karmo Abdias, que assina um quase prefácio, o que joga ainda mais lenha na fogueira das ficcionalidades em jogo.
A trama envolve o leitor nas suas feridas participantes da história recente do Brasil, principalmente se este tiver mais de 40 anos de idade, e, se não tanto, algo lhe tocará na trama que replicará a chamada vida real, que é a luta dos pobres desta terra, dos estigmatizados pela cor, pela orientação sexual, pelas convicções políticas, principalmente as de classe, palco de tantas incompreensões e de conflitos personalistas e pouquíssimo cidadãs.
O romance, assim, se encaixa no vazio ficcional observado desde sempre dentro do conjunto da literatura contemporânea, que escanteou assombrosamente a temática racial a partir do ponto de vista da escrita do próprio autor negro. Outras questões, da mesma forma, como as de gênero, hoje um mosaico formidável ainda em processo de catalogação — e aceitação — com o massacre de que vem sendo vítima, sem que nada ou quase nada se faça para se interromper o ciclo de horror.
Neste e em muitos outros sentidos, é para ser celebrada a publicação do romance A inocência dos mortos, de um autor que vem se dividindo — para somar — entre a inquietude dos três gêneros literários, colaborando com a visibilidade de temáticas mais do que necessárias, urgentes, e ainda mais pela via da literatura.