Morte, Covid, George Floyd, Bolsonaro e… Trump comunista — Olho nele, patriotas!

 

(Foto: Jair Watson – AFP)

 

Certo como você e eu morreremos um dia, é a lembrança que de nós restará. Após a morte, nos versos de Fernando Pessoa, na face do seu heterônimo Álvaro de Campos: “Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:/ Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste./ Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada./ Duas vezes no ano pensam em ti./ Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,/ E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.”

 

 

Enquanto a morte não chega a mim ou você, a maneira como ela tem chegado aos outros contraria o poeta português. É o caso dos 390 mil óbitos que a Covid-19 tinha registrado no mundo até a manhã de sexta, 5 de junho. Assim como a morte em 25 de maio do cidadão negro dos EUA George Floyd. Todos morreram sufocando em agonia lenta. Floyd, mesmo algemado e deitado de bruços no chão, pelo joelho de um policial branco sobre seu pescoço. Os 390 mil com nomes e vidas para além dos números, deitados em um leito hospitalar, pelo novo coronavírus. Em comum: todos solitários, sem direito a despedirem-se das suas famílias.

 

Covas coletivas abertas em Nova York para dar vazão ao número de mortos pela Covid-19 (Foto: Lucas Jackson – Reuters)

 

Valas coletivas também abertas em Manaus, para conseguir enterrar todos os mostos da pandemia (Foto: Michael Dantas – AFP)

 

Em números oficiais, a Covid-19 já matou 34.072 pessoas no Brasil. Está atrás só dos EUA e da Grã-Bretanha no número total de óbitos. Os três países são governados por conservadores. Embora Donald Trump e Boris Johnson tenham sido obrigados a rever o isolamento vertical, que quase custou a vida do segundo, defendida ainda hoje por Jair Bolsonaro. E acintosamente encarnado em cada nova saída do presidente brasileiro às ruas, sem máscara e interagindo fisicamente com as pessoas. Como fez na manhã de ontem na inauguração do primeiro hospital federal de campanha em Goiás, quando tropeçou, escorregou e caiu.

 

 

Apontado por todos os especialistas da Terra como necessário para tentar achatar a curva de contaminação da Covid e não colapsar os sistemas de saúde, o isolamento horizontal só foi adotado parcialmente no país graças à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Que, em 15 de abril, delegou a decisão a governadores e prefeitos. Todos pressionados pelos ruidosos 33% da população dispostos a apoiar qualquer desatino do presidente. Os mesmos que este admitiu querer armar na reunião ministerial de 22 de abril, cujo vídeo foi denunciado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro e liberado em outra decisão do STF.

 

 

O objetivo de Bolsonaro era estimular a desobediência civil entre seus apoiadores, espraiados em cada unidade federativa cujos respectivos governador e prefeito optaram por tentar salvar vidas humanas através do isolamento social. Para tanto, pretendia transformar a milícia virtual dos tios e tias do WhatsApp, que votaram a presidente em 2018 sob alegação de não transformar o Brasil em Venezuela, em milícia armada. O apego do governo federal a essa fatia pouco tenra de senhores e senhoras de meia e terceira idade, de classe média e média-alta, cuja hipocrisia moral geralmente se revela nas práticas pessoais de “lazer”, não é sem razão.

 

 

Segundo a última pesquisa Datafolha, divulgada em 28 de maio e feita dois dias depois da divulgação do vídeo da reunião ministerial, Bolsonaro tem seu governo considerado ruim ou péssimo por 43% da população. Sua rejeição cresce a 56% entre os que têm ensino superior. E pula para 65% entre os jovens. Questionar a pesquisa, como fazem os 33% que ainda apoiam o presidente, é fruto de ignorância, má fé ou ambos. Em outubro de 2017, o mesmo Datafolha já apontava (confira aqui) que sem ex-presidente Lula, preso seis meses depois, um então antagonista do ex-BBB Jean Wyllys na Câmara Federal era o favorito às urnas presidenciais do ano seguinte.

