Após 27 anos como juiz, Elias Sader fala da carreira, Campos, STF e fé

 

Aposentado (confira aqui) na última terça (30), após 27 anos de magistratura, os últimos 18 como titular da 3ª Vara de Família de Campos, Elias Pedro Sader Neto é natural de Niterói, onde também trabalhou como juiz, mas se considera cidadão campista. “Dois dos meus três filhos nasceram aqui. Minha mulher também é natural de Campos”, disse em entrevista à Folha. Na qual falou dos casos que mais o marcaram como magistrado e do seu juízo sobre a cidade que adotou: “A maior do interior, com boa qualidade de vida, mas com pouca perspectiva para os mais jovens”.

Formado também em teologia e ordenado pastor batista, embora não exerça o ministério, Elias falou da possibilidade de abraçar essa carreira após sua aposentadoria como juiz. E estabeleceu paralelos teóricos entre as duas áreas. Com quase 30 anos dedicados à magistratura, deu juízo severo à condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado: “O STF condenou o Bolsonaro pelo desejo do golpe, por uma realidade psíquica e não por um fato minimamente idôneo. A fidedigna expressão ‘trama golpista’ só foi adotada em razão de desconhecimento jurídico daqueles que torciam pela condenação do Bolsonaro”.

 

Juiz Elias Pedro Sader Neto (Foto: Divulgação)

 

Folha da Manhã – Do início na magistratura em 1998 até a aposentadoria em 30 de setembro de 2025, quais foram suas experiências e casos mais marcantes? Por quê?

Elias Pedro Sader Neto – Não haveria espaço aqui para relatar, ainda que sucintamente, tantas experiências marcantes e diferentes. Algumas muito dramáticas, como um júri em SFI, envolvendo um homicídio de um bebê de 10 meses. O réu, com raiva da mãe, partiu o bebê ao meio. Por outro lado, trago na memória, com terna lembrança, o caso de um registro tardio requerido por um lavrador, de 76 anos, que precisando tirar seus documentos para se aposentar, buscou o Poder Judiciário. Partiu meu coração vê-lo entrar descalço na sala de audiências de SFI. Dizia ele que tinha 76 anos, mas aparentava mais. Dias depois voltou trazendo um queijo numa sacola plástica, como gesto simples de gratidão. Eu, que sempre orientei o pessoal do cartório para não aceitar presentes, vi-me na contingência insuperável de ter que aceitar o queijinho daquele senhor. A pureza da imagem e do gesto daquele homem me atingiu em cheio.

 

Folha – Natural de Niterói e juiz titular de São Francisco de Itabapoana de 2000 a 2004, da 2º Vara de São João da Barra de 2004 a 2007 e da 3ª Vara da Família de 2007 a 2025, considera que já se tornou campista? Como magistrado e cidadão residente, que juízo formou sobre Campos e região?

Elias — Sim, considero-me cidadão campista. Dois dos meus três filhos nasceram aqui. Minha mulher também é natural de Campos. Vejo Campos como uma cidade com grande potencial, situada entre duas capitais brasileiras e favorecida por recursos da exploração do petróleo, mas que, lamentavelmente, não tem conseguido atrair ou promover atividades produtivas na proporção do seu porte populacional e geográfico. É a maior cidade do interior, com boa qualidade de vida, mas com pouca perspectiva para os mais jovens. Espero que esse cenário possa mudar em breve.

 

Folha – Antes de São Francisco, atuou como juiz também no Rio de Janeiro, em Niterói, Itaperuna, no Noroeste, e Conceição de Macabu, já no Norte Fluminense. Da zona metropolitana da capital ao interior, que visão formou do povo fluminense em relação ao cumprimento da lei?

Elias – Nenhuma peculiaridade vi que pudesse destacar no que tange ao cumprimento da lei, mas posso afirmar que a sociedade, de um modo geral, sofreu profundas transformações nos últimos anos, o que afetou as práticas sociais, nos valores e costumes, e a ciência do Direito. Nesse tempo, vi o ocaso do positivismo jurídico, que limitava a atividade do juiz à mera subsunção do fato à norma, e o surgimento do neoconstitucionalismo, do pós-positivismo e do ativismo judicial.

 

Folha – Formado em 1989, trabalhando como advogado de 1990 a 1993 e como oficial de Justiça em Belo Horizonte de 1993 a 1997, o que levou dessas experiências aos seus 27 anos de exercício da magistratura? Considera ter sido um juiz mais completo a partir delas?

Elias – Boa pergunta. Creio que toda experiência profissional é sempre proveitosa àquele que é zeloso com a tarefa que lhe foi confiada e cuidadoso com as pessoas com quem tem que se relacionar. “Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas” (verso da Irmã Judith Junqueira Villela, em seu poema “Um pouco de perfume”, musicado pela Irmã Irene Gomes). Nossas experiências têm sempre a nos ensinar, não podemos desprezá-las, nem mesmo aquelas que reputamos mais simples. Tem um hino do Cantor Cristão (hinário das Igrejas Batistas do Brasil) que diz: “Não somente pra fazer um feito singular é mister agir com muito ardor. Mas as coisas mais humildes por executar, deves fazê-las com fervor”.

