“Gutengerb há muito tempo/ Usou a inteligência/ E aí neste momento/ Ele inventou a imprensa/ Extra, extra, extra, guarde essa para você/ A comunidade confia no jornal que lê”. Esta era a letra de um jingle de sucesso da Folha da Manhã no início dos anos 1980. Um pouco antes, em 1978, o jornal seria o primeiro do interior do Estado do Rio em impressão offset, com parque gráfico próprio. Nestes últimos 44 anos, muita coisa mudou, sobretudo na tecnologia da informação. Mas não o fato de que o jornalismo só tem a confiança da comunidade quando atento à imprevisibilidade da vida humana. Como a do caminhoneiro Hudisson Pinto dos Santos, morador da Penha, casado e pai de dois filhos pequenos. Que ontem, no Sábado de Aleluia, se tornou (confira aqui) a primeira vítima fatal da Covid-19 em Campos.
Na quinta-feira (09), o blog Opiniões, hospedado no Folha1, foi o primeiro a noticiar (confira aqui) a gravidade do quadro de caminhoneiro de Campos. Assim como sua internação na UTI do Centro de Controle e Combate ao Coronavírus (CCC). Mas o drama de Hudisson começou antes. Da sua lida pelas estradas, ele chegou a Campos, vindo de São Paulo, na quarta-feira (1º) da semana anterior. No sábado (04) buscou a UPH São José, na Baixada Campista. No mesmo dia, fez uma tomografia no Hospital Geral de Guarus (HGG), de onde foi transferido à UTI do CCC. Na segunda (06) fez o teste rápido, que deu positivo para Covid-19, e foi entubado. Mas não resistiu e acabou falecendo na tarde de ontem.
A única “comorbidade” de Hudisson é que ele era obeso. Embora suas fotos evidenciem que não passava de um simples excesso de peso, bem abaixo de muitos outros. À exceção desses poucos quilos a mais, não era idoso, não era diabético, não tinha doença cardiorrespiratória ou renal, não era hipertenso, não fumava e não bebia. O que evidencia a roleta russa que vai definir quem viverá ou morrerá até acabar essa pandemia do novo coronavírus.
Outro dado reforça a incerteza. E se baseia na certeza das subnotificações da doença em Campos e no Brasil. Hudisson, talvez não por acaso, morreu de Covid-19 antes mesmo de ter seu diagnóstico de Covid-19 confirmado oficialmente. Até seu último suspiro através de um respirador mecânico, não havia chegado a sua contraprova pelo Laboratório Central Noel Nutels (Lacen), credenciado pela secretaria estadual de Saúde.
Ontem, no dia em que Hudisson morreu, Campos confirmou outro caso de Covid-19. Até a noite do sábado, era o 15º do município: uma enfermeira de 38 anos, que atua profissionalmente em Rio das Ostras. Com ela, outro dado preocupante: seis dois 15 casos confirmados na planície goitacá são (confira aqui) de profissionais da saúde, três enfermeiros e três médicas.
Chefe da Vigilância em Saúde de Campos, a médica infectologista Andreya Moreira argumentou que cinco desses profissionais trabalhavam fora do município. Enquanto uma delas foi contactante do marido que voltou de viagem infectado de Nova York. Ao que poderia ser lembrado que duas outras profissionais de saúde também confirmadas para Covid-19, uma residente em São João da Barra, outra em Itaperuna, foram contabilizadas nas estatísticas daqueles municípios, embora trabalhassem em Campos.
Ontem, no dia em que Hudisson morreu, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) fez uma fiscalização (confira aqui) na rede pública de Campos. O motivo foram denúncias de profissionais da saúde sobre a distribuição de máscaras de proteção em cujas embalagens se lia claramente: “Não uso médico”. Secretária municipal de Saúde, Cíntia Ferrini admitiu que as máscaras denunciadas são inadequadas. Mas alegou que não faltam no estoque as máscaras nº 95, mais caras que as máscaras cirúrgicas necessárias e em falta.
