A partir das 7h da manhã desta terça (21), o convidado do Folha no Ar, na Folha FM 98,3, é Bruno Vianna (PSL), filho mais velho e herdeiro político do deputado estadual Gil Vianna (PSL), morto pela Covid-19 (confira aqui) em 19 de maio. Ele falará sobre a vida, a morte e o legado do seu pai, das eleições a vereador no município, nas quais é pré-candidato, e do destino do partido no pleito a prefeito de Campos sem a pré-candidatura de Gil.
Quem quiser participar ao vivo do Folha no Ar desta terça, pode fazê-lo com comentários em tempo real, no streaming do programa. Seu link será disponibilizado alguns minutos antes do início, na página da Folha FM 98,3 no Facebook.
Sufistas fagraram no sábado (18) instalação de várias redes de pesca ilegais em Barra do Furado, no mesmo local onde o publicitário Guto Leite morreu embolado em uma delas (Imagem: Reprodução de vídeo)
Ontem (18), completaram-se 30 dias da morte (confira aqui) do publicitário Guto Leite. Ele tinha 50 anos, era casado e deixou três filhos, ao morrer afogado na praia de Barra do Furado, no município de Quissamã, enquanto praticava surfe, após se embolar e ficar submerso em uma rede de pesca instalada de maneira ilegal. Exatos 30 dias depois da tragédia, surfistas filmaram o sábado a colocação de várias redes de pesca no mesmo local em que Guto morreu por conta de uma delas.
No dia 26, na semana seguinte à morte do publicitário, a Folha publicou (confira aqui) uma matéria denunciando a falta de fiscalização da instalação de redes de pesca, que ameaça a vida de praticantes de surfe, bodyboarding e natação em mar aberto. No dia 24, a Associação dos Surfistas da Região Norte Fluminense (Asrenf) protocolou representação junto ao Ministério Público Estadual e Federal de Campos, cobrando atuação eficaz e permanente dos órgãos ambientais. Em nota, a Marinha do Brasil informou que tomou conhecimento pela imprensa sobre o caso e esclareceu que realiza fiscalizações. Mas tudo indica que, um mês após a morte de Guto, nada mudou.
“Saturno devora um filho”, óleo sobre tela de Peter Paul Rubens, 1636/1638, Museu do Prado (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)
— E a tal da Covid-19? — abriu os trabalhos Adriano, enquanto tomava o primeiro gole de cerveja na visita à casa do amigo.
— Sem botequim aberto, é o pior dos mundos! — resumiu Aníbal, sem nenhum traço de ironia na voz ou expressão facial.
— Ainda não tinha parado para pensar nisso.
— Mesmo em países islâmicos teocráticos, onde o álcool é proibido, há bares para turistas, nem que seja nos hotéis. Essa pandemia é pior que fundamentalismo religioso. Clássico dos anos 80, em “Platoon”, o protagonista de Charlie Sheen diz ao final do filme: “O inferno é a impossibilidade da razão”. É com isso que um mundo sem boteco se parece: com o inferno!
— Se o inferno é a impossibilidade da razão, o que dizer desse governo Bolsonaro?
— Aí é o que Polônio, conselheiro do rei, diz sobre Hamlet: “Parece loucura, mas há método”.
— Método no genocídio, como Gilmar Mendes acusou o Exército Brasileiro de estar se associando?
— Polônio queria dizer o seguinte: se havia método na simulação da loucura do seu genro Hamlet, é porque não era loucura. Pode haver método no genocídio. Quer prova maior que a linha de montagem da Alemanha nazista na II Guerra, para exterminar gente em câmaras de gás e queimar seus corpos em fornos, em escala industrial?
— E como o Exército se associa a uma loucura dessas? Ter um general da ativa como Pazuello, sem a menor experiência em Saúde Pública, dois meses à frente do ministério da Saúde, na maior pandemia dos últimos 100 anos? Que já produziu mais de 76 mil mortes no Brasil?
— Já soma três vezes mais mortos que a Guerra de Canudos, maior guerra civil brasileira. No genocídio promovido pelo Exército contra os seus próprios civis no sertão da Bahia.
Mulheres e crianças sobreviventes de Canudos, com os soldados do Exército Brasileiro ao fundo, no sertão da Bahia de 1897 (Foto: Flávio de Barros)
— Logo com Prudente de Moraes, primeiro civil que tivemos como presidente da República.
— Naquele final do século 19, foi o genocídio do positivismo de Comte e Benjamin Constant, quando o Exército produzia a intelectualidade brasileira. Era o “Ordem e Progresso” da nossa bandeira. Com o qual o ex-militar Euclides da Cunha rompeu ao dar seu testemunho da Guerra de Canudos em “Os Sertões”. E sabe o que é mais irônico?
— Ainda não sei. Mas acho que agora vou saber. Não dá é para ter orgulho da própria ignorância, como os bolsonaristas.
— Não sei o que é pior. Orgulhar-se da ignorância ou posar de intelectual e embarcar no mesmo negacionismo, como fizeram e fazem os lulopetistas. Antes deles, a ironia é que o positivismo se anunciava pela prevalência dos fatos científicos sobre a religião e a superstição. Mais de 100 anos depois, o Exército e sua tradição positivista se associaram a um governo eleito na promiscuidade entre religião e política, com o anticomunismo como superstição em torno de um “mito”. Que o mundo condena pela negação dos fatos científicos.
— Foi a ferida em que Gilmar colocou o dedo. Por isso provocou tanta reação das Forças Armadas. Até da Marinha e da Aeronáutica, que nem foram citadas. Citação boa foi a de Mandetta: “É como colocar médicos para comandar uma guerra. Ou como tirar os jogadores da Seleção e escalar 11 coronéis numa Copa do Mundo. O Brasil não vai tomar outro 7 a 1, vai tomar de 20”.
— A leitura dos atos e falas de Gilmar varia de acordo com o gosto político do intérprete. Foi inimigo público nº 1 do PT, quando impediu que Dilma nomeasse Lula ministro, para ganhar foro privilegiado e fugir da Lava Jato. Depois virou aliado, quando Lula foi condenado em segunda instância e preso. E o ministro passou a defender que a prisão só se desse após o transitado em julgado. O que eu penso de Gilmar é impublicável. Mas, na trincheira em que o STF se transformou contra o autoritarismo, ele é a prova de que as instituições e sua defesa podem ser muito maiores que os eventuais “homens honrados” que as compõem.
— Homens honrados?
“A morte de Júlio César”, óleo sobre tela de Vicenzo Camuccini, 1804/1805 (Foto: Reprodução)
— Aí é outra tragédia de Shakespeare, “Júlio César”. O discurso depois que ele morre esfaqueado no Senado de Roma. Inclusive por Brutus, que tratava como filho. E Marco Antônio, sobre o corpo ensanguentado de César, fala ao povo: “Quando os pobres sofriam, César chorava. Ora, a ambição torna as pessoas duras e sem compaixão. Entretanto, Brutus diz que César era ambicioso. E Brutus é um homem honrado”.
— Se é para comparar Gilmar com Marco Antônio, quem seria Cleópatra?
— A comparação é com Brutus. E Gilmar está mais para seu sósia João Plenário, de “A Praça é Nosssa”, que para Shakespeare. Ou, na obra deste, menos para Cleópatra que Lady MacBeth. Pode ser para bravatear um “Supremo voltando a ser Supremo”, ao livrar Zé Dirceu da cana dura. Mas pode ser também para tombar a lona verde-oliva e fazer o Exército se tocar da tremenda furada em que se meteu.
“Saturno”, óleo sobre parede de Francisco de Goya y Lucientes, 1820/1823, Museu do Prado (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)
— E o que você acha que vai ser da pandemia?
— No Brasil, não chegamos ao dilema shakespeariano de ter que escolher qual doente vai viver ou morrer, por falta de leito de UTI e respirador. Como foi no Irã, na Itália, na Espanha ou em Nova York. Salvo, talvez, em Manaus e Belém, nosso sistema de saúde não colapsou. E, complexo de vira-latas à parte, serviu para provar como o SUS, com todas as suas mazelas, é um grande avanço da Constituição de 1988 sobre países do primeiro mundo.
— E Campos?
— Também não colapsou. Pelo menos até agora. E muito graças ao CCC, que o governo Rafael inaugurou na Beneficência. Ironicamente, após uma médica bolsonarista aloprada divulgar áudios alarmistas com fake news sobre a doença.
— Verdade. Deve ter confundido cirurgia estética de vagina para dondoca com Saúde Pública. Mas sabe qual é a outra grande ironia dessa história toda?
— “Ainda não sei. Mas acho que agora vou saber”… — ironizou, desta vez, Aníbal.
— É o que Rafael, Caio, Wladimir, ou qualquer outro candidato a prefeito eleito em novembro vai enfrentar. Na crise econômica que já era grande e vai piorar muito antes de melhorar, no efeito colateral da pandemia, administrar a máquina pública de Campos, inchada na época das vacas gordas dos royalties, será escolher entre qual paciente fica vivo e qual vai morrer. Inclusive na categoria médica, heroica no enfrentamento da Covid e que não tem quase ninguém fora do serviço público municipal, será a mesma história de sempre: farinha pouca, meu pirão primeiro! — profetizou Adriano, sentindo a cerveja descer mais amarga à garganta.
Enquanto a pandemia da Covid-19 ainda é a pauta principal do Brasil e boa parte do mundo, uma indagação começa a também viralizar na planície goitacá: como serão as eleições a prefeito de Campos, daqui a menos de quatro meses? Geralmente feita junto a outras: por quais critérios o eleitor vai orientar sua escolha? E: o que é possível se esperar do governo que for eleito? Na busca de respostas, em ordem alfabética invertida na metade da entrevista, perguntas foram feitas ao cientista político Hamilton Garcia, professor da Uenf; ao especialista em finanças Igor Franco, professor da Estácio; ao advogado João Paulo Granja, com vasta experiência em legislação eleitoral; e ao jornalista político Ricardo André Vasconcelos, ex-secretário de Comunicação de Campos. Em comum, os quatro apontaram as imensas dificuldades financeiras que o prefeito que sair das urnas vai encontrar a partir de 1º de janeiro de 2021. Ele(a) e as quase 600 mil almas que governará.
