Em 13 de março de 2016, o artigo intitulado “Quedado pela gravidade” fazia a analogia do governo federal Dilma Rousseff (PT) com o prédio do Julinho, em Atafona. Quem caminhava à beira mar atafonense no final da tarde de 5 de abril de 2008, pôde testemunhar a queda (do prédio) poucos minutos após notar sua face norte inclinada em ângulo insustentável. Newton fez o resto. Na próxima quinta, serão 10 anos, como lembra a matéria do jornalista Arnaldo Neto, na página seguinte desta edição.
Houve quem não gostasse da projeção em metáfora. Gostando ou não, o governo do Brasil se mostrava inclinado em nível inadmissível à gravidade, naquele março de 2016. Não por outro motivo, Dilma seria afastada da presidência menos de dois meses depois, em 12 de maio. E teria seu impeachment consumado em 31 de agosto do mesmo ano.
Para muitos analistas, o governo Michel Temer (MDB) morreu na última quinta (29) — véspera de Sexta da Paixão e sem esperança de ressurreição. No peito do presidente apelidado de “Vampirão”, a estaca de madeira foi fincada pela operação Skala, da Polícia Federal (PF). E foi afiada nas delações da Lava Jato, acusada de ter sido feita para colocar Temer na presidência.
Aqui, uma curiosidade: as delações que levaram à operação Skala foram do empresário Ricardo Saud, da JBS. Foi ele que também delatou à Lava Jato ter repassado R$ 2,6 milhões de caixa dois à campanha de Anthony Garotinho ao governo estadual em 2014. Confirmadas pelo empresário local André Luiz da Silva Rodrigues, o “Deca”, dono da Working, as denúncias em Campos se estenderam à formação de quadrilha para extorquir, com emprego de arma de fogo, as empreiteiras que prestavam serviço ao governo municipal Rosinha Garotinho. A investigação levaria à prisão do casal mais famoso da Lapa na operação Caixa d’Água.
Bebendo da mesma fonte, a Skala foi montada para coletar provas ao inquérito que apura se Temer editou um decreto para favorecer empresas que atuam no setor portuário. O presidente provavelmente não cairá porque estamos a pouco mais de seis meses de eleger seu sucessor. Mas governará como morto-vivo no meio ano lhe resta. E talvez o separe da cadeia.
Na dúvida, à exceção dos que têm foro privilegiado, todos os homens do presidente estão presos. Aos parceiros do MDB Eduardo Cunha, Geddel Vieira de Lima, Henrique Eduardo Alves e Rodrigo Rocha Loures, mais três amigos de Temer foram para o xilindró na operação de quinta: o advogado José Yunes, o coronel reformado da PM João Baptista Lima Filho e o ex-ministro da Agricultura (dos governos Lula e Dilma) Wagner Rossi. Ex-assessor especial do presidente, Yunes é seu íntimo desde que ambos cursaram juntos Direito, nos anos 1960.
O mais grave a Temer não é nem a possibilidade de ser pedida ao Congresso, pela terceira vez, autorização para que ele seja investigado enquanto ainda ocupa a presidência. Mas o fato de que os 13 mandados de prisão e 20 de busca e apreensão, autorizados pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, foram pedidos pela Procuradoria Geral da República (PGR). Não alinhada ao seu antecessor Rodrigo Janot, escolhida como chefe do PGR por Temer e acusada de se reunir com ele antes de assumir o cargo, quem pediu foi Raquel Dodge, indicando a contundência das evidências contra o presidente.
Para quem ignora que a lei da gravidade funciona a despeito das ideologias, curiosa foi a reação ao cumprimento dos mandados: “estou muito preocupado com essa escalada de um autoritarismo inconsequente”. Mais curioso ainda notar que as palavras que a Lava Jato tornou tão comuns à boca da esquerda brasileira, dessa vez foram ecoadas pelo ministro da secretaria de Governo de Temer, Carlos Marun (MDB), aliado até a última hora de Eduardo Cunha. Coincidência?
