Dia desses, conversava ao telefone com o sociólogo Fabrício Maciel, professor da UFF-Campos, a quem convidei para ser colaborador regular do blog. Pela carga já grande de afazeres, ele infelizmente declinou, mas confidenciou a intenção de escrever sobre a polêmica série “O Mecanismo”.
Dirigida por José Padilha e baseada no livro “Lava Jato: o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, do jornalista Vladimir Netto, a primeira temporada da série estreou com grande sucesso de público em 190 países, no último 23 de março, na Netflix.
Por e-mail, o Fabrício avisou que concluiu seu texto, publicando-o aqui, em seu próprio blog. Mas facultou a este “Opiniões” a oportunidade de também republicá-lo, para estimular o debate, o que é feito abaixo:
O “Mecanismo” da distorção da verdade no Brasil
Por Fabrício Maciel(*)
A série “O mecanismo”, de José Padilha, que está bombando na Netflix, é um perfeito exemplo de como se distorce sistematicamente a verdade sobre o Brasil, tanto na academia quanto na arte, operando-se uma perfeita divisão do trabalho. Vou reconstruir um breve histórico deste conhecido cineasta, para que possamos entender o que esta série realmente representa.
Desde o seu documentário “Ônibus 174” (2002), sobre o conhecido episódio envolvendo o garoto de rua protagonista da tragédia, que Padilha não me convence. Quem quiser ter acesso a uma análise realmente crítica deste episódio pode assistir ao filme “Última parada 174” (2008), de Bruno Barreto que, apesar de ser uma ficção, e não um documentário, como fez Padilha, tematiza de fato o que aconteceu na história de vida do menino Sandro. Primeira lição a se aprender: nem sempre um documentário é crítico.
Neste belíssimo filme, Bruno Barreto deixa claro, com fineza sociológica rara, as razões que levaram o menino Sandro a se tornar um adulto tolo e protagonizar a tragédia do referido ônibus. Não recontarei a história, pois é bem conhecida. A análise do filme, baseado em fatos reais, mostra com clareza a história de vida do menino: sua mãe, uma batalhadora dona de um bar na comunidade em que moravam, é assassinada brutalmente durante um assalto em sua presença. O menino começa a vagar, não para na casa de nenhum parente e, sem destino, enlouquece e vai morar nas ruas do Rio de Janeiro. Paralelamente, o filme mostra a vida de um outro menino Sandro, da mesma idade que, criado por um traficante, desenvolve todas as disposições e a inteligência necessária para o crime. Contrário a ele, o Sandro do ônibus se torna um garoto de rua que é essencialmente um tolo. Esta é a moral da história: um garoto de rua não tem metade da sagacidade de um traficante, e o seu destino é ficar vagando e cometendo pequenos delitos no centro da cidade. Ou seja: o garoto de rua é um exemplo perfeito do que o abandono social pode causar a uma pessoa. Quando esta pessoa comete algum delito que afeta a “boa sociedade”, logo ficamos apavorados.
Moral da história: é assim que se usa a arte para se tematizar criticamente as razões dos problemas sociais. É preciso que se mostre claramente, sem ambiguidades e floreios, a origem real dos problemas, como faz o filme. É preciso que se tenha uma didática clara e direta para o público. Esta certamente não é a marca de Padilha. Já no primeiro “Tropa de Elite”, baseado em livro de relatos escrito por Luiz Eduardo Soares e parceiros, ele deixa ainda mais claro a que veio. A trama do filme é simples: apenas uma tropa muito bem treinada para uma guerra, com razões morais que motivam seus membros a darem sua vida pela causa, pode enfrentar o crime no Brasil. A velha tese acadêmica de que a desigualdade no Brasil é uma questão de polícia não podia ser melhor requentada e apresentada ao público como distração.
Em resumo, a questão central do filme, reforçada por sua estética, é que uma tropa de homens bons e honestos vai enfrentar o crime para salvar a boa sociedade. O sentimento mobilizado pela estética do filme é a vontade de ver o crime exterminado a qualquer custo. Por isso não é crítico. A arte tem o poder de mobilizar imediatamente os corações das pessoas. Por isso, deve ir direto ao ponto. Em nenhum momento o filme questiona o fato central de nossa desigualdade, que tem a ver diretamente com a violência no Brasil: o fato de que homens moralmente desqualificados e excluídos de outras possibilidades de trabalho distinto vão encontrar no batalhão sua única chance de receber algum prestígio e status. Para tanto, o preço é matar muitas vezes um primo ou irmão, do outro lado do front da batalha (há relatos verídicos sobre isso), para com isso defender a classe média e a elite da violência mais imediata do cotidiano.
Novamente, fica a sugestão: para quem quiser ver um filme realmente crítico sobre o drama da guerra e de como ela destrói a alma dos envolvidos, basta ver o belíssimo “Nascido para matar” de Stanley Kubrik. Este, sim, tematiza como o treinamento indigno, apenas caricaturado no Tropa de elite que “mostra”, mas não “analisa”, mobiliza os sentimentos e valores dos envolvidos. No filme, um dos soldados, que não tinha preparo físico e emocional para o treinamento, como muitos não têm, acaba se apaixonando pela própria arma, e no final aniquila seu treinador, que era seu algoz.
