Gustavo Alejandro Oviedo — Intervenção na hipocrisia

 

 

 

A imagem acima foi extraída de um vídeo feito por um traficante da Vila Cruzeiro, em janeiro deste ano. A viatura da PM passa na frente do bandido, que ostenta um fuzil, e continua como se tudo estivesse na mais absoluta normalidade. Não dá pra enxergar com muita clareza, mas do outro lado da rua, encostado na parede verde, há um outro traficante armado.

Alguém consegue descobrir o que está errado nessa imagem? Acertou, leitor: o bandido filmou com o celular na vertical, e não deitado. Esse pessoal parece que não assiste aos jornais da Globo!

Quando aquilo que deveria ser ridículo se torna corriqueiro, ao ponto de considerarmos que o melhor que os PMs fizeram, pelo seu próprio bem, foi passar batido, é porque a linha do que se considera inaceitável tem um nível de tolerância absurdamente alto.

O poder econômico e bélico dos traficantes das favelas do Rio de Janeiro revela muitíssimas coisas. A que eu destaco, em primeiro lugar, é que esse poder somente se atinge quando você vende um produto extremamente procurado. Logo, se consume muita droga.

Mas aí, imediatamente, penso o seguinte: nos Estados Unidos, ou na Europa, as drogas também são muito consumidas — talvez até mais do que no Brasil. No entanto, ninguém imagina uma cena como a da fotografia acontecendo numa rua de Harlem, Nova Iorque, ou no bairro Gótico de Barcelona. A razão pela qual nesses países um traficante fortemente armado jamais se atreveria a filmar uma viatura passando é óbvia: ele seria detido e preso.

Aqui em Campos, por exemplo, qualquer um que queira cheirar uma carreira de cocaína sabe a que horas e em qual favela da cidade pode procurá-la. Sabe, também, o procedimento para chegar até o fornecedor sem provocar hostilidade: baixar as luzes externas e os vidros do carro, ligar a interna, etc. Afinal, o território é deles e deles são as regras. A polícia, os promotores e a justiça também sabem tudo isso, e de tanto em tanto realizam uma operação onde são apreendidos alguns papelotes e armas. Assim que a força policial se retira, a cancela da comunidade volta a se fechar e o traficante volta à sua atividade, até a próxima blitz.

O primeiro passo para eliminar a violência é encarar o nível de hipocrisia e de corrupção que existe, tanto na sociedade quanto no governo. Deveríamos nos perguntar, em primeiro lugar,  se realmente há interesse em combater o tráfico — e se as drogas deveriam ser proibidas, mas não é esse o assunto agora. Hoje, pareceria que o que se quer é apenas manter as aparências. Liberar uma rua de forma permanente e impedir que sujeitos andem ostentando fuzis não deveria ser tão difícil. É óbvio que o cerne do problema não está na viela da comunidade, e sim no escritório de alguma(s) autoridade(s).

A intervenção federal na segurança do estado do Rio é uma oportunidade para eliminar as causas que originam a violência das favelas: a incompetência, por dolo ou culpa, da polícia e do governo estadual, que estão imersos há décadas num círculo de ineficácia e corrupção. Mudando estes é que mudará o morro. Depois, sim, que venham as ações sociais — mas não dá pra ajudar sem antes pacificar. Não há garantias que venha a dar certo, mas estamos ficando sem opções, e essa ainda não foi tentada.

 

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