Na semana passada, o Ministério Público da Bahia recomendou à banda de axé “É o Tchan!” que parasse de usar os termos “Inocentes” e “Ordinárias” para indicar os banheiros masculinos e femininos em seus shows. Atuando num estado em que nada mais resta a fazer pela educação, saúde e contra a violência, finalmente os outrora ociosos senhores doutores promotores parecem ter encontrado uma ocupação útil para seus contracheques de milhares e milhares de reais. Após questionamentos nas redes sociais, o MP-BA divulgou nota reafirmando sua convicção no enfrentamento de “grupos sociais oprimidos”.
Obviamente, essa ação partiu de pessoas que jamais foram a uma micareta ou saberiam que, na verdade, apenas uma minoria privilegiada consegue acesso aos banheiros. Dada a escassez de latrinas nesses eventos, a maioria dos necessitados acaba usando muros, árvores e o que mais oferecer abrigo aos caprichos fisiológicos potencializados pelo álcool, um fenômeno socio-biológico que cria uma legião de “mijões”, uma alcunha muito mais depreciativa. Desta forma, podemos concluir que o MP-BA prestaria um serviço muito maior aos oprimidos se militasse por mais inocentes e ordinárias.
A agenda dos tolerantes, a cada avanço, trata de estabelecer novos paradigmas que devem ser aceitos por todos. O que outrora seria celebrado como uma onda de liberação e quebra de padrões comportamentais, hoje recebe o veredicto de objetificação da mulher no tribunal progressista. Se os militantes decidiram que o É o Tchan! hoje equivale a um veículo de “microagressões” e opressão, assim o é a partir de agora.
É inescapável a comparação com as disputas fratricidas que sempre ocorreram no núcleo de poder de países totalitários. A cada etapa superada na revolução, antigos aliados tornavam-se descartáveis e, caso não louvassem recorrentemente a supremacia do líder e de suas de suas decisões, com muita sorte poderiam desejar uma vaga num campo de trabalhos forçados
Fato comum a diversas outras revoluções, também a revolução cultural que persegue o politicamente correto já apresenta como frutos o aprofundamento das contradições que buscava combater. Textos que visam estipular o “lugar do branco”, “o lugar do macho”, “o lugar do heteroessexual” na sociedade, numa segregação ao inverso, aparecem em profusão no debate. O combate à antiga moralidade dá origem a uma nova conduta padrão, em que a intolerância, em muitos casos, apenas muda de mão[1], num giro 180°.
Enquanto inocentes confiam na capacidade da política e do discurso de transformar a sociedade num paraíso na terra em que qualquer forma de miséria moral ou material seja abolida, os ordinários em busca de poder e prestígio exibem suas garras e se valem de papéis institucionais para colocar em prática a agenda comum entre eles.
O que emerge no lugar do antigo paradigma alegadamente opressor é um novo moralismo, voraz por classificar e rotular todas as coisas sem que haja uma análise do que se trata cada coisa. Pouco importa que naquele show de axé estejam somente pessoas que lá foram por livre e espontânea vontade ou que as expressões gravadas numa propriedade privada sejam apenas uma brincadeira já tradicional por parte dos membros de um grupo – uma associação privada e livre entre indivíduos. Se o figurino da objetificação coube ao modelo, que sejam aplicadas as sanções cabíveis.
Na atual era Inquisição Politicamente Correta, ‘Cumpadi’ Washington confiou demais no pioneirismo do seu grupo. Não importa mais que descer na boquinha da garrafa e os shorts Sexy Machine tenham feito muito mais pela liberdade sexual que centenas de trabalhos acadêmicos de humanas. Misturar Brasil com Egito, e diversas outras tentativas de apropriação cultural jamais passariam ao largo dos censores modernos. Sabe de nada, inocente!
[1] Como exemplos:
“Meu filho deve ser amigo de pessoas brancas?” (aqui).
“Quanto de liberdade de expressão é demais?” (aqui).
“O que é ‘lugar de fala’ e como ele é aplicado no debate público” (aqui).
“Como foi criada a heterossexualidade como a conhecemos hoje”. (aqui).
“Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana” (aqui).