Hamilton Garcia, Igor Franco, João Paulo Granja e Ricardo André Vasconcelos (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)
Folha da Manhã – Em painel da semana anterior (confira aqui), com o historiador Arthur Soffiati, os advogados Carlos Alexandre de Azevedo Campos e Cristiano Miller, o cientista político George Gomes Coutinho, o especialista em pesquisas Murillo Dieguez e o sociólogo Roberto Dutra, a incerteza sobre a eleição a prefeito de Campos, daqui a menos de quatro meses, foi uma unanimidade. Como você enxerga?
Hamilton Garcia – O relativo fracasso, no campo político, da renovação/inovação, da gestão Rafael, torna, de fato, a eleição algo incerta, na medida em que a aposta pela mudança gorou, mas a pressão pela mudança só aumentou. O modo como os eleitores vão se comportar diante deste paradoxo é que é o busílis.
Igor Franco – Concordo com o diagnóstico. A morte do deputado (estadual) Gil Vianna (PSL) e a iminente queda do governador Witzel adicionaram ainda mais incerteza ao pleito. Perdemos o candidato que, talvez, pudesse encarnar com mais proximidade o figurino da direita “lei e ordem”, tão bem exercido por Witzel na eleição estadual de 2018. Além disso, mesmo sendo político há muitos anos, acredito que a tentativa de encarnar uma “renovação” também poderia render frutos. Por outro lado, a crise do coronavírus não pode ser menosprezada, uma vez que a postura do governo municipal gera um contraste muito favorável a Rafael quando comparada à atuação estadual.
João Paulo Granja – Provavelmente, será a primeira eleição em que teremos, com chances reais de serem eleitos, um representante de cada dinastia política que, nas últimas décadas, governam, ou ajudaram a governar, o nosso município. O fato de nenhum dos três despontar como franco favorito, o que talvez venha a ser medido pelo confronto do índice de rejeição de cada qual, permite que outros aspirantes ao cargo máximo do Poder Executivo se somem a esses, com chance de serem escolhidos como a quarta via ao pleito. Cansada de promessas, a população há de esperar que os discursos de cada qual se adeque à realidade financeira de nosso município, já combalido pela crise que se iniciou em 2014, agravada com a pandemia ainda em curso, assombrada, ademais, com a possível repactuação da partilha dos royalties, em julgamento a ser realizado pelo STF.
Ricardo André Vasconcelos – A única certeza aparente é que teremos poucos candidatos. Certos mesmos na disputa são o atual prefeito Rafael Diniz e dois herdeiros brigando pelo espólio garotista em, por enquanto, trincheiras diferentes. Caio Vianna e Wladimir Garotinho têm muito mais semelhanças que diferenças, a começar pela dependência da herança política dos pais. Aliás, é interessante notar que Caio se apoia na popularidade do pai Arnaldo mas, se eleito, quem vai ter influência no governo é a mãe, Ilsan; enquanto Wladimir conta com a boa imagem da mãe, Rosinha, mas na Prefeitura quem vai mandar é o pai, Garotinho. No entanto, há espaço ainda para um candidato que defenda o ideário conservador e falso moralista do bolsonarismo, e para uma candidatura do PT.
Folha – A proposta orçamentária para 2021 entregue pelo governo Rafael Diniz (Cidadania) à Câmara, em abril, foi de R$ 1,7 bilhão. Com a queda das receitas do petróleo, arrecadação própria e repasses, por conta da pandemia, estima-se que vá cair para R$ 1,6 bilhão até a proposta da LOA ser encaminhada em agosto. Com R$ 1,1 bilhão para pagamento de servidor e quase a totalidade do resto para custeio, qual a solução aritmética para Campos?
Hamilton – Cortar gastos com a máquina, também legislativa e judiciária, e aumentar os investimentos públicos para o desenvolvimento, atraindo capitais privados e melhorando a utilização dos recursos aplicados em todas as esferas de governo. O que exige também reformas constitucionais, em todos os níveis, que dificilmente terão curso na “normalidade política” do atual sistema de poder.
Igor – A solução aritmética para nosso orçamento beira o impossível. A tese da falência dos municípios vem sendo debatido pelo menos desde 2015, tendo Mansueto Almeida, atual secretário do Tesouro Nacional, como o grande divulgador. O orçamento público brasileiro possui regras que tornam muito difícil realizar qualquer corte profundo de gastos. A recente decisão do STF, que determinou ser inconstitucional a redução salarial dos servidores mesmo quando realizada por redução de jornada, acabou por enterrar de vez o ajuste da folha de pagamento. O corte possível no gasto discricionário já vem sendo feito há alguns anos, convertendo o gestor público em um gerente de caixa, postergando pagamentos ao longo do ano para que seja possível priorizar determinadas despesas.
João Paulo – Talvez o maior pecado de nossos últimos governantes tenha sido supor que os royalties do petróleo fossem infinitos. E, pensando que esta receita iria abarrotar os cofres públicos eternamente, os tenha feito inchar a máquina pública de uma tal forma que, atualmente, não se consegue arcar com os mais básicos compromissos, sem prejudicar o orçamento. A solução do problema não comporta teorias complexas. A máquina há de diminuir de tamanho para voltar a se encaixar no orçamento existente. Aquele que vier a assumir o comando da Prefeitura terá de desempenhar a impopular função de gestor da coisa pública, buscando reduzir os cargos supérfluos ou acumulando mais de uma atribuição em um único servidor. Infelizmente, como dizem os antigos, o cobertor é curto.
Ricardo André – A redução orçamentária é o principal motivo para o baixo número de pretendentes à Prefeitura. Com poucos recursos e os existentes já comprometidos, poucos se aventuram na tarefa árdua de administrar uma massa falida. Não tem receita mágica. Quando o dinheiro sobrava os prefeitos esbanjaram com obras desnecessárias e pouco ou nenhum investimento em projetos que dessem frutos depois que acabasse a era das “vacas gordas”. Mas o que fazer, se do R$ 1,6 bilhão/ano a folha de pagamento consome R$ 1,1 bilhão? O mérito do prefeito Rafael Diniz foi arrumar as contas da Prefeitura, ao mesmo tempo que foi seu maior pecado, porque trabalhou para dentro, não fez política e tem uma alta taxa de rejeição para entrar uma campanha difícil pela reeleição. Difícil, mas não impossível, por causa da falta de experiência dos adversários.
Rafael Diniz, Wladimir Garotinho e Caio Vianna (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)
Folha – Em entrevistas ao programa Folha no Ar, da Folha FM 98,3, respectivamente em 26 de junho, 9 e 10 de julho, os pré-candidatos a prefeito Caio Vianna (PDT), Wladimir Garotinho (PSD) e Rafael falaram em “redução da máquina pública”. Mas nenhum deu detalhes. É uma realidade inevitável? Quando, onde e como deveria se dar essa redução?
Hamilton – O setor público vai sofrer uma retração em termos, mais em função do inchaço da máquina pública e sua ineficiência, salvo algumas exceções, porque a crise pandêmica abalou a dinâmica da globalização e lançou um incentivo à volta da produção nacional. O que, no Brasil, deve fortalecer a tradição desenvolvimentista, significativamente presente no pensamento militar, e responsável pelos grandes avanços do país desde 1930. O problema é o quanto esta tradição efetivamente aprendeu com o autoritarismo e o neopatrimonialismo, ou parasitismo político, que afetaram diretamente a capacidade do Estado de agir racionalmente e concentrar recursos na direção do desenvolvimento humano e material ao longo de todo esse período.
Igor – Em nível municipal, a redução significativa da máquina pública é quase impossível no período de um mandato. Como o gasto de folha e o custeio das funções de saúde e educação são praticamente imunes a cortes, resta reduzir a quase zero todos os gastos não obrigatórios. Isso não significa que não se deve buscar tornar mais eficiente a máquina pública, porém, a solução, só virá no longo prazo aliada a um rígido controle do crescimento das despesas. Entendo que o principal esforço deveria vir através da melhoria na prestação dos serviços públicos. Precisamos de metodologia, indicadores a serem perseguidos e, principalmente, implementar políticas públicas que já tenham sido executadas com sucesso em outros locais; o que se chama de políticas baseadas em evidências, cada vez mais discutidas em cursos de preparação de novas lideranças políticas.
João Paulo – Trata-se de um consenso entre todos os candidatos, bem como de qualquer um que tenha uma mínima noção de economia, ainda que doméstica, não havendo fórmula mágica que permita equacionar a receita, em vertiginosa queda, com o atual tamanho da máquina pública, inchada ao alvedrio dos últimos governantes. Valendo-se do popular jargão, há de se fazer mais com menos. Neste sentido, há de se pensar na fusão de secretarias, bem como na reunião do máximo de atribuições no menor número de servidores, de forma a otimizar o trabalho e permitir a economia necessária.
Ricardo André – Essa história de “reduzir a máquina” e “máquina inchada” tem muito de discurso eleitoral para quem está na oposição. Mas, chegando ao governo, vê que para manter os serviços públicos com um grau médio de eficiência precisa dos servidores. Além disso, os servidores são estáveis e demiti-los é muito difícil. Aqui cabe uma pergunta: se a máquina está inchada porque todos os últimos governos de Campos contrataram servidores eventuais como os chamados “folha de linha” e agora os RPAs?
Roberto Henriques (Foto: Folha da Manhã)
Folha – Em 21 de outubro de 2019, o também pré-candidato a prefeito Roberto Henriques (PC do B) foi ao Folha no Ar. Conhecedor do garotismo por dentro, que governou Campos com variantes de 1989 até 2006, ele chamou de “modelo perdulário” o inchaço da máquina pública que disse ter sido inaugurado na gestão Arnaldo Vianna (PDT). E mantido nas administrações Alexandre Mocaiber (sem partido) e Rosinha Garotinho (Pros). Concorda? Por quê?