 

Marechal Carlos Castello Branco, primeiro presidente da última ditadura militar do Brasil (1964/1985), já advertia sobre as “vivandeiras alvoroçadas”

 

Naquela época, provavelmente ninguém acreditaria em quem dissesse que, entre maio e junho de 2020, o país estaria discutindo seriamente a possibilidade de uma quartelada militar com base no artigo 142 da Constituição Federal. Após ter o filho sondado para assumir o lugar de Moro no ministério da Justiça e ter a irmã integrando a equipe ministerial da “goiabeira” neopentecostal de Damares Alves, até o jurista Ives Gandra já declarou publicamente que a “jabuticaba” constitucional não permite que as Forças Armadas sejam acionadas como Poder Moderador. Que, sem necessidade da formação em Direito, qualquer estudante de primário aprende ter sido extinto com o final do Brasil Império.

 

Gráfico em que as crianças do primário aprendem sobre o Poder Moderador, abolido no Brasil desde a proclamação da República, em 1889

 

 

Também seria difícil acreditar, dois ou três anos atrás, que algumas poucas dezenas de bolsonaristas aloprados, intitulados “300 do Brasil”, seriam capazes de fazer um protesto como a da madrugada do último domingo (31), diante do STF. Com uso de tochas e repetição de palavras de ordem, foi um pastiche escancarado das manifestações nazistas dos anos 1930 e do movimento supremacista branco dos EUA Ku Klux Klan (KKK), do séc. 19 até nossos dias. Os primeiros ficaram famosos por exterminar milhões de judeus e dissidentes políticos em câmaras de gás, antes de queimar seus corpos em fornos. Por sua vez, a KKK se notabilizou pela experiência secular de linchar negros e enforcá-los em árvores.

 

 

Os tais “300 do Brasil” tem no próprio título outro pastiche: o filme “300” (2006), de Zack Snyder. Que se baseia em um evento real de 480 antes de Cristo, quando 300 espartanos, mais militarizados entre os antigos gregos, ironicamente resistiram e morreram na batalha das Termópilas pela sobrevivência da democracia ainda em seu início. Ao presidente e seus apoiadores, o conhecimento de História costuma caracterizar o “inimigo”. Talvez por ser a maneira mais eficaz para não se repetir os erros do passado. Mas há orgulho da própria ignorância entre aqueles que o conservador Delfim Netto, homem-forte da economia brasileira durante nossa última ditadura militar (1964/1985), classificou (confira aqui) de “direita incultural”.

 

Bolsonaro ri ao posar na saída do Palácio Alvorada com a caneca do GDO (gabinete do ódio), apresentado como sua “milícia digital” (Repodução de vídeo)

 

Os tais “300” foram liderados por uma ex-prostituta e ex-feminista convertida em bolsonarista fanática. Que teve seus 15 segundos de fama após ser um dos alvos da ação da Polícia Federal (PF) no dia 27, gerada pelo “inquérito das fake news” no STF. Tem como alvo o “gabinete do ódio”, que opera dentro do Palácio do Planalto e, segundo a PF, é comandado (confira aqui) pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho 02 do presidente. Alvo também de CPMI do Congresso, parada por conta da pandemia, o esquema foi detalhado (confira aqui) por parlamentares ex-governistas. Conta com o apoio de empresários “amigos” na criação de fake news e sua disseminação através de robôs pelas redes sociais, responsáveis (confira aqui) por 55% das publicações bolsonaristas no Twitter.

No dia seguinte à operação da PF contra o “gabinete do ódio”, dois após ter elogiado a operação da mesma PF contra o governador do Rio, Wilson Witzel, outro ex-aliado convertido em desafeto, Bolsonaro assumiu de vez o palavreado da reunião ministerial: “Acabou, porra!”. Foi a senha para que se levantasse a “jabuticaba” do artigo 142, lançada no dia anterior por seu filho 03, o deputado federal Eduardo Bolsonaro. O ex-candidato a embaixador do Brasil nos EUA disse: “Eu até entendo quem tem uma postura mais moderada, vamos dizer, para não tentar chegar ao momento de ruptura (…) Mas falando bem abertamente, opinião do Eduardo Bolsonaro, não é mais uma opinião de ‘se’, mas de ‘quando’ isso vai ocorrer (…) E, depois, não se enganem: quando chegar ao ponto em que o presidente não tiver mais saída e for necessária uma medida enérgica, ele é que será taxado como ditador”.

