Marcelo Amoy — Uenf: a conquista de um sonho

 

Zuleima de Oliveira Faria com a medalha Darcy Ribeiro

Não é de hoje que nossa cidade tem sido reconhecida como um polo universitário de grande importância regional — importância que precedeu a criação da Uenf. Desde antes de eu nascer e avançando décadas em minha vida, de vez em quando se falava na (importância ou necessidade de) criação de uma universidade aqui por nossas bandas — sonho que sempre era frustrado por motivos variados. Na impossibilidade do sonho completo, partes dele foram sendo construídas por alguns valentes que simplesmente não desistiam. Assim, em 07 de março de 1960 aconteceu a primeira aula na Faculdade de Direito (refundada depois de décadas — já tivemos outra antes, que fechou); em 06 de abril de 1961 foi fundada a Faculdade de Filosofia; em 14 de outubro de 1967 inaugura-se a Faculdade de Medicina; e em 19 de janeiro de 1972 junta-se ao grupo a Faculdade de Odontologia — todas “de Campos”, embora a serviço de toda a região. Por muitos anos, a oferta de cursos foi limitada aos oferecidos por essas quatro grandes instituições e mesmo a vinda da Faculdade Candido Mendes não mudou o fato de que não tínhamos uma universidade. [Só mais recentemente Campos recebeu várias outras instituições de ensino superior, que passaram a oferecer os incontáveis cursos de que a cidade dispõe hoje.]

A crise econômica do final dos anos 80 agravou a já (constantemente) periclitante situação financeira das quatro faculdades locais e eu me lembro bem que essa dificuldade fez com que elas se unissem para pleitear uma participação pública em sua manutenção. O plano original era que elas fossem encampadas pelo Estado, que passaria a geri-las, oferecendo mais cursos e fazendo com que surgisse uma “Universidade de Campos”. Sou testemunha ocular da imensa dedicação e do gigantesco trabalho empreendido nesse sentido pelos dirigentes de nossas quatro faculdades naquela época. Ainda que eu peça desculpas por não citar todos, não posso deixar de mencionar alguns nomes envolvidos naquele processo – lembrados pelo meu afeto pessoal e proximidade: os drs. Geraldo Venâncio e Osvaldo Cardoso de Melo; as estimadas professoras Maria Thereza Venâncio, Cacaia Martins e Ruth Maria Martins; a inteligentíssima educadora e poeta Véra Passos e a inestimável educadora, professora e dr. Zuleima de Oliveira Faria (minha saudosa tia e “mãe-drinha”). No entanto, os planos mudaram.

A ambição do governo do Estado do Rio de Janeiro foi maior do que a nossa, daqui de Campos. Numa reviravolta, algo por definição inesperado e surpreendente, o Estado nos propôs ir bem além do que estávamos pleiteando. Se, por um lado, as quatro instituições locais seguiriam tendo que administrar seus problemas financeiros por sua própria conta, sem a ajuda estatal, por outro a cidade seria presenteada com um projeto moderno de universidade que nem sequer tinha sido sonhado — pelo menos não daquele jeito que Darcy Ribeiro nos propunha. O grupo de trabalho original se desfez, então, e uma nova equipe foi designada pelo governador do Estado — equipe na qual, se não me falha a memória, do grupo original só a professora Zuleima Faria continuou. Pude seguir acompanhando, então, muitos dos bastidores da criação da Uenf e chego a ter orgulho das vezes em que transportei documentos importantes daqui para o Rio e vice-versa — em busca de assinaturas urgentes e zelando pelo sigilo demandado. Mesmo não sendo mais que um mensageiro, naquelas viagens me sentia um sacerdote.

O primeiro reitor da Uenf, Dr. Wanderley de Souza, escreveu em janeiro de 2013 que a Uenf foi imaginada como “uma instituição inovadora,comprometida com a existência de um corpo docente constituído exclusivamente por pesquisadores com doutorado motivados a desenvolverem projetos em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país e a formarem recursos humanos de alto nível”. Na mesma ocasião, ele também escreveu: “Cabe ainda registrar o fato de que a Uenf não é apenas uma bela experiência acadêmica que uniu Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Oscar Niemeyer e centenas de professores, alunos e servidores. É uma experiência que deu certo. Hoje oferece dezessete cursos de graduação para 4 mil alunos e 14 cursos de pós-graduação para cerca de mil alunos. Já graduou, ao logo de seus dezenove anos de existência, mil e oitocentos alunos e deu origem a cerca de 2 mil e quatrocentos teses de mestrado e doutorado.” Eis aí o panorama do que estamos arriscados a perder.

