Guilherme Carvalhal — Naquela ala do hospital

 

 

 

Quando os enfermeiros chegaram para a troca de plantão às sete da manhã na ala psiquiátrica, assustaram-se com o paciente amarrado a cordas na cama e visivelmente dopado. Janaína, que assumia a chefia de enfermagem, vasculhou a ficha e se espantou com a dose de medicação aplicada, não conveniente para tratar um paciente, mas para dar um cala a boca em uma pessoa desagradável.

A ficha daquele paciente indicava problemas de alcoolismo, que desencadeava em ímpetos suicidas e crises de alucinação. Deu entrada às nove da noite, salvo por um grupo de passantes que o encontrou na beirada da ponte falando em se jogar e o impediu. Depois acionados, os bombeiros o levaram àquela unidade.

Janaína, sem compreender a lógica do que ocorreu,o questionou o chefe da farmácia acerca da hiperdosagem. Ele pareceu acuado, com aquele jeito de quem sabe que errou e se confunde quando o colocam contra a parede. Explicou que o paciente estava exaltado, mas não furioso. Xingava e ofendia, movimentava-se muito, às vezes incorrendo em violência, porém sem em momento algum colocar em risco a segurança sua, dos profissionais, das demais pessoas nem da integridade física do hospital:

— Se ele não apresentou perigo, por que você liberou esses medicamentos? O médico prescreveu isso?

Ele baixou a cabeça, relutante em admitir:

— O médico receitou apenas um calmante, mas ele não parava de incomodar todo mundo. Ficava falando, perturbando. As enfermeiras não estavam mais aguentando. Então eu coloquei esses remédios no prontuário e deixei elas aplicarem.

— E a corda? De quem foi a ideia?

— Aí eu já não sei. É com o seu pessoal.

Nem precisava de explicação para a corda. Alguém deixou de lado qualquer preceito de atendimento humanizado na ala psiquiátrica e resolveu regredir setenta anos na história, imobilizando o paciente ao invés de se preocupar com tratá-lo. Olhou com certa vergonha para aquilo tudo, como se alguma crença em um atendimento decente aos enfermos não passasse de uma utopia improvável.

Parou ao lado daquele paciente. Quando ele despertou, sentiu-se incomodado pelo clarão da luz do dia. O sono profundo causado pela medicação mesclada com álcool o deixou desorientado e não reconhecia onde estava. Janaína ajudou-o a se reencontrar, explicando como chegou ali e querendo escutá-lo um pouco. Ele parecia alegre e renovado, sem se dar conta que o doparam e amarraram. Parecia satisfeito com o tratamento, mesmo que o descuido pudesse ter lhe provocado algum mal posterior. Caso ocorresse algo assim, pensaria que não passava de um carma, a punição merecido por seu comportamento. Novamente Janaína pensou em seus estudos: em qual parte da ética da saúde constava que os profissionais eram responsáveis por punir ou ponderar os comportamentos de seus pacientes?

Ele seguiu para o consultório da psiquiatra. Imaginou que receberia alta acompanhado de algum medicamento para evitar as crises, junto à indicação de que comparecesse ao Alcoólicos Anônimos e à terapia. Saiu dali, receita em mãos, sorriso constrangido nos lábios. Encarou Janaína entre o envergonhado e o empolgado: partiu como uma espécie de bênção e maldição do sistema de saúde, um tanto quanto ciente que, mais dia, menos dia, estaria ali

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