“Vivam seus amores” — Ícaro, Helinho, Lusitano e Francisco

 

Ícaro Paes Pasco Abreu Barbosa, Helihho de Freitas Coelho, Luiz César Henriques Lusitano e Fancisco de Assis Pessanha (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

 

“Vivam seus amores”

Por Aluysio Abreu Barbosa e Renato Kemp Lusitano

 

Este tem sido um ano de muitas perdas para Campos. Algumas, como a do jornalista Ícaro Paes Pasco Abreu Barbosa, meu único filho, com apenas 23 anos, foram devastadoras a mim, sua mãe, a também jornalista Dora Paula Paes, e nossas famílias. Sofrer a perda de um filho tão especial para tantos, mesmo tão jovem, traz na mais indizível das dores duas virtudes: a certeza de que a vida não pode reservar foiçada mais funda na alma, bem como uma empatia à flor da pele com perdas de pessoas caras a nós e igualmente capitais aos seus familiares.

Depois da partida precoce do meu filho, em 13 de maio, veio a morte do professor, advogado, historiador, ex-vereador, músico e escritor Hélio de Freitas Coelho, em 29 de junho, vítima de um infarto aos 75 anos. Esta semana, os alvos da “frecheira veloce”, como a chamava o grego Homero, pai de todos os poetas, foram dobrados. Na quarta, dia 19, morreu de câncer, aos 74 anos, o odontólogo e ex-diretor que marcou época na Faculdade de Odontologia de Campos (FOC), Luiz César Henriques Lusitano. E, no final da madrugada de ontem, dia 21, o advogado e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), Francisco de Assis Pessanha, também vítima de câncer, aos 82 anos.

Conheci os três. E posso dizer que fui deles amigo. Helinho, por conta da literatura, quando ele presidiu a Academia Campista de Letras (ACL) nos anos 2010, e da música associada à boemia, antes e depois. Lusitano, nos anos 1990 em que ele levou o também saudoso diretor teatral e poeta Antônio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi, morto em 2015, para tentar humanizar a formação dos futuros dentistas com teatro. Com os alunos da FOC e carta branca do seu diretor, Kapi fez montagens teatrais históricas em Campos, como “Gota D’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, em 1995, para inaugurar um Trianon ainda no esqueleto e cobrar a conclusão da obra. Depois, nos anos 2000 e 2010, voltaria a encontrar Lusitano e Kapi como amigos de copo e mesa de bar, na Toca dos Amigos, hoje Vovó Dizia, na rua Pero de Góis.

De Francisco e sua família me aproximei nos anos 1990. Tive a oportunidade de comer churrasco carinhosamente preparado por ele, dividindo algumas garrafas de cerveja e nossa paixão em comum pelo futebol, a despeito dele ser torcedor fanático do Fluminense e eu do Flamengo, na casa em Atafona da família Lopes de Carvalho, da sua esposa Rosely. Depois que aquela casa ficou com Roselaine, cunhada de Francisco, ele comprou uma outra residência em Atafona nos anos 2000. Fácil de se identificar ao longe, pela enorme bandeira do Fluminense sempre hasteada alta, tremulante ao vento nordeste. Quase vizinha à minha, a conheci ao seu convite para comer caranguejo e comungar outras garrafas de cerveja, em meio a tantos outros encontros casuais, nessa lida tão tipicamente atafonense.

Estava pensando em todos esses encontros diante do desencontro da morte. Nesses “momentos que ficarão perdidos para sempre, como lágrimas na chuva”. Como diz antes de morrer o androide interpretado pelo holandês Rutger Hauer no clássico do cinema “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott. Até que o empresário Kid Soares, meu vizinho de prédio e amigo em comum com Lusitano, mandou na manhã de ontem um texto sobre ele. Foi escrito por seu filho, o advogado e produtor rural Renato Kemp Lusitano. Da minha própria condição de órfão de filho e pai, só posso endossar o conselho parido da dor:

— Não percam o tempo de vocês, amigos. A oportunidade é hoje. Vivam seus amores.

Abaixo, como homenagem a Helinho, Francisco e Lusitano, o pungente testemunho do filho deste:

 

“Eu nunca fui bom em saber o que dizer, ao contrário dele, que era o melhor orador que conheci. Era um poeta, sem escrever uma palavra. Vivia a poesia em tudo. Ele comia devagar, amava o gosto de tudo. Não sonhou com a vida mais cara do mundo, e teve a vida com que sonhou. Era do arroz e feijão, e era da moqueca de robalo. Era do whisky e da cachaça. Era de casa e do bar. Era o melhor amigo que alguém poderia ter, mas era um pai duro e exigente para mim. Um coronel de trincheiras. Ele me ensinou a sentir frio e fome sem reclamar. Meu pai me ensinou a tolerar a dor e manter a calma. Meu pai foi minha grande escola, porque ensinou meu espírito a encontrar a paz no campo de batalha. E a vida sempre foi isso para nós. Entre nós e fora de nós, Deus nunca facilitou. E, no fim, nós estávamos juntos, na pior batalha que enfrentamos juntos: o câncer. Meu pai não desanimou um dia. E sentiu medo todos os dias. Assim como eu, ele achou a morte nos visitaria, muitas vezes. E ela errou a investida, até cansar.

Meu pai resistiu a um câncer agressivo, que lhe tomou a visão de um olho, parte do raciocínio e parte do equilíbrio, lhe entregando meses e anos de sofrimento, mas eu nunca cheguei à casa e o encontrei rendido. Meu pai se manteve de pé até a doença cansar de bater.

Nós nos amamos como os melhores pais e filhos poderiam fazer. Fomos nossos melhores amigos que brigam e nossos soldados mais confiáveis. Nós cobrimos as costas um do outro até o último segundo.

Eu e meu pai vivemos a melhor aventura que dois seres humanos, pai e filho, seriam capazes de viver. Juntos, confiando um no outro, até o fim.

Peço a todo momento que Deus me conceda a oportunidade de encontrar aquele espírito de novo, o quanto antes, como for. E nós nos amaremos demasiadamente de novo, e nos divertiremos absurdamente de novo, e brigaremos inadvertidamente e nos protegeremos incondicionalmente, vivendo de novo mais uma melhor aventura que dois seres humanos, talvez pai e filho, poderiam viver.

Não percam o tempo de vocês, amigos.

A oportunidade é hoje.

Vivam seus amores”.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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