Não quis o destino (até hoje, pelo menos) que eu estudasse ou trabalhasse na Uenf, mas a universidade me é próxima por empréstimo aos anos e ao amor que minha madrinha Zuleima dedicou às suas instalação, fundação e consolidação – é que depois de funcionando, tia Zuleima foi a coordenadora acadêmica da Universidade por 14 anos, até 2007. Assim, desde o começo dos anos 90, por praticamente duas décadas a Uenf esteve dentro da minha casa, fazendo parte da minha família. É como membro da família que a vejo agonizar em praça pública e me sinto impotente para socorrê-la. O que posso fazer frente um Estado destruído por irresponsabilidade, má gestão e corrupção? Não é por implicância que falta dinheiro para a Educação – falta para tudo, inclusive para o básico: o salário do funcionalismo. O que podemos sacrificar para salvar a Educação – e, no panorama estrito: o que podemos sacrificar para salvar a Uenf? É preciso que façamos algo, mas… o quê?

Em 2011, a Uenf homenageou sua ex-servidora Zuleima com a mais alta comenda da instituição, a medalha Darcy Ribeiro. Na ocasião, ela relembrou vários fatos da história da universidade e de sua fala pincei o seguinte trecho: “Depois de quatro anos afastada, volto à Uenf e fico assustada. Novos prédios, esse magnífico Centro de Convenções, a expansão dos cursos para outras regiões do Estado do Rio e principalmente pelo seu compromisso social, que está se fazendo notar.” Bom que a surpresa dela na época era positiva e se evidenciava pelo avanço da Uenf como uma instituição transformadora de toda a nossa região. Como ela ficaria assustada, decepcionada e arrasada se tivesse vivido pra ver o estado em que a Uenf se encontra hoje… No seu falecimento, em julho de 2013, a coroa de flores enviada pela Uenf trazia a mais linda das mensagens para quem dedicou a vida inteira ao desenvolvimento do ensino superior em nossa cidade: “Descanse em paz, Zuleima, levando a certeza de que sua obra continuará.”

Não sabemos hoje se essa obra continuará – e se continuar: a que duras penas? Semana passada, a Casa de Cultura Villa Maria foi fechada por falta de energia – sem prazo para reabertura. Antes, a falta de verba já impedia a renovação de contrato de segurança dos campi – oportunidade infelizmente aproveitada por ladrões e vândalos. Falta de tudo na universidade, menos vontade de vencer as dificuldades e prosseguir. Confesso que eu gostaria de ter uma sugestão inteligente pra alardear e salvar a Uenf como num passe de mágica ou invocar um “deus ex machina” e… pronto: tudo resolvido. Mas o espanto é tanto que até agora só fui capaz de sentir e demonstrar um choque profundo pelo estado das coisas. Estagnação.

Não sei se devo me desculpar por nem tentar separar as camadas de sentimentos (até) contraditórios que este texto evidencia. Amor e morte; orgulho e perda; sucesso e fracasso; urgência e paralisia. Contudo sei que não quero (nem poderia) separar minha relação com a Uenf da que tive com minha madrinha: por isso a foto dela lá em cima, orgulhosa de sua obra, com a medalha Darcy Ribeiro no peito e um sorriso de alma inteira e de dever cumprido. Lamento se considerarem este texto mais pessoal do que o adequado; mas garanto que meu lamento é por todos (ainda que eu o sinta como ninguém mais). Sei que precisamos colocar um sorriso desses em nossos rostos também – todos nós, cidadãos campistas – e nos unirmos em defesa de nossa universidade. Porque ela é NOSSA.

Não sei o que fazer, mas farei junto com quem souber.

Assim… passo a palavra.

 

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