Morto na manhã de hoje por complicações pulmonares, aos 59 anos, André Luiz Pinto da Silva, o Bicho André, tem seu velório acontecendo, desde o final da tarde de hoje (30), na Capela F do Campo da Paz. Onde será sepultado às 10h da manhã desta terça (1º).
Conheci o Bicho André, bar e dono homônimo, nos anos 1990. Jovem, fui a algumas apresentações de rock e no espaço da rua Lacerda Sobrinho, mesmo local que manteria nas três décadas seguintes. Antes, era em área bem maior que a atual, com espaço para shows e mesas de sinuca, que cederia lugar a um estacionamento.
Na segunda metade daquela década marcada pelos meteoros na música do Nirvana e de Cássia Eller, como pelo surgimento de Quentin Tarantino no cinema, namorava a jornalista Dora Paula Paes. A quem levei a um show de cover do Legião Urbana no Bicho André, já após a morte de Renato Russo em 1996.
Não lembro bem o ano, mas nossa presença naquele show parece ter marcado o André. Com quem perderia contato nos anos seguintes. Até que meu filho único, Ícaro, após sair da casa da mãe para morar comigo na pandemia da Covid-19 em 2020, foi depois morar sozinho em um flat no Soho, na Conselheiro Otaviano. E, por questão de proximidade física e identificação musical, passou a frequentar o Bicho André.
A partir do convívio entre os dois, que derivou numa grande amizade, apesar da diferença de idade, foi André quem contou a Ícaro que eu frequentava o mesmo bar quando jovem. Inclusive quando, antes do meu filho nascer e eu namorava a sua mãe, sobre aquele cover do Legião Urbana que fomos juntos. Como na música de Belchior: “Ainda somos os mesmos e vivemos/ Como os nossos pais”.
Entre janeiro e fevereiro de 2023, quando Ícaro e eu viajamos pelos três continentes do Velho Mundo, entre Holanda, Egito, Israel, Palestina e França, no convívio mais estreito do mesmo quarto durante quase dois meses, percebi o quão íntima era a relação do meu filho com o André. Como com aqueles que compunham o multifacetado universo do Bicho André.
Diferenças de fuso horário à parte, a comunicação virtual de Ícaro com André e os amigos do Bicho André era tão constante quanto com a sua própria família. Depois que meu filho morreu precocemente, em 13 de maio de 2023, André me procurou e chamou para conversar. Falou que inauguraria no Bicho André uma foto de Ícaro, homenagem que colocou na parede entre duas placas de Amsterdã que meu filho trouxe da viagem para ele.
Cerca de um mês e meio após a morte de Ícaro, na fase mais difícil da minha vida, como penso ser para qualquer ser humano, a homenagem de André foi marcada para o sábado de 27 de maio de 2023. Pediu que eu chegasse antes dos demais, para que pudéssemos conversar a sós em sua casa, anexa ao bar. Quando me contou da sua relação com meu filho e as histórias dele no bar. E repetiu várias vezes: “Você era o grande ídolo, o herói de Ícaro”.
André reforçaria esse testemunho mais particular no Folha no Ar que gravamos em 6 de junho do ano passado, com seis entrevistados, entre fontes, colegas de trabalho e amigos de Ícaro, para falar dele como homem e jornalista. Como sempre teve as mesmas palavras de carinho para com Dora, mãe do meu único filho. Dedicou a pais dilacerados de luto, de certa maneira atenuando-o, uma generosidade e um carinho ainda maiores que os seus 1,87m e 110 kg.
Da importância de André para o cenário do rock e blues de Campos, uso o testemunho do músico e cientista político e George Gomes Coutinho, professor da UFF-Campos:
“André foi uma peça crucial na história do rock e do blues em Campos dos Goytacazes. Seu bar, justamente o Bar Bicho André, foi palco de diferentes manifestações culturais e subestilos do rock, indo do metal extremo até experimentos de blues em jam sessions intermináveis.
André organizou, sediou, bancou, com sua cultura pessoal anti-manager e maluco beleza, nada menos que até mesmo mini-festivais em seu bar, animando uma cultura underground com tão poucos espaços cativos para se manter pulsante na planície. Portanto, jovem rocker que me lê, se você tem lugares a frequentar e curtir hoje em Campos, é por conta de malucos como o André que seguraram a marimba permitindo a transmissão desta cultura rebelde contra diferentes modismos que sempre se impuseram sobre a cidade.
Andrezão, Rest In Power, meu querido! Podes crer, dentre outras tantas coisas, sua canja de galinha, feita com um tempero maluco com alfavaca, sal, pimenta, alho, tudo batido no liquidificador, segue incomparável! Obrigado por tudo!”
Nessas coincidências que não há, soube do estado de saúde grave de André no domingo, pouco antes de voltar do Rio, onde tinha ido assistir na quinta (26) ao show de Eric Clapton. O quarto dele no Brasil. Que já tinha testemunhado em 1990 e 2001, no palco do samba da Apoteose. E, em 2011 e em 2024, na mesma casa de espetáculos de Jacarepaguá, HSBC Arena 13 anos atrás e hoje rebatizada Farmasi Arena. Onde, como tínhamos planejado ir juntos, pensei várias vezes em Ícaro.
Escrevi até a linha de cima, quando parei para ir ao velório de André, no final da tarde de hoje. Fui o primeiro a chegar e ajudei um funcionário da funerária e outro do Campo da Paz a trasladar seu caixão do rabecão ao carrinho do cemitério. Que, após eu falar algumas breves palavras, o conduziu à mesma Capela F em que meu filho foi velado. Depois de mim, chegou o Márcio Merreca, baterista de rock e amigo há 40 anos de André.
Márcio me disse que conheceu Ícaro no Bicho André. Informei a ele para onde o corpo tinha sido levado, para ser velado, e que visitaria meu filho. Caminhei sozinho até o seu túmulo, em trajeto já bem decorado, onde contei o que havia acontecido com André e do show de Clapton. Que, se não pudemos ir juntos, fui com sua camisa que compramos num dos bazares em que judeus, árabes e cristãos convivem na Cidade Velha de Jerusalém.
Só após verbalizar os dois acontecidos a Ícaro, lembrei que tinha gravado vídeos de cortes do show de Clapton. E, como tinha postado na noite anterior no Instagram, com André ainda vivo, coloquei para rolar no celular trechos da execução dos blues “Hoochie Coochie Man”, de Willie Dixon para Muddy Waters, e de dois outros do mestre Robert Johnson: “Kind Hearted Woman”, onde Clapton trocou a Fender Stratocaster pela viola, e “Crossroads”.
Despedi-me para retornar, entre encruzilhadas de humanos mortos, azaleias e anuns galegos vivos, ao velório de André. Mais do que grande amigo, ele foi um “pai adotado” por Ícaro. O que faz dele meu irmão. Se algo depois daqui houver, e espero sinceramente que haja, arrefece a tristeza pensar em Carô recebendo o Bicho André para colocarem o papo em dia e comungar uma gelada. Que Deus guarde a ambos. Sob os três acordes do blues.
Que linda homenagem ao meu tio, muito obrigada pelo carinho, q ele e seu amado filho possam se reencontrar novamente!
Cara Roberta Pessanha da Silva,
Como dito no texto, André foi um “pai adotado” por meu filho. O que faz dele meu irmão. Sim, que Carô e ele possam se reencontrar novamente. E guardem nosso lugar à mesa.
Obrigado pelo retorno!
Aluysio