No Tropa de Elite 2, nosso querido cineasta vai ainda mais longe. Como o próprio sub-título do filme sugere, “O inimigo agora é outro”. O já consagrado herói nacional, Capitão Nascimento, agora “cai para cima” e vai trabalhar na inteligência do combate ao crime. Descobre logo de cara o “sistema”. Moral da história: a polícia deve combater a política. Uma análise que fiz na época sobre o Tropa 2 pode ser lida aqui: http://eduem.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/11629/6704.
Mais uma vez, o filme tem uma onda crítica. Aqui não podemos confundir o uso dos fatos com a capacidade crítica da arte, pois é exatamente o que ocorre agora no “Mecanismo”. Não por acaso, o Tropa 2 é lançado em pleno início de segundo turno das eleições para presidência, em 2010, na qual Dilma venceu Serra. Um dado ingênuo: a última cena do Tropa 2 é uma imagem sobrevoando o Palácio do Planalto. O tema do filme, adivinhem: combate à corrupção, que neste caso é só no Estado.
Por fim, temos agora o “Tropa de Elite 3”, pois não se trata de outra coisa esta série “O Mecanismo”. O inimigo continua o mesmo: a política em si e todos os políticos, pois todos são corruptos. Este é o discurso adotado pelo diretor. Não por acaso, a série se atualiza em alguns aspectos: agora o problema do Brasil é mais complexo e apenas a casta jurídica, isenta, pode enfrentar a corrupção, “nosso câncer”, como é enfatizado na série. A estética é a mesma: o combate ao crime organizado, de colarinho branco. A polícia, mais inteligente, preparada, séria e isenta: a federal. Temos alguma esperança: algumas pessoas de bem ainda acreditam na guerra contra os criminosos. Falta apenas falar de um detalhe nesta história toda: a política corrupta é apenas a ponta do iceberg de um “sistema” um pouquinho maior… Só não posso garantir ao leitor que uma série realmente crítica sobre ele passará na Netflix.
(*) Sociólogo
No último dia 28, o jornalista Ricardo André Vasconcelos também escreveu ao blog sobre sua visão da série “O Mecanismo”. Confira aqui.
Parabéns, Fabrício. Texto enxuto, direto e profundo.
Caro Henrique,
O que está em jogo aqui é algo muito maior do que a defesa de algum partido. Eu primo por uma interpretação correta do Brasil, contra o que o Padilha trabalha sistematicamente. Também acho um tanto quanto deselegante você postar o texto de outra pessoa aqui no seu comentário, talvez por ausência de argumentos próprios. Grande abraço!
bretas usou argumentos de gramsci
deselegante e achar que argumentos tem dono talvez por nao conseguir responder aos que ele apresentou
abraco
Querido,
A resposta está muito clara no texto, basta reler. Mas vamos lá: a distorção feita por Padilha, deste o Tropa de Elite, reduz a interpretação do Brasil ao discurso fajuto da corrupção apenas no Estado. A irresponsabilidade tamanha nisso é ignorar e omitir de propósito a corrupção maior do mercado, onde tudo começa. Basta acompanhar com um pouquinho mais de atenção tudo o que está acontecendo no país.
Quando ao Gramsci, é trágica a leitura conservadora que alguns brasileiros fazem sobre este grande autor.
enetendi querido nao sao os pensamentos que tem dono sao os pensadores
abraco
Obrigado José Luis, precisamos discutir mais e mais, é um debate urgente. abraço!
li o texto do fabricio e do ricardo andre mas fico com o de erick bretas:
AFINAL, POR QUE O PT DETESTOU “O MECANISMO”?
Quem quiser entender a reação virulenta do PT à série O Mecanismo tem que ir além das justificativas apresentadas publicamente por seus porta-vozes oficiais e oficiosos. A fala de Romero Jucá sobre “estancar a sangria” na boca do personagem de Lula virou um trunfo para os petistas porque seria a evidência mais gritante das supostas distorções factuais motivadas por interesses políticos dos criadores da série.
Mas nem de longe as licenças tomadas pelos roteiristas de O Mecanismo justificam a histeria desencadeada na militância mais engajada — os 0,17% de assinantes da Netflix que teriam aderido ao boicote à plataforma, segundo estimativa da consultoria Bites.
Tampouco elas explicam as ameaças feitas pelos líderes máximos do PT à Netflix – Lula, de processá-la; Dilma, de alertar “lideranças internacionais” sobre a suposta intromissão da empresa americana na política dos países em que atua (Dilma provavelmente está se referindo a Nicolás Maduro, Raul Castro e Evo Morales, os únicos líderes que ainda perderiam, talvez, 30 segundos ouvindo conselhos da ex-colega).
Conheci o PT por dentro ao militar no partido na juventude – e aí se vão 22 anos. Mas algumas coisas não mudam, como a crença de seus intelectuais de que a cooptação da classe artística faz parte do projeto de disputa hegemônica da esquerda. Sim, vamos falar de Gramsci.