Hamilton – Tem razão Roberto Henriques, uma liderança autêntica da velha cepa brizolista, que assistiu ao eclipse do reformismo do Muda Campos no transformismo Garotista. E acabou, de alguma forma, levado a tangenciá-lo, em função da despartidarização/despolitização sistêmica da Nova República, agravada, no Estado do Rio, pela Lei dos Royalties de 1997. É a partir desta lei que passamos a viver intensamente, sobretudo em Campos, aquilo que a literatura sobre a divisão internacional do trabalho designava como “maldição do petróleo”, uma realidade que transcende os atores. Mas que eles estão agora obrigados a enfrentar na maré vazante da economia de carbono.
Igor – É tentador apontar um ou alguns culpados pela situação atual. Porém, ainda que entremeada por períodos de maior responsabilidade, a história do orçamento público brasileiro tem muito mais páginas escritas com seus excessos por políticos de diversos partidos e ideologias. Em lugares privilegiados por recursos naturais ou em período de bonança, esse fenômeno foi intensificado. A euforia do Pré-Sal do governo Lula só teve fim na crise de 2015. O governo FHC também aumentou a despesa federal primária, financiada por uma grande elevação da carga tributária. É ingenuidade confiar apenas na virtude dos políticos para salvaguardar as finanças públicas. Do ponto de vista de qualquer agente público eleito, os incentivos são para gastar o máximo possível em busca de sua manutenção no poder, mesmo que isso signifique a ruína econômica no longo prazo. A responsabilidade pela fiscalização, exercida nos termos da lei pelo Poder Legislativo, deve ser de toda a sociedade civil, maior interessada no equilíbrio das contas públicas
João Paulo – O conforto que os royalties do petróleo e a consequente sensação de perpetuidade trouxeram aos nossos últimos gestores uma espécie de ostracismo intelectual, não vislumbrando a necessidade, nem formas de majorar a arrecadação. Nem preocupando-se com o aumento da estrutura municipal, hoje abarrotada por cargos que, se na iniciativa privada, estariam concentrados em menor número de funcionários ou restritos àquelas funções essenciais. Não resta dúvida que políticas baseadas no populismo e no empreguismo são conhecidas, embora irresponsáveis, formas de perpetuação no poder, adotada como mantra por gestores no Brasil afora.
Ricardo André – Os filhos de Rosinha e Ilsan Vianna podem falar de perdulário com conhecimento de causa. No poder, as duas foram promotoras de gastanças como Cepop, Beira-Valão e aquele contrato da Odebrecht de R$ 1 bilhão para fazer 10 mil casas populares, como foi com Rosinha. Ilsan, por sua vez, como primeira-dama de Arnaldo instalou um governo paralelo na secretaria de Planejamento e de lá saíram projetos como o projeto da Praça Salvador, sem falar nos shows milionários. Quanto à máquina não sei se é inchada e ou mal gerida quanto ao aproveitamento do pessoal em determinadas áreas, como na Educação e Saúde, as que demandam mais servidores. Há um controle meio frouxo quanto à produtividade e frequência, que nem a implantação do ponto eletrônico resolveu.
Folha – Campos é uma cidade de quase 600 mil habitantes. E quase todos têm pelo menos alguém na família que sobrevive do poder público municipal. O que gera um dilema: não se governa a cidade sem fazer cortes profundos, mas quem se dispuser a fazê-los enfrenta resistências e cresce a taxa de rejeição popular. Como foi com Carlos Alberto Campista (sem partido) e parece ser agora com Rafael. Está certo o dito: “o campista pede, mas não quer”?
Hamilton – Agora não vai ter espaço para “não querer”, sobretudo diante da possibilidade do revés das rendas petrolíferas. A magnitude da crise pode acabar forçando uma mudança drástica de atitude de todos, eleitores e candidatos.
Igor – Montada uma estrutura que distribua benefícios a tantas pessoas, os grupos de interesse passam a ter uma capacidade de mobilização muito grande. Ainda que se suponha que 80% da população não tenha para si ou parente próximo algum tipo de vantagem garantida pelo poder público, o contingente mobilizado de 20% tende a ser muito mais organizado, gerando a impressão de um tamanho maior que o real. É um grande desafio tentar controlar gastos, porém, a alternativa a isso é um ponto em que veremos a incapacidade do cumprimento de obrigações básicas, como os salários. Por fim, esse comportamento não é exclusivo do campista. O inchado Estado brasileiro gera dependência econômica em diversos grupos, dos mais abastados aos mais pobres.
João Paulo – Esse será o desafio daquele que vier a ser eleito para governar o maior município fluminense nos próximos quatro anos: reduzir a inchada máquina pública, bem como a dependência da população por dela extrair seu sustento. Qualquer solução diversa, será mais do mesmo. Setores como a indústria e o agronegócio devem ser priorizados e estimulados, por meio de incentivos, de forma a gerar mais postos de trabalho, diminuindo o impacto que a desmobilização do Estado trará à população. Cabe ao futuro governante decidir se o sacrifício de hoje vale a recuperação econômica de nosso município, além da herança que será deixada para futuras gerações.
Ricardo André – É bem verdade desde o final dos anos 80 quando Campos começou a receber royalties e nos 90 as gordas participações especiais, foram oferecidos à população novos serviços públicos que demandaram mais servidores e mais custos, como escolas, creches, postos de saúde, hospitais. Cortar significa reduzir a oferta de serviços públicos. Foi o que o prefeito Rafael teve a coragem de fazer, ou seja, cortar os dois programas mais populares do governo Rosinha: o Restaurante Popular e a passagem a R$ 1,00. Se o prefeito optou por esses cortes porque entendeu que seriam menos traumáticos financeiramente, foram um desastre politicamente. A falta de recursos pode ser vista nas ruas mal cuidadas. Há anos as faixas de pedestres e toda a sinalização horizontal não têm manutenção.
Folha – A rejeição de Rafael é apontada como principal obstáculo à sua tentativa de se reeleger. Ela é ou não justificada? Foi atenuada pela atuação considerada boa no enfrentamento à pandemia da Covid-19? E como a alta taxa de rejeição também do ex-governador Anthony Garotinho (sem partido) pode atrapalhar a pré-candidatura de Wladimir? Os dois têm alguma alternativa política além de se lançarem candidatos a prefeito?
Hamilton – A rejeição de ambos pode representar sérios limites nas respectivas pretensões políticas, o que torna o cenário mais competitivo. Mas, como sempre nesses casos, tudo vai depender do protagonismo dos candidatos e sua capacidade de convencimento. A relação entre eleitores e candidatos é muito dinâmica e também instável, até certo limite, e a crise histórica e a atual jogam um papel, tornando cada eleição uma nova eleição, em termos dos contextos diferenciais.
Igor – Não há discussão de que a situação econômica da população, de modo geral, e, em específico, grupos importantes no xadrez eleitoral, como servidores, RPAs, beneficiários de programas sociais e empresários, está pior hoje do que há quatro anos. Se isso ocorreu por culpa da gestão atual ou se ela impediu uma tragédia ainda maior será o grande embate em termos de narrativa. A magnitude da crise da Covid-19 pode representar uma virada aos 45 do segundo tempo, a depender de como os próximos meses se desenvolvam e, principalmente, da capacidade dos cofres públicos de arcar com o funcionamento da máquina até a eleição. Quanto à rejeição de Garotinho, ela sempre se transportará em certa medida ao seu candidato de apoio, mas Wladimir parece possuir carisma próprio, ajudando a diminuir o efeito negativo. Inclusive, ainda tem a possibilidade de construir uma versão plausível para a desistência do pleito. Já a Rafael não me parece haver alternativa senão concorrer à reeleição.
João Paulo – Não há notícia em nossa história de alguém que tenha sido eleito, contando com maciço apoio popular, nele depositando tanta expectativa e esperança de um futuro promissor. Baseado no discurso, nas promessas e nas soluções apontadas na campanha de 2016, Rafael hoje está sendo julgado. O aval popular conferiu a ele legitimidade para adotar as medidas, que desde o início do governo faziam-se necessárias e prementes, o que não aconteceu. Não se olvida a herança recebida dos gestores anteriores, nem o decréscimo orçamentário, se comparado com anos pretéritos. Tal fato, entretanto, não pode servir de muleta ou justificativa, mas incentivo, para que medidas fossem tomadas de forma a reduzir o aparato estatal. A pandemia, por sua vez, caiu como um balão de oxigênio no governo, tirando o foco dos problemas enfrentados, podendo reequilibrar o páreo de uma eleição que será marcada precipuamente pela análise do índice de rejeição dos candidatos.
Ricardo André – Rafael está, desde que assumiu, enfrentando uma tempestade perfeita: queda vertiginosa na arrecadação; três empréstimos tomados no apagar das luzes do governo Rosinha e que teve seus efeitos minimizados com a limitação de 10% dos royalties; crise econômica gerada pelo governo Dilma e a pandemia da Covid-19 que ainda assusta Campos e o mundo. Tirando a Covid-19 e a crise econômica, o que não é pouco, a equipe do prefeito Rafael não teve criatividade ou vontade suficiente para e retribuir a confiança da população que o elegeu no primeiro turno. A rejeição que vai encontrar, justa ou não, deve ter mais efeito negativo para Rafael do que a de Garotinho para Wladimir e a de Ilsan para Caio.
Página 2 da edição de hoje (18) da Folha
Ricardo André Vasconcelos, Igor Franco, João Paulo Granja e Hamilton Garcia (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)
Folha – A rejeição à ex-vereadora Ilsan Vianna (PDT), grande sobretudo quando foi secretária no governo Arnaldo, está distante no tempo para atrapalhar Caio? Sua alegada menor rejeição, na comparação com Rafael e os Garotinho, seria sua grande arma em um eventual segundo turno? Vê chance de a eleição ser definida em turno único, como foi em 2016?