HABEAS CORPUS DE LULA
É neste clima que o STF vai julgar nesta quarta-feira (04) o pedido de Habeas Corpus (HC) de Lula. Na sessão em que deveria fazê-lo, no último dia 22, o placar de 7 a 3 se limitou a admitir a análise do HC. Mas depois do ministro Marco Aurélio de Mello exibir acintosamente uma passagem de avião, para alegar um compromisso anterior, o STF descumpriu seu compromisso com a nação que, dividida no desejo do desfecho, igualmente ansiava por ele.
Isso tudo no dia seguinte a Barroso dizer na cara de Gilmar Mendes o que o Brasil pensa deste: “você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”. Como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi Gilmar quem esperou o plenário entrar de recesso no final de 2017 para no dia seguinte decidir sozinho a liberdade de Garotinho na Caixa d’Água.
Sem nada com isso, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) negou no dia 26 os embargos de declaração da defesa de Lula. O mesmo tribunal de segunda instância já havia confirmado a condenação do líder petista pelo juiz federal Sérgio Moro, no caso do triplex do Guarujá. E ampliou a pena dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro para 12 anos e um mês de prisão. Sua eventual aplicação foi suspensa porque, dois dias antes, o STF não julgou o HC, mas determinou que até fazê-lo o ex-presidente não poderia ser preso. O placar foi mais apertado: 6 votos a 5.
Com base na última pesquisa Datafolha de 29 e 30 de janeiro, feita após a confirmação da condenação pelo TRF-4, cerca de 35% de brasileiros declararam intenção de voto em Lula. Se ele for preso, esses eleitores ficarão tão contrariados quanto os 40% que disseram não votar nele de jeito nenhum, caso o ex-presidente permaneça condenado e livre. Nesta possibilidade, reside o dilema da ópera bufa do STF: se Lula abrir com sua gravidade fantástica o precedente, poderão passar por ele todos os presos condenados em segunda instância no Brasil.
Não é novidade que tanto ao julgamento do HC de Lula, quanto à tentativa de revogação do atual entendimento do STF que permite o cumprimento da pena após condenação em segunda instância, o voto que definirá a questão é o da ministra Rosa Weber. Em 2016, ela optou pela condenação só após o trânsito em julgado e foi voto vencido. Mas seguiu o entendimento da maioria em todas suas decisões seguintes. E ela se mostrou visivelmente contrariada com o adiamento do julgamento do mérito do HC do líder petista.
Especula-se que uma solução alternativa do STF ao caso de Lula — a fixar jurisprudência aos demais —, seria esperar o julgamento do recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para se cumprir a sentença. Mas há quem não tenha constrangimento de tentar forçar a porteira por conta própria. Recusado como juiz de primeira instância em dois concursos públicos em São Paulo, mas guindado ao STF após ser advogado-geral da União no governo Lula, Dias Toffoli abriu um impressionante currículo de decisões após a polêmica sessão do STF do dia 22.
Cinco dias depois, em 27 de março, Toffoli deu liminar favorável ao ex-senador Demóstenes Torres (DEM), afastado do Congresso por participação na quadrilha do contraventor Carlinhos Cachoeira. No precedente mais relevante, o ministro permitiu que Demóstenes concorra às eleições de 2018, em descumprimento à Lei da Ficha Limpa, que impede Lula de ser candidato a presidente. Na mesma sessão, Toffoli rejeitou uma denúncia contra o senador Romero Jucá (MDB) e permitiu a prisão domiciliar ao deputado estadual Jorge Picciani (MDB). No dia seguinte, 28 de março, ele libertou o deputado federal afastado Paulo Maluf (PP).
JUSTIÇA EM DEBATE
No último dia 21, véspera do adiamento do julgamento do HC de Lula no STF, a Faculdade de Direito de Campos (FDC) promoveu o debate “Diálogos sobre a operação Lava Jato”, em iniciativa do advogado e professor da instituição Rafael Crespo. Como debatedores, o juiz de Direito Eron Simas, o promotor de Justiça Victor Queiroz, o professor de Direto Antônio Carlos Santos Filho e o odontólogo e militante político Alexandre Buchaul falaram sobre a operação Mãos Limpas na Itália dos anos 1990, sobre a operação Lava Jato nela inspirada e sobre as ações que esta inspirou em Campos, como as operações Chequinho e Caixa d’Água. Depois, a discussão foi aberta ao público, que lotou o evento, com gente assistindo até do lado de fora.