No início da noite de ontem, dia em que Hudisson morreu, o Cremerj constatou em sua fiscalização que há problemas com os equipamentos de proteção individual (EPIs) no CCC, no Hospital Ferreira Machado (HFM) e no HGG, bem como nas UPHs de Guarus, Travessão e São José. No primeiro deles, Hudisson morreu no sábado, após ter buscado o último no sábado anterior. E, mesmo com os EPIs completos, os profissionais de saúde da China e da Itália, primeiros epicentros da Covid-19 no mundo, tiveram taxa de infecção de até 40%.
A secretária de Saúde de Campos admitiu que a o problema dos EPIs existe e é mundial. Sobretudo depois que os EUA se tornaram o maior epicentro global da Covid-19. E passaram a usar seu poder econômico hegemônico para comprar todos os EPIs disponíveis no mercado internacional. Além dos respiradores mecânicos, fundamentais à sobrevivência dos casos mais graves da doença. Mesmo que não tenham bastado para salvar a vida de Hudisson.
Ontem, no dia em que Hudisson morreu, a secretária Cintia Ferrini lembrou que a falta de EPIs tende a se agravar quando a doença atingir seu pico no Brasil. O que é esperado para o final deste mês, com projeção de queda, na melhor das hipóteses, apenas para junho. E que, quanto mais a população insistir em sair para as ruas, mais essa queda demorará a acontecer.
E o campista dá provas de querer dançar à beira do abismo. Talvez a exemplo do presidente da República que, no dia anterior (10), saiu às ruas de Brasília (confira aqui) e gerou aglomerações para dizer: “Ninguém vai mandar no meu direito de ir e vir”. Do Planalto Central à planície goitacá, que deu a Jair Bolsonaro 64,87% dos seus votos válidos no 2º turno presidencial de 2018, a unidade da rede atacadista Makro foi fechada e autuada (confira aqui) por volta das 11h da manhã de ontem, dia em que Hudisson morreu. A causa foi a aglomeração de gente no supermercado, desde às 9h.
A despeito do preço das mercadorias da Makro, o campista parece se inspirar mais em Bolsonaro, do que no seu ministro da Saúde, que quis, mas não pode demitir. Na sexta (10), enquanto Hudisson agonizava em um leito de UTI do CCC de Campos, para morrer no dia seguinte, Luiz Henrique Mandetta advertiu: “Vamos pagar esse preço ali na frente. Esse vírus adora aglomeração, adora contato, adora que as pessoas achem que ele é inofensivo. E, aí, as cidades podem pegar a transmissão sustentada”.
Ontem, no dia em que Hudisson morreu, seus amigos relataram que ele era uma pessoa quieta e reservada, cuja vida era dedicada à família e ao trabalho. Ele atuou cerca de 4 anos como taxista em Campos, até conseguir o emprego como caminhoneiro em uma transportadora de Vitória (ES). Fez a opção para ter carteira de trabalho assinada e benefícios, buscando dar mais segurança à sua família.
Ontem, no dia em que Hudisson morreu, Ivaneide, sua viúva, disse à Folha da Manhã que eles eram evangélicos e frequentavam a Igreja Batista do Parque Bela Vista. Em isolamento obrigatório, não soube passar informações do velório e do enterro do marido, que estavam sendo organizados pela família. Muito abalada, ela só conseguiu afirmar com a voz embargada, em meio ao choro: “Ele era um homem muito bom!”.
Quantos mais homens e mulheres boas de Campos perderão a vida, agonizando em asfixia lenta pela Covid-19, sem sequer poder se despedir de parentes e amigos, é coisa do amanhã. Mas resultado das suas ações hoje, Domingo da Ressurreição. O dia seguinte ao que Hudisson morreu.
Publicado hoje (12) na Folha da Manhã
Parabéns Aloísio, pelo primoroso texto, sobre essa situação pandemica que nos apavora. Embora vivamos tempos dramáticos, vão daqui meus votos de Feliz Páscoa! Abs
Cara Ana Celina,
Agradeço pela generosidade. E feliz Pessach também para vc e os seus!
Abç e grato pela participação!
Aluysio