Ricardo André Vasconcelos – Acho difícil uma eleição no primeiro turno. Dificilmente o eleitor vai se empolgar ao longo da campanha, que começa em setembro, quando não se sabe ainda se a pandemia terá passado ou não. E como uma eleição com dois dos principais candidatos herdeiros dos legados dos pais vão suportar os ônus e os bônus da atuação política destes pais. Uma impressão que tive ao ouvir a entrevista do deputado federal Wladimir Garotinho na Folha FM é que ele é hábil o suficiente para tentar uma composição com Caio Vianna já no primeiro turno. A mesma composição que fizeram com o ex-deputado (federal) Feijó na primeira eleição de Rosinha em 2008.
João Paulo Granja – Não há dúvida que dos três pretensos candidatos, Caio Vianna terá menor dificuldade em lidar com a rejeição, tendo em vista os percalços que Ilsan trará a sua candidatura, compensada com o viés positivo que a imagem deixada na população por seu genitor. Talvez, o distanciamento do município de Campos e a falta de experiência na gestão pública, sejam os principais entraves a sua eleição. Diante do grande número de pré-candidatos com reais chances de serem eleitos, dificilmente teremos a eleição definida em turno único.
Igor Franco – A gestão Arnaldo, com presença influente de Ilsan Vianna, terminou antes que eu começasse a votar, por exemplo. Para eleitores abaixo dos 40 é provável que não haja influência alguma. A menor rejeição fará com que Caio tenha um impulso inicial favorável, mas acredito que o eleitor de 2020 estará muito mais crítico após ter entregado uma vitória a Rafael no primeiro turno. Embora importantes, as narrativas deverão ser acompanhadas de medidas concretas. Além disso, com as restrições de locomoção, o engajamento nas redes sociais deve fazer a diferença para qualquer candidato.
Hamilton Garcia – A eleição de 2016 em Campos foi avant la lettre na política nacional, diante do que se veria em 2018, no que tange à derrota das oligarquias. Todavia, do mesmo modo, talvez ela revele as frustrações diante desta mesma renovação, o que deve abrir espaço para o retorno das velhas oligarquias.
Folha – No Folha no Ar, Wladimir criticou o juiz Ralph Manhães e o delegado da Polícia Federal Paulo Cassiano, que estiveram à frente da “Chequinho” em 2016 e coordenarão a fiscalização eleitoral em 2020. O deputado disse temer, se candidato a prefeito, que “seja transferida para mim o que houve com a minha família e meu grupo político”. Há quem tenha visto como tentativa de criar suspeição. Ele também questionou o juiz Glaucenir Oliveira. Como você viu?
Ricardo André – Ali foi o dedo da raposa política, possivelmente por sugestão do pai Garotinho. Ao admitir não disputar a eleição temendo a atuação deste ou aquele juiz e do delegado da PF, o deputado tentou na verdade, criar uma narrativa de suspeição por parte das autoridades e se blindar ou procurar inibir a atuação dessas autoridades. Nada mais que isso.
João Paulo – A autonomia e a independência são características que hão de ser preservadas em todos os poderes constituídos, em especial no Poder Judiciário. Por mais que suas decisões não tenham nenhum condão de agradar a todos, os juízes Ralph e Glaucenir são tidos no meio jurídico como referências por seus julgamentos técnicos e bem fundamentados, não havendo como se colocar sobre seu trabalho responsabilidade maior do que possui, pressão injustificada ou desculpa por eventual decisão que venha a ser proferida, a contragosto dos interesses de quem quer que seja. A esfera recursal se presta a corrigir eventuais equívocos interpretativos porventura praticados, não possuindo, portanto, o juiz, palavra final nos julgamentos proferidos.
Igor – Seja como provocação, seja uma preocupação genuína do deputado, todos homens públicos, eleitos ou de carreira, devem estar sujeitos a críticas. As palavras de Wladimir, justas ou não, ficaram muito longe de serem consideradas inaceitáveis. Excetuando casos extremos, como o cometimento de crimes ou condutas manifestamente antirrepublicanas, espero observar uma atuação discreta do Poder Judiciário nas eleições. Mais do que nunca, precisamos de ampla capacidade de discutir abertamente os problemas da cidade e, principalmente, as soluções propostas para os próximos quatro anos. Que, tudo indica, serão tão ou mais desafiadores que os últimos quatro.
Hamilton – O discurso da “perseguição política” é velho conhecido de todos e foi ressignificado pelo PT depois do Mensalão, mas sempre se prestou ao mesmo inequívoco papel: atenuar a repercussão política da descoberta de malfeitos por parte das elites políticas. A questão decisiva não é tanto o que falam os malfeitores e seus círculos, mas o que se está fazendo no STJ, STF, MPF, Congresso Nacional e presidência da República, só para ficarmos na esfera federal, contra as autoridades de Estado que representam uma ameaça a tais práticas antirrepublicanas; muitas vezes sob o silêncio, ou pior, aplausos de importantes formadores de opinião.
Folha – Vê entre os demais pré-candidatos alguém com chance de surpreender? Ou o aparente insucesso precoce do governador Wilson Witzel (PSC), fenômeno eleitoral em 2018, dificultou essa alternativa? Como vê a possibilidade do seu impeachment, com denúncias de desvios na saúde durante a pandemia, que inviabilizaram, inclusive, o Hospital de Campanha de Campos?
Ricardo André – Tenho ouvido falar em outros pré-candidatos, mas acho difícil a construção de um nome que ganhe musculatura suficiente até a eleição. O empresário Joílson Barcelos chegou a se colocar como candidato, mas consta que desistiu. Ele talvez pudesse desequilibrar a disputa. Quanto ao governador, ele seguiu o mesmo caminho dos antecessores. A abertura de impeachment com apoio de 69 deputados foi indício de que dificilmente vai conseguir reverter sua cassação. Aliás, é o segundo juiz federal a desiludir os que apostaram que, por ser oriundo do Judiciário, ele estaria acima do bem e do mal. O outro foi o Sérgio Moro, ex-juiz da Lava Jato que tirou o ex-presidente Lula da eleição e depois largou a toga para ser ministro do vencedor da mesma eleição.
João Paulo – Embora ainda não tenhamos uma definição dos nomes que concorrerão ao cargo máximo do Poder Executivo, dentre aqueles que manifestam essa pretensão temos uma eclética lista de aspirantes a quarta via, nenhum deles que possa contar com apoio do governo estadual, maculado pelas acusações de corrupção; ou do Governo Federal, que prometeu se manter distante do pleito municipal. Não apenas os desvios na Saúde, mas o distanciamento popular e da Assembleia Legislativa, além dos embates com o Governo Federal, marcaram a gestão do governador Wilson Witzel, encontrando-se em vias de ter sua breve carreira política encurtada. Por mais que não existam provas de que teria diretamente participado dos desvios da Saúde, o governador está sendo julgado pelo conjunto da obra, no julgamento político a que será submetido.
Igor – Após o falecimento de Gil Vianna e sem um sucessor natural, entendo que a disputa se dará entre Rafael Diniz, Wladimir Garotinho, ou seu indicado, e Caio Vianna. Embora com menor rejeição, a ausência de base e um discurso histórico dos outros pré-candidatos deve impedir um crescimento mais forte para a disputa do segundo turno. A queda contratada de Witzel e a inominável gestão de Bolsonaro na pandemia também devem manter a tradição de grandes questões nacionais não afetarem o pleito municipal.
Hamilton – A Alerj tem vasto histórico de más práticas políticas, mas parece inclinada a não sustentar um governador que mostrou mais apetite pelo poder do que pela gestão pública, como se viu no atropelo/desmazelo das políticas de combate à pandemia no Estado do RIo. Isto subtrai força de quem pretendia se projetar à sombra do poder estadual, mas não interfere radicalmente no potencial das oligarquias tradicionais, cujos desafiantes maiores, em tese, estariam no campo da postulação renovadora, de direita ou centro-esquerda ou esquerda. Estas últimas pulverizadas em pelo menos três candidaturas: Rafael, Odisséia e Roberto.
Folha – Desde o pleito presidencial de 2014, o Brasil vive um clima de polarização política que se acentuou com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016 e com a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), em 2018. Se as redes sociais são sua chama e termômetro, os muitos comentários nos streamings do Folha no Ar com Caio e, sobretudo, nos dias seguidos com Wladimir e Rafael, são um indicativo de que os ataques raivosos e de baixo nível se sobreporão à discussão de propostas? A democracia vive esse dilema? Há solução?
Ricardo André – A polarização é tanta que, em plena pandemia, um medicamento virou objeto de disputa política. Quem apoia Bolsonaro não acredita na pandemia, mas quando tem qualquer sintoma já chega ao hospital pedindo cloroquina. E os que não gostam do presidente insistem que o remédio é inócuo. Em algum outro momento da vida a gente já foi ao médico já escolhendo o que tomar ou não? A facilidade de acesso às redes sociais propicia um paradoxo: ao mesmo tempo em que democratiza a informação, põe em risco a própria democracia com a criação de realidades paralelas, fake news e manipulação de dados de internautas. Como ocorreu nas eleições de Trump e Bolsonaro.
João Paulo – A mudança de postura do presidente e dos seus filhos nas redes sociais, verificada nas últimas semanas, somada ao julgamento pelo TSE e STF acerca das fake news, denotam que os ataques não são a forma mais correta e republicana de agir. Infelizmente, algumas pessoas, com a falsa impressão de segurança, destilam sua cólera. Como se o “pseudo” anonimato lhes conferissem escudo para seus atos, por mais nefastos que sejam. Verifica-se que as redes sociais ganham relevante papel, como veículo de formação da opinião da população, sendo o principal local onde manifestações pouco democráticas e republicanas ganham relevância. E merecem o tratamento adequado da Justiça, já atenta aos excessos praticados, que certamente atuará com rigor nas eleições que se avizinham.