Ninguém dentro da esquerda fez uma crítica ao marxismo clássico tão profunda e tão bem aceita quanto Antonio Gramsci. Escrevendo na década de 20 do século passado, o italiano percebeu que as sociedades da Europa Ocidental não marchavam, conforme Marx previra, inexoravelmente rumo à revolução socialista, como consequência das contradições internas do capitalismo. O economicismo marxista, ele acreditava, não deu a devida atenção ao sistema de valores da burguesia capitalista, preservado na esfera chamada em seus escritos de ´sociedade civil´. Gramsci se dedicou a aspectos que Marx e Engels negligenciaram: cultura, imprensa, literatura, folclore, religião. A revolução socialista só ocorreria, escreveu, quando a moral burguesa fosse subjugada pela nova ideologia. Para isso, seria necessário que intelectuais socialistas disputassem, em suas sociedades, a *hegemonia* de valores — talvez o conceito mais original do pensamento gramsciano.
Corta para o Brasil.
Em seus 13 anos de poder, o PT não teve o trabalho de cooptar a classe artística brasileira. Não foi preciso. Em sua maioria, e com valorosas exceções, nossos artistas seguiram os governos petistas como as crianças de Hamelin ao flautista. Há quem atribua esse comportamento dócil aos incentivos estatais para produções de filmes, peças e shows. Eu não. Eu sempre achei que o buraco é mais embaixo.
Nossos artistas, conscientes disto ou não, se viam (se vêem?) como protagonistas do jogo de disputa de hegemonia. Fazem no campo de atuação deles, a sociedade civil gramsciana, o que entendem que precisa ser feito enquanto os líderes políticos avançam sobre as instituições do aparato estatal. Assim, juntos, intelectuais e partido criam as condições para o surgimento de uma sociedade socialista.
Obviamente esse é um pensamento narcisista, que exagera a importância dos artistas – especialmente na visão do super pragmático PT, muito mais interessado em fazer amigos entre empreiteiros do que entre intelectuais. Lula nunca teve o menor interesse em fazer a revolução socialista, nem subjugar a moral burguesa — e disputa de hegemonia, para ele, era ganhar eleição de quatro em quatro anos. Mas ter os artistas de forma tão majoritária e tão incondicional ao seu lado foi um conforto para os governos petistas, que puderam concentrar energia em conquistar a adesão de grupos considerados hostis: banqueiros, industriais, ruralistas, donos de escolas etc.
Quando uma obra do tamanho de O Mecanismo surge no mercado, porém, ela mostra uma enorme fissura na blindagem que a classe artística dava ao PT e a seus líderes. Não estamos falando de um documentário independente sobre um filósofo de direita. Aqui se trata de uma obra de entretenimento audiovisual, um campo onde, salvo melhor juízo, o PT e seus líderes até hoje não tiveram que lidar com uma crítica relevante – nunca tiveram, por exemplo, um Costa Gravas ou um Milos Forman a lhes apontar as câmeras como fizeram com os comunistas europeus.
Eu posso imaginar, a cada capítulo da série a que os petistas assistiam, as questões que realmente incomodavam– e que eles jamais teriam coragem de externar em público:
Como assim a Maria Ribeiro está *contra* a gente e aceitou interpretar a mulher do João Santana? Como assim a Sura Berditchevsky faz uma Dilma autoritária, tresloucada e que, ainda por cima, fala em “estocar vento”? Como assim a heroína dessa história é uma delegada da Polícia Federal? E como assim a Netflix, que veio para acabar com o poder dos nossos inimigos na mídia brasileira, apronta uma coisa dessas?
Esta última questão deve ter doído mais fundo nos petistas de alto escalão, particularmente naqueles que acreditavam no Paulo Henrique Amorim quando ele escrevia que as plataformas de streaming americanas acabariam com o poder econômico da TV brasileira. Não passava pela cabeça de ninguém que a Netflix pudesse ir atrás do mais bem sucedido cineasta brasileiro da atualidade para contar a história da Operação Lava Jato — e que José Padilha decidisse contá-la como ele a via, não como o partido autorizava (sorry, companheiros, assim funciona o show business).
E isso nos leva ao último dos motivos da grita esquerdista com O Mecanismo: a perda do controle da narrativa. A série de José Padilha é uma obra de orçamento milionário e enorme alcance potencial. Ainda assim, é pouquíssimo provável que qualquer de seus espectadores na Netflix tenha assistido à fala do personagem de Lula sobre “estancar a sangria” e acreditado que aquilo se passou daquela maneira. O público de séries – tanto na TV quando nos serviços de streaming – costuma ter um repertório cultural razoável e entender metáforas e citações. Mas o PT se viciou em contar histórias simplórias para as massas, como a propaganda em que a proposta de independência do Banco Central faz acabar a comida na mesa de uma família de classe média.
A simples hipótese de que uma série de sucesso pudesse firmar no imaginário popular a imagem de partido e líderes corruptos provocou pânico generalizado entre os petistas.
Inconformados em não controlar a maneira como os fatos são contados, de repente eles perdem também o monopólio da ficção a respeito de si próprios.
Deve ser mesmo muito duro.