 

Folha – Do julgamento do Mensalão do PT em 2005, passando pela prisão de Lula em 2018 após ser condenado por corrupção na Lava Jato, à condenação de Bolsonaro (confira aqui e aqui) em 2025 por tentativa de golpe de Estado, o protagonismo do STF e do Judiciário se tornou uma questão que divide opiniões no Brasil. Como vê?

Elias – Essa é a pergunta do milhão. Creio não ter aqui espaço para respondê-la como gostaria. Por uma questão de brevidade, acho que só uma nova Constituinte seria capaz de dar conta de tantas distorções. A começar pela forma de constituição do STF, totalmente anacrônica para esse novo tempo. Não é possível que alguém pretenda ser o juiz do caso em que sua mãe é a ré e ainda pretender ser respeitado. É como vejo o STF hoje, apenas por percepção objetiva dos fatos, sem querer desmerecer a quem quer que seja. Pessoas nomeadas para um cargo vitalício de ministro passaram a julgar, sem constrangimento algum, questões políticas do maior interesse daquele que as nomeou. Isso não pode continuar assim. Sobre o Bolsonaro, também tenho opinião objetiva e técnica, livre de paixão política ou ideológica: ele só não deu o golpe porque não teve condições. E, por isso mesmo, por insuficiência de meios, não iniciou sua execução. Não consigo superar o fato de que, em 8 de janeiro de 2023, o presidente Bolsonaro já havia nomeado os ministros militares indicados pelo presidente Lula, e se encontrava fora do país. Esse é o fato; o resto é vontade de condenar, ativismo judicial indevido. Querer praticar um crime é algo impunível enquanto sua execução não tiver início. Não é possível, tecnicamente, num crime de consumação antecipada, antecipar-se também o seu início de execução para a etapa da cogitação. No entanto, o STF condenou o Bolsonaro pelo desejo do golpe, por uma realidade psíquica e não por um fato minimamente idôneo. A fidedigna expressão “trama golpista” só foi adotada em razão de desconhecimento jurídico daqueles que torciam pela condenação do Bolsonaro. Tramar é impunível, até que a lei, de modo expresso, diga o contrário. Juiz não pode ter vontade de condenar. Quando isso acontece, a imparcialidade, base do julgamento justo, foi para o ralo. Daí em diante, o melhor que o juiz pode fazer é deixar o caso.

 

Folha – Além do Direito, tem formação também como teólogo. Na Antiguidade, sobretudo no Velho Testamento da Bíblia, a teologia funcionava também como códigos civil e penal. E legou a moral que orienta os códigos modernos que hoje vigoram em países laicos. Como vê essa influência na história do Direito ocidental e em sua carreira de magistrado?

Elias – Até certo momento, quando ainda vigorava o positivismo jurídico e a força normativa dos princípios era mais contida, as regras de interpretação do Direito se cambiavam com muitas regras de interpretação bíblica. De 20 anos para cá o laço social, o compromisso entre as pessoas, antes verticalizado, com causa em Deus e representação no patriarcado, se horizontalizou, passando a mitigar o poder religioso até então conhecido. Em seguida, o mundo dos irmãos passou a postular a justiça social como a nova religião civil e a suprimir a “igualdade material” de Aristóteles pela “igualdade caótica”, que se confunde com indistinção, com isonomia pela indistinção. Passamos a ser todos iguais porque não pode haver distinção, como se isso fosse possível e como se a desigualdade fosse sempre um mal, quando muitas das vezes é da ordem do fenômeno, como a lei da gravidade. Toda escolha que fazemos é meritocrática: ninguém escolhe o pior quando pode ficar com o melhor, salvo por ato de amor. Portanto, toda escolha promove uma distinção.

 

Folha – Ordenado pastor batista, não exerce ministério atualmente. É uma carreira que pretende seguir a partir da aposentadoria como juiz? Como vê o avanço das religiões evangélicas no Brasil e a perspectiva weberiana dessa influência na população, sobretudo as de classe média baixa e baixa, na cultura do empreendedorismo?

Elias – Essa questão pastoral está em aberto. Não tenho nada em vista no momento, mas estou sempre pronto a obedecer a voz de Deus, com um sonoro “Eis-me aqui” (Abraão a Deus em Gênesis 22:1). Sobre o avanço das religiões evangélicas tenho a dizer que nunca me impressiono com números e que prefiro a qualidade. Fico triste quando vejo irmãos rompendo relacionamentos por polarização política. Acho que todo cristão precisa ser um fundamentalista bíblico, isto é, conhecer as Escrituras e, sobretudo, praticá-las em amor. A palavra de Deus é plena de princípios capazes de trazer prosperidade material, existencial e espiritual. Como disse o Padre Antônio Vieira em seu “Sermão da Sexagésima”, o problema da falta de germinação nunca é da semente, que é a Palavra de Deus, mas do solo, que é nosso coração. Mesmo quando ela não frutifica, por causa do solo ou do ambiente, continua com potencial para germinar.

 

Página 6 da edição de hoje da Folha da Manhã

 

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