Igor – A polarização observada nas redes parece longe do fim. Por uma condição inerente à sua essência, as redes sociais sabidamente fomentam comportamentos que repelem a discussão racional. Esse problema vem sendo abordado com mais ênfase pelo menos desde a última eleição presidencial americana e qualquer solução parece longe de ser obtida. No entanto, nenhuma saída será ideal e entender tais ambientes e suas dinâmicas como parte de uma nova fase da democracia é essencial. Assim como em outros momentos históricos a organização centralizada em forma de partidos, sindicatos e entidades de classe determinou os rumos dos países, a descentralização e horizontalização das redes terá vida longa.
Hamilton – Não há dilema: o atual sistema político, em função de sua despartidarização e despolitização, vem, crescente e consistentemente, depauperando o nível da representação política, em todos os níveis, o que a democracia virtual apenas agrava em meio à baixa e má escolarização geral. A solução está numa reforma política que induza à partidarização e à politização do sistema, a par de uma reforma na gestão da educação que mude o perfil do professorado e premie quem alcance bons resultados.
Folha – Se as eleições a prefeito de Campos serão acirradas, as de vereador, onde ainda se vota por amizade pessoal, devem ser ainda mais. E serão as primeiras sem coligações proporcionais. Como você vê? Qual será a importância delas, diante da necessidade de medidas duras e impopulares do próximo governo? Seria capaz de projetar uma taxa de renovação?
Ricardo André – A montagem das nominatas é um trabalho de engenharia política numa equação em que a maioria dos pretendentes serve de cabos eleitorais dos candidatos mais fortes. E vai ficar mudar com a vedação às coligações que vai enfraquecer as legendas de aluguel e fortalecer a representatividade dos eleitos. O ideal, na minha opinião, é que categorias e segmentos da sociedade lançassem candidatos representantes das áreas de cultura, educação, servidores, além de grupos étnicos e sociais específicos para defender suas pautas no Legislativo. Não sei se o eleitor consegue identificar como cada vereador votou na atual legislatura, por isso não vejo impacto das medidas impopulares na eleição deles, nem arriscaria um palpite quanto ao índice de renovação.
João Paulo – A maior quantidade de partidos políticos contribuirá para a pulverização dos votos válidos, permitindo-se, assim, que a representatividade popular possa ser exercida em sua plenitude, contribuindo para que a Câmara desempenhe, de fato, o seu papel de órgão fiscalizador e auxiliar do Poder Executivo na gestão da coisa pública. Em especial neste momento em que medidas duras demandam ser adotadas pelo futuro prefeito.
Igor – O fim das coligações proporcionais pode significar uma menor renovação da Câmara, o que não parece bom no longo prazo. Por outro lado, o antigo sistema distorcia completamente o voto popular. Sou bastante cético em relação à possibilidade de a nova Câmara atuar como controladora do Poder Executivo em relação ao orçamento. Se o fizer, provavelmente não será por convicção ou vocação, mas como barganha para algum tipo de negociação. O que não é, de modo algum, ilegal ou necessariamente imoral. Porém, à sociedade não interessa que a atuação do governo se dê sem uma vigilância constante e rigorosa.
Hamilton – Seja qual for a taxa de renovação ela terá baixo impacto na mudança estrutural das relações entre Executivo e Legislativo, visto que a ausência de conteúdo partidário do atual sistema político tende à anomia política. No nível local e nacional isto somente é reversível por meio do sistema de cooptação, quando o Executivo cede poder na máquina aos representantes políticos, como os vereadores.
Odisséia Carvalho, Cãndida Barcelos, Carla Machado e Fátima Pacheco (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)
Folha – Embora Rosinha tenha saído do governo para se tornar inelegível, não há dúvida de que, diferente de Dilma no Brasil, ela ainda é muito popular em Campos. Que tem duas pré-candidatas a prefeita: a ex-vereadora Odisséia Carvalho (PT) e a médica Cândida Barcelos (SD). Como avalia estas duas e, na região, as prefeitas e pré-candidatas à reeleição Carla Machado (PP), em São João da Barra, e Fátima Pacheco (DEM), em Quissamã?
Ricardo André – Dos oito anos de Rosinha, em seis ela nadou em dinheiro de royalties e participação especial. A redução dos repasses se deu a partiu de 2014 e ela recorreu a empréstimos sucessivos na Caixa Econômica comprometendo o futuro da cidade por vários anos. Odisséia foi uma vereadora combativa e produtiva. É um quadro de valor dentro do PT. Quanto às prefeitas Carla Machado e Fátima Pacheco, eu conheço pouco da política dos seus municípios. Mas em regra, saem com vantagem na campanha pela reeleição, porque estão no poder e ambas tiveram crescimento de recursos de royalties nos últimos quatro anos.
João Paulo – Cada vez mais participativas na vida política, nas mais diversas esferas de atuação, as mulheres têm mostrado sua importância e sua competência no cenário eleitoral de nossa região. Não apenas Carla Machado e Fátima, mas Francimara (Barbosa Lemos, SD, prefeita de São Francisco de Itabapoana) e Christiane (Cordeiro, PP, prefeita de Carapebus), apresentam-se como fortes candidatas à reeleição, mercê do elogiável trabalho realizado à frente de suas respectivas Prefeituras. As pré-candidaturas de Odisséia Carvalho e Cândida Barcelos ajudam a oxigenar o pleito, conferindo mais opções aos eleitores. Não apenas por se tratar de pessoas de moral ilibada, mas por se destacaram em suas atividades profissionais.
Igor – Odisséia deve sofrer bastante pela rejeição ao PT, ainda latente em muitas camadas da população. Por sua vez, a Dra. Cândida pode faltar alguma bandeira histórica ou proposta de impacto que mobilize uma base eleitoral capaz de lhe dar sustentação para buscar novos votos. Porém, desde as eleições municipais de 2016, nos acostumamos a reviravoltas e resultados surpreendentes. O que me não me faz descartar sumariamente nenhum candidato. Quanto às administrações de Carla Machado e Fátima Pacheco, não me sinto à vontade para opinar, uma vez que não acompanho detidamente o que acontece em São João da Barra e Quissamã.
Hamilton – Gênero e raça são elementos simbólicos na política, que ganharam inevitável destaque com a crescente democratização, mas não substituem os interesses fundamentais que operam por trás dos atores políticos. Odisséia representa o PT sindicalista; Cândida, provavelmente, o tradicionalismo; Carla, a velha política, sempre com sérios problemas na Justiça, mas com inegável capacidade administrativa; e Fátima, uma renovação política qualificada, derivada das crescentes demandas sociais do país, que deu certo.
A partir das 7h da manhã desta segunda (20) o convidado do Folha no Ar, na Folha FM 98,3, será o jornalista José Trajano, ex-diretor da ESPN Brasil. Ele falará sobre o jornalismo em tempos da pandemia da Covid-19, sobre o quadro político no Estado do Rio de Wilson Witzel (PSC) e no Brasil de Jair Bolsonaro (sem partido), além do futebol brasileiro e do Flamengo sem o técnico português Jorge Jesus, que confirmou hoje (17) ter fechado com o Benfica, maior clube do seu país.
Quem quiser participar ao vivo do Folha no Ar desta segunda, pode fazê-lo com comentários em tempo real, no streaming do programa. Seu link será disponibilizado alguns minutos antes do início, na página da Folha FM 98,3 no Facebook.
As transições do bolsonarismo nos rumos do Brasil, os caminhos do lulopetismo e da esquerda brasileira, a ameaça de impeachment do governador do Estado do Rio, as eleições de novembro a presidente dos EUA e a prefeito de Campos. Sobre estes temas complexos, seis convidados aceitaram o desafio da análise em 12 perguntas. Feitas, em ordem alfabética invertida na metade da entrevista, ao historiador Arthur Soffiati, aos advogados Carlos Alexandre de Azevedo Campos e Cristiano Miller, ao cientista político George Gomes Coutinho, ao especialista em pesquisas Murillo Dieguez e ao sociólogo Roberto Dutra. Murillo e Cristiano foram mais concisos, mas não menos incisivos. George e Roberto espraiaram suas capacidades de interpretação, dando-lhes profundidade. Carlos Alexandre pareceu opinar mais como analista político que como jurista, sem citar o Supremo Tribunal Federal (STF) do qual foi assessor. Arthur, com larga experiência em jornal para além da academia, assumiu o equilíbrio: “nunca mudei radicalmente de posição”.
Entre a meia dúzia de entrevistados submetidos à mesma dúzia de perguntas, a maioria concordou com os números das pesquisas que apontam substituições nos 32% dos brasileiros que apoiam o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), contra os 44% que o rejeitam. Assim como em críticas ao ex-presidente Lula e ao PT, ou ao ex-juiz federal e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. A unanimidade foi sobre a situação difícil que outro ex-juiz federal, o governador Wilson Witzel (PSC), enfrentará na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) para se manter no cargo. Todos também concordaram que, a quatro meses das urnas municipais, o que se tem hoje sobre a eleição do governo goitacá são indefinições e incertezas. A outro ex-presidente, Getúlio Vargas, é atribuída a frase: “Campos é o espelho do Brasil”. Na dúvida, uma certeza: com a visão de Roberto, Murillo, George, Cristiano, Carlos Alexandre e Arthur, o país e o mundo ganham projeção mais nítida. E também se refletem no leito do rio Paraíba do Sul.
“E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia”
(Alberto Caeiro/Fernando Pessoa)
Arthur Soffiati, Carlos Alexandre de Azevedo Campos, Cristiano Miller, George Gomes Coutinho, Murillo Dieguez e Roberto Dutra (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)
Opiniões – Feita após a prisão de Fabrício Queiroz, a pesquisa Datafolha feita entre 23 e 24 de junho, indica (confira aqui) que Jair Bolsonaro ainda mantém 32% de aprovação popular. A que você credita isso?