Juiz eleitoral da Chequinho, relativa à troca de Cheque Cidadão por voto no pleito municipal de 2016, Eron julgou 38 Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes), com 42 réus. E, à exceção de um, condenou os demais a oito anos de inelegibilidade e cassação do diploma dos eleitos, em decisões mantidas no TRE e no TSE, a não ser na nulidade dos votos. No debate, falando da demanda de celeridade nos processos numa Justiça tão criticada por sua morosidade, ele sentenciou: “Às vezes é melhor um final desastroso do que um desastre sem fim”.
Por sua vez, Buchaul frisou que “a Lava Jato é o pontapé inicial de mudanças que serão consolidadas pela democracia, por eleições com ânsia de renovação. E isso já está acontecendo desde as últimas eleições municipais”. Já Victor, reforçou sua brilhante participação em artigo escrito após o debate, publicado neste jornal e no blog “Opiniões”. Nele, frisou: “os operadores do direito precisam colaborar para a rápida solução das investigações e dos processos (…) Se assim não se fizer, a sociedade e os criminosos, especialmente os do andar de cima, terão sempre a impressão de que praticar crimes pode valer a pena”.
Contraponto necessário do debate, ao ecoar a visão garantista do Direito, Antônio Carlos falou da preocupação com os contornos que o processo penal passa a assumir em razão da Lava Jato: “Eu acho que o maior risco da Lava Jato não é dentro do seu processo criminal. O maior risco são os efeitos colaterais que ela pode gerar ao vender à população a ideia de que um processo penal com poucas garantias, com muitas prisões, muitas conduções coercitivas, é a solução de tudo. O Estado não deve focar na redução de garantias no processo penal”.
Ao final do evento, um dos seus organizadores, o promotor de Justiça Marcelo Lessa, desabafou com alguns componentes da mesa, em particular que permitiu tornar público: “Criticavam a Justiça brasileira por só prender pobre e preto. Aí, quando os maiores criminosos de colarinho branco do país são presos ou ameaçados de prisão, a Justiça é criticada e questionada para não prender. Se for isto, que assumam: Justiça no Brasil só pode prender pobre e preto”.
Publicado hoje (01) na Folha da Manhã
P.S. Todos os presos da operação Skala foram soltos na noite do Sábado da Paixão (31), com o pedido da procuradora geral da República Raquel Dodge atendido pelo ministro Luís Roberto Barroso. No pedido, Dodge afirmou que o objetivo das prisões, de instruir as investigações em curso, já havia sido cumprido. As prisões temporárias terminariam nesta segunda (2), mas, já neste sábado, a Procuradoria Geral da República enviou a Barroso um pedido para que as prisões fossem revogadas.
“Desse modo, tendo as medidas de natureza cautelar alcançado sua finalidade, não subsiste fundamento legal para a manutenção das medidas, impondo-se o acolhimento da manifestação da Procuradoria-Geral da República. […] Revogo as prisões temporárias decretadas nestes autos. Expeçam-se, com urgência, os respectivos alvarás para que se possa proceder à imediata soltura”, disse Barroso na decisão.
Dodge havia optado em pedir as prisões temporárias porque as conduções coercitivas estão proibidas no país desde dezembro, por decisão do indefectível Gilmar Mendes. Ou a prisão bastou, de quinta a sábado, para se avançar na investigação sobre o decreto de Temer para favorecer empresas na operação portuária, ou se chegou a um grande acordão nacional.
E enquanto o ministro do STF Edson Fachin anunciou ter a si e sua família ameaçadas de morte, na mesma terça (27) tiros foram dados na caravana de Lula, no Paraná.