Durante minha infância, meus pais me levavam ao cais para apreciar a velha âncora. Tiraram-na de um antiquíssimo galeão português naufragado séculos atrás e ali a deixaram como um objeto de interesse turístico.
Chamava a atenção que, após tantos anos imersa na água salgada e agora tomando os ventos da maresia, a mesma apresentava escassas marcas de oxidação. Ganhou um caráter não apenas de estabilidade, mas também de jovialidade, como se infundisse em quem a tocasse a sensação de vida eterna.
Para as crianças, a âncora proporcionava imensa diversão. Corríamos em volta dela, pulávamos, dançávamos. Deixávamos um dízimo ali, contribuindo com alegria e recebendo em troca a promessa de prosperidade e equilíbrio.
Os anos passaram e as visitas à âncora, apesar de existentes, se tornaram mais e mais espaçadas. A correria do dia a dia impedia uma viagem à área litorânea onde me criei e a vegetação de restinga e os pés cravados na areia se convertiam mais em objetos da memória. Ainda assim, nas ocasiões de presença, eu constatava como a âncora permanecia imperturbável no remanso onde sempre repousava.
O tempo passou e a velhice vagarosamente me consumiu. O vigor se foi, os cabelos caíram, a pele murchou. O médico deu o diagnóstico, câncer de próstata. Poucos meses de vida me restaram. Portanto, fiz meus netos me levarem até a âncora para eu me despedir.
Empurraram-me pela calçada de cadeira de rodas e me pegaram no colo para atravessar a areia. Lá chegando, diversas outras pessoas de minha idade rodeavam a âncora. Eu me recordava delas: as crianças com quem eu brincava nesse mesmo local.
Atraídos por igual força, fomos render as últimas homenagens. Nossas vidas iriam, ela permaneceria. Novas crianças retornariam e brincariam e deixariam a seiva vital drenada pelas dobras metálicas. Então só depois de muitos anos se dariam conta de que a eternidade da âncora se devia à ruína e decadência de homens e mulheres.