Felipe Fernandes — Holocausto por “Zona de Interesse”

 

 

Felipe Fernandes, filmmaker publicitário e crítico de cinema

Banalização da violência e a experiência cinematográfica

Por Felipe Fernandes

 

Passado o título, a tela se mantém escura e a assombrosa trilha de Mica Levi toma o espectador, até que pequenos sons naturais surgem, nos levando a imagem de uma família à beira de um lago. Toda essa abertura sintetiza muito da proposta do longa, o som assustador em mistura com o cotidiano de uma família alemã.

Baseado no livro de Martin Amis, o filme dramatiza a história real da família Hoss, cujo patriarca é o comandante de Auschwitz e vive uma vida confortável com sua família na casa dos sonhos “construída” pela matriarca Hedwig, tudo separado por muros com o campo de extermínio nazista. Um espaço que divide o cotidiano de uma família com os maiores horrores da humanidade.

É sempre complexo narrar uma história do Holocausto sobre a ótica nazista. Glazer compreende essa problemática e filma a família sempre com planos abertos e a câmera distante. Mantendo sempre um distanciamento do espectador para os personagens, sem nunca construir nenhum tipo de empatia ou envolvimento com os personagens.

Nesse sentido, o roteiro do próprio Glazer explicita muito da forma como os nazistas entendiam aquela situação. A cena em que Hedwig apresenta seu jardim para a mãe é emblemática. O fato de pessoas normais serem responsáveis por um dos momentos mais terríveis da humanidade, torna tudo ainda mais assustador.

O longa mistura histórias reais para construir sua narrativa. A menina que durante a noite deixava comida no campo e surge quase como um fantasma nas lentes das câmeras termais, existiu de fato. Assim como a música da partitura na cena do piano, uma das mais bonitas do longa, que foi composta por um sobrevivente. Dentro da narrativa, funciona para reforçar não só a resistência dos judeus, quanto para mostrar como a música é universal e não precisa de compreensão para ser sentida.

Construída como uma única grande locação, a casa foi construída por inteiro. Glazer busca reproduzir aquela dinâmica em todos os detalhes. Reconstruindo a casa de forma minuciosa, usando como base as fotos reais, o design de produção busca uma fidelidade extremamente necessária para a experiência que o longa busca causar.

Poucas vezes o som foi tão indispensável narrativamente quanto nesse longa. Acompanhamos o cotidiano da família, enquanto ao fundo se ouve constantes sons de tiros, explosões e gritos, tudo tratado como parte da natureza sonora daquele lugar.

Glazer não mostra o interior do campo em nenhum momento, deixando que o som trabalhe como uma sugestão, com o próprio espectador completando visualmente o que acontece, uma forma extremamente eficaz e assustadora de trabalhar com a experiência pessoal de cada um, fazendo do espectador parte da experiência cinematográfica.

O terceiro ato traz uma mudança inesperada que funciona como uma grande provocação, questionando se de alguma forma todos nós também não banalizamos não só os atos terríveis que aconteceram no passado, mas os atos presentes, enquanto nos trancamos dentro de nossos próprios muros.

“Zona de interesse” é uma experiência cinematográfica, que fala da banalização da violência, enquanto nos leva por uma história absurda e através da sugestão do som e de algumas poucas imagens, nos faz vivenciar sentimentos terríveis sobre um dos momentos mais assustadores da humanidade. É um daqueles filmes que saem contigo da sala de cinema e ressoam em você.

 

Publicado na Folha da Manhã.

 

Confira aqui outra crítica do filme, pelo jornalista Edmundo Siqueira, e abaixo o trailer do filme:

 

 

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