Arthur Soffiati – Podemos reconhecer dois grupos que apoiaram Bolsonaro na eleição de 2018: o núcleo duro, apoiador da família Bolsonaro em qualquer circunstância, e os que o apoiaram por descontentamento com os governos anteriores e com os casos de corrupção. Parte desses 32% é formado pelo núcleo duro e fanático, que considera Bolsonaro um mito e não dá mostras de retirar seu apoio a ele, mesmo que ele se envolva em grande escândalo de corrupção. Há também um grupo que está se beneficiando de auxílio emergencial. Os outros já se decepcionaram. Creio que não votariam nele, caso se recandidate.
Carlos Alexandre de Azevedo Campos – O eleitorado de Bolsonaro é heterogêneo, e ainda mais o contingente que votou nele. Mas há que se diferenciar esses dois grupos. O eleitorado fiel é composto, primeiramente, pelos fanáticos: aqueles que enxergam em Bolsonaro as suas próprias figuras, seja na ideologia conservadora, no desprezo por minorias, no saudosismo do governo militar, seja no próprio modo caricato de ser. Aqui, pode-se falar em identidade absoluta, não havendo chances de mudança de opção. Há também os que possuem uma identidade militar, um histórico dessa espécie, incluídos outros agentes de polícia, por exemplo. Não são todos, mas trata-se de uma grande maioria desses profissionais que vai até o fim com o presidente. E há os que têm um horror absoluto à volta do PT ou de algum outro governo que considerem ser “de esquerda”. Penso que esses grupos compõem a grande parte dos 32% que vão até o fim com o Bolsonaro, independentemente do que ele venha a fazer de ruim ou péssimo. Nesse grande grupo, não há distinção de sexo, classe social e, em alguma medida, nem de raça.
Cristiano Miller – O presidente Bolsonaro tem um “público fiel”, o que, aliás, parece-me ser algo normal, em especial diante de pessoas ou ideologias extremistas. Mas, no caso, ainda que o percentual esteja se mantendo há algum tempo, mesmo após fatos notórios graves, é bem possível que esteja havendo alguma mudança na composição desse percentual, com a saída de pessoas que haviam apoiado o presidente em prol de uma suposta moralização e a entrada de cidadãos agora beneficiados com a ajuda governamental decorrente da pandemia do coronavírus.
George Gomes Coutinho – Penso que temos duas razões para explicar essa permanência da popularidade. Uma delas se encontra na fisionomia do sistema político brasileiro pós-2013. A bipolarização hegemônica PT-PSDB da década de 1990 a 2013 atraiu os agentes políticos para o centro político. Isto inclui os extremos do espectro político, tanto da esquerda quanto na direita. De alguma maneira isso permitiu que os setores mais radicais se deparassem com os filtros de ambos os partidos que atuaram dentro das regras do Estado Democrático de Direito estabilizando o sistema político. Ou seja, nem PT e tampouco PSDB tinham por objetivo a subversão da ordem para obterem o poder. Pelo contrário, atuaram dentro da ordem democrática utilizando da competição eleitoral e aceitando os resultados. A exceção foi o questionamento da validade das regras do jogo em 2014 por Aécio Neves. Mas, é exceção. Não é regra. Por outro lado a transição civilizada de poder de FHC para Lula ilustra o que eu estou dizendo em termos de manutenção da estabilidade do sistema político na ordem democrática. Bem, de todo modo o período da maior estabilidade política já nos dá um indicativo importante sobre os extremos. Estes não desaparecem pós-1988. Na verdade os extremos se acomodam nas estruturas partidárias legais. E seu eleitorado tampouco desapareceu. Uma prova disto é compreendermos que Jair Bolsonaro teve uma carreira muito bem sucedida enquanto parlamentar. Foram quase três décadas transitando em partidos da direita fisiológica, o que inclui o PP. Contudo, o seu discurso extremista se apresentava no máximo como parte do anedotário político. E a própria estrutura do sistema político o “controlava” escanteando o deputado. Mas, não só Bolsonaro. Cabe notar que PSDB, ex-PFL e outros partidos da centro direita também atraíram agentes políticos egressos, por exemplo, da segurança pública com a mesma pauta conservadora e discursos agressivos, pautas de ódio e afins. Mas, a própria estrutura partidária neutralizava ou fazia com que os estes agentes, se tem ambições de ocupar relatorias, acessarem verbas, terem projetos aprovados, seriam obrigados a irem ao centro político, diminuírem a beligerância de seus discursos. De alguma maneira, os partidos e o próprio sistema político até mais ou menos 2013 impunham um filtro civilizatório e freavam arroubos disruptivos. Contudo, como eu disse, esta fisionomia do sistema político implodiu. O eleitorado de extrema direita pós-2013, que jamais abandonou uma pauta conservadora nos costumes: anti-LGBT, anticotas raciais, punitivista, armamentista, etc. Eviu opções na concorrência eleitoral que finalmente poderiam apresentar suas agendas nos escombros da polarização PT-PSDB. Cabe notar que o acirramento dos discursos fez até mesmo com que João Dória, candidato do PSDB ao governo de São Paulo, ingressasse no discurso “linha dura” com muitas afinidades com as demandas da extrema-direita. Em 2018 era o voto “BolsoDória”. Portanto, este eleitorado, que jamais deixou de existir, vê em Bolsonaro a representação de seus valores, anseios e projeto de sociedade. É um eleitorado de extrema direita que defende, mesmo que sem absoluta compreensão de suas consequências, a possibilidade de um golpe de Estado como solução para o Brasil. Soluções simples, de curto prazo, para problemas invariavelmente complexos e estruturados há décadas… E, em alguns casos, problemas estes que encontram suas raízes até mesmo na construção do Brasil enquanto Estado-Nação no século XIX. Na mesma pesquisa citada por você esse eleitorado é algo nos arredores de 15% (aqui). É um eleitorado que aderiu aos elementos discursivos, práticos e programáticos de Bolsonaro. Não é o eleitorado pragmático que falarei mais adiante. Estes 15% acreditam que as eleições de 2018 significam a refundação da sociedade brasileira e veem em Bolsonaro a personificação deste projeto. Quanto aos outros eleitores, os 15% restantes, creio que podemos classifica-los menos como programáticos e mais como pragmáticos. Ou seja, veem em Bolsonaro e em seu governo a possibilidade de atendimento de suas demandas de curtíssimo prazo. De um lado os que apostam no que Christian Lynch (cientista político e professor da Uerj) acertadamente considerou um pouco como tornar o Brasil uma imensa Miami idealizada. Sem proteção social para trabalhadores e setores vulnerabilizados, paraíso de consumo, amplos setores e serviços sob direção da iniciativa privada, soluções individualizadas para problemas coletivos, etc. São parte da classe média, diferentes níveis do empresariado, setor financeiro. Cabe notar a histeria de parte da classe média diante, por exemplo, com a possibilidade de empregadas domésticas terem o mesmo status de outros trabalhadores brasileiros. Demanda similar se encontra no empresariado onde problemas de redução de lucros gerados por baixíssima produtividade tem sido remediados não com investimento e sim em redução do custo da força de trabalho retirando a proteção social dos mesmos. Cabe notar que parte deste setor de pragmáticos tem saído gradativamente do apoio ao governo. Não por estarem perplexos com os arroubos, maus modos e demonstrações de práticas e discursos no campo da extrema direita. Mas, sim, se sentem desapontados por não verem neste governo o possibilidade do projeto “Miami Continental”, digamos assim, decantar na realidade. Paradoxalmente se os setores pragmáticos acima são anti-Estado, o outro grupo de pragmáticos é pró-Estado. São os grupos vulneráveis que se encontram ainda mais fragilizados durante a pandemia e veem na Renda Básica Emergencial possibilidade de manutenção de suas contas e até mesmo de sobrevivência. Dentre estes há até mesmo acesso a patamares de consumo que não conheciam antes da pandemia. É o voto pragmático LulaNaro, ou BolsoLula. Este agrupamento, em sua fragilidade sócio-econômica, tem suas preferências políticas afetadas de forma direta ou indireta por políticas redistributivas. Alguns analistas consideram que o estoque de apoiadores do governo Bolsonaro tem novidades justamente entre estes dois grupos de eleitores pragmáticos. Os primeiros, mais próximos de uma agenda ultraliberal e anti-Estado, começam gradativamente a sair do apoio. E os segundos, os setores vulnerabilizados, passam a apoiar o governo Bolsonaro a partir da entrada em cena de políticas redistributivas. Teríamos o fenômeno de renovação da base de apoio ao governo neste ano de 2020 motivado por razões conjunturais, a quarentena no caso. Enfim, a permanência é explicável por uma parte do eleitorado identificado com valores e propostas da extrema direita. É o eleitorado ideológico. Mas, também por pragmatismo de eleitores tanto anti-Estado, os que se engajaram na agenda ultraliberal de Bolsonaro/Guedes que ainda permanecem no apoio, e, por motivações opostas, por pragmatismo de setores vulnerabilizados atraídos por políticas redistributivas durante a quarentena. Estes últimos os novíssimos apoiadores ou apoiadores de última hora.
Murillo Dieguez – A prisão de Queiroz não trouxe nenhuma novidade ao que já se sabia. Acho que a “rachadinha”, em si, não vai impactar a sua popularidade.
