Covid, comércio, Eichmann e a copa das árvores
— É o mundo real, percebe? A Covid impôs a realidade ao mundo! — sentenciou Aníbal na varanda do seu apartamento à tarde, diante da tela do lap top aberto, antes de secar pela metade o copo em um gole longo de Original gelada. Combinou a cerveja real no encontro virtual com o amigo, por conta do novo fechamento dos bares e comércio de Campos, enquanto lá fora a copa das árvores balançava com o vento, tão invisível e real quanto o vírus.
— Está falando de quê? Da pandemia? De Campos e seu comércio, do Brasil de Bolsonaro, dos Estados Unidos de Trump a Biden? — indagou Luiz, estampado na tela do computador do amigo, lambendo do lábio superior o bigode de espuma deixado por sua tulipa de Heineken, na sala do próprio apartamento.
— Estou falando de tudo. Literalmente tudo. E estou só no primeiro copo de cerveja.
— Tudo é muita coisa. E falar de tudo é correr o risco de não falar de nada.
— Como diria Jack the Ripper, vamos por partes. Campos e seus comerciantes, por exemplo. Com o governo Wladimir, entraram o Chabell Kury e o Rodrigo Carneiro no lugar da Andreya Moreira, que comandou o combate à Covid no governo Rafael. A que saiu e os dois que entraram são três médicos infectologistas da mais alta qualidade. Com os quais Campos tem a sorte por ter formado e agora contar.
— E do outro lado tem comerciantes brigando para sobreviver.
— Perfeito. Embora quase todos abracem a neurose anticomunista de Bolsonaro e Trump, sem nunca terem lido Marx ou Górki, para se descobrirem pequeno-burgueses diante do espelho. E se legitimarem no conceito da luta de classes do primeiro. São os anticomunistas de WhatsApp. Como foram antes deles os marxistas de axila, aqueles que botavam o grosso “O Capital” embaixo do braço, mas nunca leram nem o fininho “O Manifesto do Partido Comunista”, para sair gritando palavras de ordem.
— Como diria Lula: “menas”, Aníbal. Não precisava nem puxar do fundo do baú o filósofo barbudo judeu alemão, ou o grande romanista russo. Com Russo no nome, é só lembrar do poeta do rock brasileiro dos anos 80. Não precisa nem gastar todos os nove minutos de “Faroeste Caboclo” para cantarolar ao comércio de Campos e promovê-los de tamanho: “E a alta burguesia da cidade/ Não acreditou na história que eles viram na TV”.
— Não dá para ser raso, Luiz. Renato não era. Tanto que o “Russo” que adotou foi em homenagem a Jean-Jacques Rosseau e Bertrand Russel. Do Planalto Central onde a Legião foi parida à planície goitacá, acho que o fechamento do Piccadilly foi um marco que assustou muito o comércio. Se um restaurante e bar com 30 anos de tradição fechou as portas físicas, o que podem esperar os demais comerciantes da cidade?
— O problema é que, em Campos, no Brasil e no mundo, todo o comércio está na banguela. Não é uma coisa só daqui. Nem as mortes da Covid, com gente caindo como moscas em toda a parte para o vírus.
— Para ficar no nosso canavial, o problema é que a rede de saúde de Campos já está colapsando pela Covid. Desde terça e quinta da semana passada, onde as vagas de UTI chegaram aos 100% de ocupação. E desta vez, diferente do que foi no lockdown parcial de Rafael entre maio e junho, o problema maior agora está na rede privada. Que atende quem tem plano de saúde, como os comerciantes. Quando um deles precisar e não conseguir vaga para internação em UTI, e não precisa nem ser para Covid, mas tiver que mendigar na rede pública um leito para sofrer menos e tentar sair vivo, aí talvez a ficha caia.
— Ou talvez não caia nunca. Sem nenhuma empatia pelo sofrimento do semelhante, provavelmente sociopatas, Trump e Bolsonaro abriram a caixa de Pandora. Depois deles, as pessoas que sempre esconderam seu pior lado, não só perderam a vergonha de mostrá-lo. Agora elas têm orgulho. Literalmente, não usam máscara.
— Sim, é o orgulho de ser filho da puta. O que não sei é se essas pessoas ficaram assim por conta de Bolsonaro e Trump, ou se sempre foram e só escondiam bem. Essa distorção cognitiva coletiva aparece na humanidade de tempos em tempos. É o conceito que a Hannah Arendt, judia alemã como Marx, chamou de “banalidade do mal”. Ela escreveu após assistir em Jerusalém ao julgamento de Adolf Eichmann, arquiteto da Solução Final para os judeus e outros “inimigos” da Alemanha Nazista, que exterminou 6 milhões deles em câmaras de gás e queimou seus corpos em fornos durante a II Guerra Mundial.
— E por conta disso o Mossad foi catar o Eichmann em Buenos Aires, em 1961, 16 anos após o suicídio de Hitler e a rendição da Alemanha. “Anjo da Morte” do campo de concentração de Auschwitz, o Josef Mengele nunca conseguiram pegar. Acabaria morrendo afogado no Brasil, nadando na praia paulista de Bertioga, só em 1979.
— Exato. Mas Mengele não foi exposto aos olhos do mundo como Eichmann. Que chocou ao ser revelado como homem de cinquenta e tantos anos, careca, com óculos e aspecto insignificante. Impressionou o tal mundo real por não ter pés de cabra, rabo pontudo, cornos de carneiro montês na testa, língua bifurcada de serpente ou tridente na mão.
— Verdade. Parecia só mais um sujeitinho medíocre, absolutamente normal, sem nada que chamasse a atenção. Como qualquer tio do WhatsApp de hoje — disse Luiz, enquanto um calafrio lhe subia pela espinha, na direção inversa à do outro gole da sua Heineken gelada.
— Como é que a Arendt definiu mesmo em seu “Eichmann em Jerusalém”? Peraí… — pediu Aníbal, até encontrar no pai dos burros do São Google e ler ao amigo de volta à tela do seu lap top: “Os membros fanatizados são intangíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte”.
— E o que dizer desses canalhas que fizeram campanha contra a “vacina chinesa” contra a “doença chinesa”, ecoando Bolsonaro, mas furaram a fila dos idosos e dos profissionais da saúde da linha de frente, na primeira etapa da vacinação com a CoronaVac?
— É dizer que o Rosseau de Renato Russo, Marx e o Cristo podem estar errados. Que o homem não é bom por natureza. E que ser filho da puta talvez seja a sua essência.
— Então Biden e seu discurso de união e valores humanos, na direção contrária, vão dar com os burros n’água?
— Espero sinceramente que não. Mas é como disse o ex-presidente conservador George W. Bush, que prestigiou a posse de Biden: “O futuro é algo que veremos amanhã” — citou Aníbal sem recorrer ao Google, matando a Original do copo antes de enchê-lo novamente, atento ao barulho do vento sobre as folhas na copa das árvores.
Publicado hoje na Folha da Manhã