Orávio de Campos — Fando, Liz, Artur, Lena e Strasberg

 

 

 

A preclara professora Beth Araújo, pessoa por quem temos uma admiração difícil de explicar, num belo comentário (aqui) sobre a atriz Maria Helena Gomes, uma das pessoas mais ternas e generosas já produzidas pela criação, com quem tive o privilégio de conviver durante anos de experiências, emoções inesquecíveis e produções no campo da arte de Thalma, fez-nos retornar, saudoso, aos anos 90 quando, num momento de crise emocional, montamos “Fando e Liz”, peça do imortal Fernando Arrabal.

Lee Strasberg (1901/82)

Tínhamos terminado, com real interesse — e plenificado de outros conhecimentos necessários à nossa (r)evolução no teatro planiciano) — a leitura do livro “Um Sonho de Paixão”, de Lee Strasberg (1901-1982), um predestinado húngaro, naturalizado americano, em 1936, criador do método descritivo do teatro de Constantin Stanislavski, de modo a se interpretar, didaticamente, personagens na dimensão do ritmo diferente do que Hollywood fazia com seus filmes de ação.

Ele, praticamente, descaracterizou a idéia, até hoje assumida por quem nunca ouviu falar do “Method acting”, de que bastaria o ensaio para que se produzir bons espetáculos. Ao experimentar o novo ciclo da re-apresentação da dramaturgia, acabou formando uma  legião de grandes atores (entre outros Marlon Brando e Marilyn Monroe…) durante sua vida útil como emérito professor do Acto’s Studio, pois adicionou na formação do ator a importância do talento, vocação e sensibilidade.

Havíamos, naquele tempo, descoberto Arrabal e Jean Genet, através do teatro de Ruth Escobar. Durante os anos de chumbo eram, junto com Samuel Beckett (1906-1989), autores do chamado “teatro do Absurdo” — muito usado para ludibriar a ignorância dos censores do regime de exceção. A leitura de “Fando…” criou-nos uma expectativa inusitada. Afinal, olhando o elenco disponível no Teatro Escola, tínhamos que, à luz do pensamento de Lee, escolher os melhores intérpretes.

Dentre as atrizes, destacamos a sensibilidade de Maria Helena e, também, o seu estado físico: pequena, parecendo frágil e olhar significativo, como se fosse uma teleobjetiva fixando imagens e cenários. Faltava o ator. À noite, chega Artur Gomes, com aquela cabeleira própria dos movimentos hippies. Diante da descoberta, fizemos a proposta, aceita imediatamente. Mas queria um Fando careca luzidia e pleno de olhar de poesia, rebeldia e instâncias de um loucura um tanto ou quanto santa. Dia seguinte, eis que chega o Artur caraterizado como imaginamos.

Durante a temporada, no Teatro do Sesc, em certa noite, casa lotada, Liz, na cena final, seria enforcada por Fando. Na convenção de Stanislavski, havia (no jogo do faz de conta) o sistema que permitia passar a ideia real no plano da ficção, mas o protetor se rompeu e a atriz ficou pendurada pelo pescoço, por minutos, até que as luzes se apagassem em sinal do fim do ato derradeiro. Lena, sufocada, suportou e foi atendida nos bastidores com inúmeras preocupações. Nascia ali uma grande atriz…

No simbolismo mágico do trabalho, em que todos os atores tinham sobrenome Gomes, destacamos a participação de Sergio, Nilson e Wellington (Os homens do guarda-chuva). Nunca dirigimos, dentre às nossas mais de 150 produções, uma peça tão afinada, tão violenta e, ao mesmo tempo envolvida com lances de poesia e de um amor gritando pela eternidade. Não poderíamos deixar de fora o simbolismo do girassol e do cachorro significando os rasgos de infinitude e da fidelidade.

A filosofia de Aristóteles se nos revela que “o segredo para mover paixões nos outros é movê-las antes em nós mesmos e que o ator é capaz de fazer isso trazendo ‘visões’ sensoriais de experiências passadas”. À sua maneira, o autor dos “Quatro Discursos” estabeleceu o princípio do papel criativo da memória afetiva na imaginação do ator como fundamento do experiência na atuação. Artur e Lena, ambos Gomes, nesse sentido passam à história do teatro como grandes atores de um momento de insanidade do diretor que, antes deles, pensou as cenas no imaginário de sua loucura.

Somos imensamente gratos aos artistas daquele elenco, simples mas comprometido, enfatizando a figura da atriz Maria Helena Gomes, pelo tempo de criação dos sentidos verdadeiros e pela vida que se estabeleceu de nossas relações. Bem como agradecemos, agora, a Beth Araújo pela oportunidade de rever cenas, reais e imaginárias de um teatro que se faz eterno na sensibilidade de todos nós. Como na cena final, repetimos a fala: “Liz, quando você morrer, vou visita-la no cemitério. E Levarei para você uma flor e um cachorro…”.

 

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