 

 

Condenado e preso cor corrupção no Mensalão do PT, Roberto Jeffeson posa com fuzil como novo aliado do “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” (Twitter)

Menos difícil do que entender o dialeto de português empregado por Carlos em seus tuítes, é interpretar os motivos do clã. Parecem ser três: 1) os analistas que conhecem e acompanham o STF dão conta que o ministro Alexandre Moraes, responsável pelo “inquérito das fake news”, já tem elementos suficientes para incriminar Carlos; 2) seu pai, entre a desinteligência e a arrogância, assumiu publicamente a função do “gabinete do ódio”, que talvez entendesse ser da imprensa profissional que tanto odeia: “querem tirar a mídia que eu tenho ao meu favor”; e 3) com um STF unido como nunca contra os ataques e até ameaças de morte que tem recebido, em linha direta no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) presidido desde o dia 25 pelo ministro Luís Roberto Barroso, o uso ilegal das fake news pelo bolsonarismo poderia ser retroagido pela investigação à eleição presidencial de 2018.

Enquanto isso, acima do Equador, Donald Trump enfrenta seu período mais difícil à frente da presidência dos EUA. Se já estava ruim com seu negacionismo inicial da pandemia, que só reviu tarde demais para impedir que o país se tornasse o principal epicentro mundial da doença, piorou com crescimento galopante do desemprego. Que vitimou o ex-segurança de loja George Floyd, antes que o joelho de um policial branco sobre seu pescoço negro completasse sua aniquilação enquanto ser humano.

 

 

Depois ameaçar usar as Forças Armadas mais poderosas do mundo contra os jovens do seu próprio país, por conta do vandalismo de uma minoria, o que estava ruim para Trump, piorou. Os protestos cresceram e o vandalismo diminuiu, assim como a aprovação do presidente, inclusive entre seus correligionários republicanos. E até entre os neopentecostais, que já começaram a descer a “goiabeira” no país onde o movimento religioso foi criado. A diferença básica para o “Trump do Brasil”, como Bolsonaro gosta de ser conhecido, é que o original enfrentará eleições presidenciais em 3 de novembro, daqui a menos de cinco meses.

 

Protesto antirracistas unem a juventude dos EUA contra Trump diante da Casa Branca, em Washington (Foto: Jim Bourg – Reuters)

 

Renato Russo advertiria: “Ainda é cedo”. Mas se o moderado Joe Biden ganhasse a eleição ao cargo mais importante da Terra, após já ter liderado nas primárias democratas a maior virada da história política dos EUA, quando bateu o socialista Bernie Sanders, todo o eixo político do mundo mudaria a reboque. Já isolado pela União Europeia e em conflitos tolos e evitáveis com a China, nossa maior parceira comercial, o Brasil correria o risco real de se tornar um pária internacional. Mais ou menos como a Nicarágua, o Turcomenistão e a Bielo-Rússia, únicos países do mundo cujos governantes — todos ditadores — adotaram o mesmo negacionismo de quem foi eleito pelo voto popular para classificar a Covid-19 como “gripezinha” e “resfriadinho”.

 

Ex-vice-presidente de Barack Obama, o moderado Joe Biden será o o adversário de Trump na eleição presidenciais dos EUA, em 3 de novembro (Foto: Los Angeles Times)

 

O poema de Pessoa/Campos segue adiante com os versos: “És importante para ti, porque é a ti que te sentes./ És tudo para ti, porque para ti és o universo”. Ditos cristãos, mas aparentemente incapazes de se permear pelo princípio mais importante do cristianismo, que é a capacidade se colocar no lugar do próximo, Trump e Bolsonaro encerram seus universos em si mesmos. Prova disso, ontem (05) o primeiro tentou sair das cordas batendo no segundo sobre a pandemia: “Se você olhar para o Brasil, eles estão passando por dificuldades. A propósito, eles estão seguindo o exemplo da Suécia (com o isolamento vertical), que também está passando por dificuldades terríveis. Se tivéssemos agido assim, teríamos perdido 1 milhão, 1,5 milhão, 2,5 milhões de vidas, ou até mais”.

 

 

Depois de Bebianno, Levy, Santos Cruz, Mandetta, Moro e Teich, não seria espanto se algum bolsonarista usasse sua tocha para iluminar a conclusão de que Trump também é comunista. Na dúvida, olho nele, patriotas!

 

Publicado hoje (06) na Folha da Manhã

 

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