Roberto Dutra — Em meados do ano passado o presidente também tinha em torno de 30% de aprovação. No entanto, a pesquisa indica que pode estar ocorrendo uma reconfiguração social desta aprovação. Mais ou menos metade deste apoio se mantém a mesma: vem daquele grupo de eleitores que as pesquisadoras Esther Solano e Camila Rocha (aqui) classificam como “bolsonaristas fiéis”. A outra metade é de eleitores mais voláteis, inclusive com uma parte que não votou no presidente em 2018: desde maio é possível perceber que cerca de 1/3 dos que aprovam o governo não votou em Bolsonaro. Ao mesmo tempo em que perde apoio nas classes média e alta, o presidente ganha apoio entre os pobres. Parece haver uma mudança na estrutura social de apoio ao presidente, que migra dos mais ricos para os mais pobres. Como a maioria destes “novos apoiadores” recebeu o auxílio emergencial implantando na pandemia, a hipótese de que a transferência de renda é o principal fator explicativo para esta mudança é muito plausível. Em resumo: a manutenção ou ampliação da base parece se explicar pelo incipiente realinhamento social do apoio ao presidente, o que depende diretamente da política de transferência de renda. Manter ou ampliar este “novo apoio” exige mudanças fundamentais no próprio bolsonarismo e uma reinvenção do governo.
(Foto: Ueslei Marcelino – Reuters)
Opiniões – O Datafolha também apontou que Bolsonaro tem 44% de rejeição. É o pior índice de um presidente com um ano e meio de gestão durante a redemocratização do país, superando Fernando Collor de Mello em 1991, que bateu 41% de rejeição com um ano e cinco meses no poder. Como entender a avaliação popular nas suas duas pontas?
Arthur – Digamos que 20% apoiam Bolsonaro incondicionalmente. Dez por cento o apoiam por conveniência. Nos 44% de rejeição, estão incluídos os que nunca o apoiaram e que perceberam com mais clareza suas deficiências, bem como aqueles que votaram nele e se arrependeram. Em momento algum, ele demonstrou capacidade de governar. Trata-se de um desastrado, de um trapalhão. A República, que eu saiba, nunca conheceu um presidente com o perfil dele. Creio que a alta rejeição decorre daí.
Carlos Alexandre – Complementando a resposta anterior, por sua vez, nem todos que votaram nele podem se enquadrar no mesmo perfil, próximo ao fanatismo. Há os que esperavam melhorias na economia, mais combate à corrupção, maior transparência, que não enxergavam riscos de nepotismo ou autoritarismo, que acreditavam na escolha técnica de ministros, secretários. Há os que desejavam, legitimamente, a alternância de poder. Penso que a maior parte desse grupo, que acredito ser os que realmente decidem uma eleição majoritária, está decepcionada com o despreparo, com a falta de empatia do presidente, com suas rusgas com o Moro, com as restrições à política neoliberal do Guedes, com o protecionismo aos seus filhos, com a desastrosa condução da crise do Covid, enfim, com a falta de resultados positivos. Acho que essa maior parte se juntou aos que já não toleravam Bolsonaro, antes mesmo de sua eleição, por razões partidárias ou não. Ademais, assim como Lula, Bolsonaro é um populista, de forma que é normal conviver entre esses extremos.
Cristiano – O momento colabora para essa rejeição. Em verdade, desde o início do seu governo, o presidente vem tendo um comportamento inadequado em diversas frentes. As suas declarações beiram o folclore, não fosse ele o presidente de um país da importância do Brasil. E essas posturas desastradas, bem como o comportamento equivocado e negacionista no momento da mais grave crise sanitária e econômica dos últimos 100 anos, contribuem também para esse elevadíssimo percentual de rejeição.
George – Os que rejeitam podem também se situar entre pragmáticos e ideológicos digamos assim. Bolsonaro conta, até por elementos constitutivos de sua retórica, com rejeição perene e organizada dos setores do eleitorado que enxergam nas pautas progressistas e políticas inclusivas um patrimônio civilizatório. Neste escopo vai desde a militância tradicional de esquerda até grupos de uma classe média mais cosmopolita, instruída por valores da pauta sócio-ambiental que o sociólogo Jessé Souza ironicamente chamaria de “classe média de Oslo”. São grupos que não iriam aderir a um discurso que mantém afinidades com pautas regressivas em termos sociais. Já seriam o núcleo duro de oposição ao governo Bolsonaro. Se enxergam ameaçados, até mesmo em seu estilo de vida, pelo discurso extremista do presidente e de seus seguidores mais ruidosos. Contudo, há outros insatisfeitos. Desde o eleitorado antipetista que votou afetivamente em Bolsonaro contra o PT como uma espécie de “vingança”, até eleitores que consideram a possibilidade de piora da situação sócio-econômica do país, o que inclui a perda de qualidade na inserção no Brasil no sistema internacional e nas relações de comércio exterior. Estes últimos se preocupam cotidianamente com a hipótese do Brasil se tornar um pária internacional e consideram a permanência do governo um custo muito alto a se pagar por efeitos deletérios no médio e longo prazos. Sejam os eleitores que votaram “com o fígado” ou os que consomem informações econômicas objetivamente, ambos os grupos não são eleitores progressistas ou da esquerda tradicional. Não seriam, portanto, estruturalmente oposição ao governo Bolsonaro. Contudo seja pela racionalidade decorrente da passagem do tempo, que acalma os humores, ou os dados objetivos macroeconômicos, estes eleitores acabam se vendo empurrados para uma condição que gravita entre impaciência, desespero e franca irritação.
Murillo – A rejeição é, sim, perigosa. Quando analiso pesquisa, uma das coisas que dou mais atenção é a rejeição. Pelas bobagens que faz e fez, honestamente, imaginei que ele tivesse perto dos 50%.
Roberto – A rejeição aumentou nas classes média e alta. O presidente se desgastou muito em função de sua postura sobre a pandemia e das acusações de corrupção envolvendo seus filhos. A atitude de indiferença em relação aos mortos gerou um impacto muito negativo, especialmente entre as mulheres. No entanto, a elevada rejeição parece ser uma característica estrutural do governo: como ele é voltado para a “guerra cultural” enquanto mecanismo de mobilização de apoio que penetra na própria administração, sua incapacidade de entregar resultados é crônica e vai sempre cobrar um preço alto. Este custo, no entanto, parece estar calculado deste o começo: a tática da “guerra cultural” permite manter a “maior das minorias” e tentar alargá-la no momento eleitoral. O pressuposto para que isso dê certo novamente é a reprodução da “cultura política antissistema”, especialmente do antipetismo. A rejeição ao governo pode ser maior que a aprovação desde que 1) a aprovação não caia muito, o que ele tem conseguido fazer; e 2) que a rejeição ao principal concorrente da oposição, o antipetismo, se mantenha tão ou mais elevada que a do presidente, o que também tem se mantido.
(Infográfico: Datafolha)
Opiniões – Segundo a pesquisa, a perda de apoio do presidente entre as classes média e alta foi substituída pelo seu crescimento junto à parcela mais pobre da população. Hoje, metade dos que consideram o governo bom ou ótimo ganha até dois salários mínimos. Como você vê?
Arthur – Por mais prisioneiro que Bolsonaro seja dos apoiadores fundamentalistas e por mais obtuso que ele seja, já é possível perceber que não existem condições objetivas para um golpe com apoio das forças armadas. A grande imprensa faz-lhe uma crítica cerrada e a conjuntura internacional não é mais favorável a ditaduras, embora exista uma tendência conservadora e retrógrada no mundo. Daí, Bolsonaro estar se voltando para o centrão e praticando uma política populista junto ao eleitorado pobre, sobretudo o nordestino, onde ele não conta com o apoio dos governadores.
Carlos Alexandre – Não sei se posso acreditar que houve um aumento do apoio entre os mais pobres. Sei que é um engano acreditar que foi uma “elite” que elegeu Bolsonaro. Ao contrário, acredito que os votos dos mais pobres foi mais decisivo, principalmente em razão do tema “segurança pública”. Mas daí a dizer que esse apoio aumentou, custo a acreditar. Se ocorreu, só posso pensar na força da indústria das fake news, mentiras que costumam ser mais facilmente consideradas “verdades” entre os menos esclarecidos. O populismo também tem mais recepção entre esse grupo mais educacionalmente vulnerável. Contudo, ainda assim, penso que Bolsonaro perdeu apoio linearmente.
Cristiano – Como falei antes, de fato parece ter havido essa “substituição” dentre uma parcela dos apoiadores do presidente. Isso certamente se deve ao benefício concedido pelo governo durante a pandemia, o que provavelmente fará com o que o presidente passe a dar um pouco mais importância para essa parcela da população, embora ideologicamente esse não seja o seu propósito.
George – Como apontei na minha primeira resposta, no primeiro grupo, entre partes das classes média e alta, há a frustração de expectativas. A aposta foi bastante alta por este grupo. No segundo grupo, os setores mais vulneráveis, há a surpresa, o fato inesperado de que alguns, mesmo na quarentena, mediante a Renda Básica Emergencial, se encontram em patamares de consumo que até então sequer haviam experimentado em suas biografias. Esta mudança concreta de padrões de consumo faz com que racionalmente, mesmo que no curtíssimo prazo, este grupo passe a ser apoiador do governo. O desafio é a sustentabilidade deste apoio no médio prazo. Por ter um dado objetivo para sua mudança de preferências, a política redistributiva, a retirada abrupta pode causar profunda frustração também neste grupo. Frustração e raiva. Algo que o PT experimentou no segundo governo Dilma no ano de 2015 em diversas camadas da população. Por ser algo previsível, esta diminuição do quantitativos de atendidos pelas políticas de transferência de renda durante a quarentena, talvez permaneçam no apoio ao governo, ao final de tudo, os 15% que mantém afinidades com propostas extremistas e que defendem uma solução que subverta a ordem democrática.
Murillo – Ele já tinha parte desse eleitorado. Sobretudo, no público masculino. Lembra dos caminhoneiros? É evidente que o 13° salário para o Bolsa Família e a ajuda emergencial dos 600 reais ajudaram muito.
Roberto – Há um realinhamento incipiente na base de apoio ao presidente. A perda de apoio nas classes média e alta se explica, em grande parte, pela decepção com a falta de resultados no combate a pandemia e na luta contra a corrupção. E o aumento de apoio entre os mais pobres parece estar relacionada à entrega de um resultado importante na pandemia: o auxílio emergencial. De acordo com as análises do sociólogo Rogério Barbosa (aqui), o benefício foi responsável por uma tendência inusitada, embora “artificialmente” criada: a partir de maio de 2020 houve um ganho de renda domiciliar per capta entre aqueles de menor renda, garantido pelo auxílio emergencial, enquanto nas faixas de renda mais elevada houve perda em relação ao ano passado. Nestes dois meses, estamos vivendo uma queda da pobreza e da desigualdade em função do auxílio emergencial, capaz de garantir um “mínimo existencial” que o Bolsa Família já não assegurava. A consolidação deste realinhamento parece depender da manutenção desta tendência de aumento da renda dos mais pobres, o que obriga o governo a reorientar a política econômica e social e a abandonar a “guerra cultural” como eixo principal de seu funcionamento. O governo de “guerra cultural” não tem condições de garantir sozinho a sobrevivência do bolsonarismo como minoria de um terço capaz de ser ampliada pelo ódio autofabricado. A pandemia agravou muito rapidamente os efeitos da crise programática de nosso sistema político sobre o próprio bolsonarismo, pois a entrega de resultados econômicos e sociais se torna urgente para manter a base de apoio ao presidente. Reinventar o governo parece ser uma necessidade. Ao mesmo tempo em que não pode se desfazer da “guerra cultural” para mobilizar sua base de “apoiadores fiéis”, o presidente percebe que precisa de um realinhamento parlamentar e social que não pode ser alcançado e mantido pelo método do confronto moral e cultural, pois depende da entrega de resultados econômicos e sociais. Não se pode afirmar que o governo seja incapaz de fazer esta reinvenção. Bolsonaro já nos surpreendeu o suficiente para não descartarmos esta possibilidade. O que podemos afirmar é que não é possível governar com alguma racionalidade na busca de resultados sem impedir que a mobilização e o discurso moralista “antissistema” dominem o próprio governo.
Mauor Paulino, diretor do Datafolha
Opiniões – Diretor do Datafolha, Mauro Paulino explicou que tanto nas pesquisas de maio, quanto de junho, um terço dos 32% que hoje apoiam o presidente não votaram nele em 2018. Entre estes novos 10%, a maioria recebeu o auxílio emergencial de R$ 600. Será o novo caminho para o bolsonarismo, como foi o Bolsa Família para o PT? Por quê?
Arthur – Sim, creio que Bolsonaro está percebendo com dificuldade o quão difícil é romper em pouco tempo com o presidencialismo de coalização. Podemos imaginar que ele perdeu 10% de apoiadores por decepção, recuperando sua base com não apoiadores que se sentem beneficiados com a política de auxílio emergencial e outras vantagens. Mas é sempre perigoso contar com eleitores pobres. Eles não agem por ideologia. O apoio pode ser retirado a qualquer momento.
Carlos Alexandre – Como respondi anteriormente, esse resultado não engulo muito bem. De qualquer forma, o auxílio, porque a pandemia vai passar, irá cessar, e novas pesquisas deverão ser feitas. Acho que se Bolsonaro mantiver o assistencialismo, torná-lo política pública permanente, poderá sofrer perda de apoio em outros grupos que acreditavam numa mudança de rumos em relação ao chamado “pensamento de esquerda”. Pode vir a ser um jogo de soma zero para ele. Sinceramente, difícil raciocinar em cima de uma hipótese em que não acredito. Os números às vezes erram.
Cristiano – Mormente diante da flagrante rejeição, pode ser que o presidente esteja tentando mirar em um novo alvo, seguindo por um caminho diferente daquele que pretendia inicialmente. Esses novos apoiadores, contudo, fruto de um benefício temporário, não podem ser considerados dentro de um perfil de fidelidade, o que provavelmente interferirá negativamente no percentual de pesquisas futuras.
George – A conferir. O Bolsa Família foi um programa de transferência consolidado que deu novo significado a politicas sociais focalizadas implementadas ainda do governo FHC. O Bolsa se tornou um programa bastante sólido, é de alguma maneira até mesmo afinado com muitos princípios que estão na Constituição de 1988. Não por acaso grupos políticos de ambos os lados do espectro político defendem a constitucionalização do programa. Se o governo Bolsonaro irá inaugurar iniciativas com este impacto estrutural que modifiquem as preferências do eleitorado. Não me parece algo que está no DNA deste governo em especial. Seria um esforço de policy switch considerável. E caberia vermos se seria de fato eficaz nas próximas concorrências eleitorais. De todo modo tudo me parece tão hipotético ainda que tenho dificuldade de cravar uma resposta que não seja meramente especulativa e/ou evasiva.
Murillo – Política de transferência de renda se traduz em votos. Haja vista a “Chequinho”. Bolsonaro é um populista de alto coturno. A agenda com que ele ganhou a eleição, parte dela está sendo abandonada. Isso explica a perda de popularidade nas classes A e B.
Roberto – Pode ser um novo caminho, mas não é um caminho simples. A transferência de renda fideliza este eleitorado porque garante um “mínimo existencial”. E o “mínimo” assegurado pelo auxílio emergencial, além de ser maior que o do Bolsa Família, alcança muito mais gente. No entanto, o caminho é mais complexo e vai além da política de transferência de renda, quase sempre superestimada. Os governos do PT fizeram outras políticas que impactaram positivamente na renda e no padrão de vida dos mais pobres, como o aumento do salário mínimo. No entanto, nenhuma delas incluiu transformações econômicas capazes de garantir a distribuição de ganhos de produtividade e assim dar sustentação à melhoria do padrão de renda. O aumento da renda e do consumo dos mais pobres foi pago com a exportação de commodities. O fim do ciclo de preços elevados para os commodities escancarou a contradição de um governo que pretendia distribuir renda sem transformar as estruturas do sistema econômico, caracterizado por um drástico processo de reprimarização. A redistribuição marginal da renda, que deixa intocadas as estruturas do subdesenvolvimento e do primitivismo econômico, é insustentável. Por isso, o caminho para Bolsonaro é mais complicado. Lula teve sorte de contar com a onda dos preços elevados das commodities. Bolsonaro teve azar. Lula pôde fugir por dois mandatos da luta redistributiva efetiva porque os commodities pagavam a conta. Se Bolsonaro decidir manter uma política de elevação da renda dos mais pobres, ele não poderá fugir da luta redistributiva. E além da luta redistributiva, tem a questão da elevação do padrão de riqueza e das oportunidades econômicas, condição necessária para superar os bloqueios da mobilidade social e as frustrações daí decorrentes: a percepção de mobilidade social é uma variável importante para a consolidação do apoio e do voto (aqui). Lula foi premiado por esta percepção, compartilhada por milhões de pobres remediados. Agora quem vai pagar a conta? Qual o projeto para transformar nosso padrão de riqueza? O país está ficando mais pobre e menos complexo economicamente. Não é possível fazer política social sem considerar a urgência da uma política econômica que enfrente o problema do subdesenvolvimento e da reprimarização da economia. O caminho de Lula era um atalho, que parece estar fechado para Bolsonaro, a não ser que haja uma grande reorientação na política econômica, o que parece impossível com Paulo Guedes no comando.
Amigo de longa data de Jair Bolsonaro e ex-assessor parlamentar de Flávio, Fabrício Queiroz foi preso em Atibaia (SP), em 18 de junho, na casa de Frederick Wassef, então advogado do clã presidencial (Foto: Reprodução de TV)
Senador Flávio Bolsonaro
Opiniões – A perda de apoio do presidente entre as classes média e alta, que votaram maciçamente nele em 2018, teria começado com a saída do ex-ministro Sérgio Moro do governo. E se intensificado com o inquérito das fake news, a prisão de Queiroz e o avanço das investigações da “rachadinha” do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), quando deputado estadual do RJ. Como analisa essa perda da bandeira moralista da luta contra a corrupção?
Arthur – De fato, a saída de Sérgio Moro desagradou parte do eleitorado dele, já que o juiz era um símbolo da luta contra a corrupção e contra o crime organizado. Em campanha, é fácil defender programas inviáveis, por mais convincentes que eles possam ser. No exercício do governo, as dificuldades começam a aparecer. Não apenas elas, mas descobertas que não mereceriam muita atenção pública caso se referissem a políticos do baixo clero. Parecia que a família Bolsonaro era formada por santos incorruptíveis. Mas, uma vez em evidência, os trastes jogados no porão começam a aparecer. Como combater a corrupção e o crime organizado se aparecem cada vez mais indícios de que família Bolsonaro tem envolvimentos com ambas?
Carlos Alexandre – Moro foi uma bandeira de governo, assim como o tema do combate à corrupção. Serviram para a eleição, mas nunca foram prioridades realmente. Acredito que a agenda ideológica sempre foi mesmo “a menina dos olhos” de Bolsonaro. Na verdade, Moro sempre foi para ele um potencial adversário, e o presidente nunca perdeu uma oportunidade de desprezá-lo. Ademais, como políticos de pouca expressão e nada confiáveis, restava aos membros da família o esquema da “rachadinha”, e isso se torna agora evidente, assim como o modo “fake” de fazer política. Tudo isso representa aos eleitores não fanáticos uma decepção e perda de apoio para o presidente. Isso certamente se refletirá nas urnas. Uma economia que não decolou e um combate “fake” à corrupção, nada mais desastroso.
Cristiano – De fato, diante do cenário desastroso do governo petista, a luta contra a corrupção foi a principal bandeira da campanha do Bolsonaro, que, para isso, contou com o Sergio Moro como um personagem importante. Mas, com o passar o tempo, e com as evidências da prática de condutas nada diferentes daquelas existentes em governos anteriores, aqueles eleitores que votaram no Bolsonaro por esse motivo começaram a perceber que embarcaram numa “canoa furada” e que a tal “bandeira moralista” não passava de mais uma promessa de campanha não cumprida.
George – Sobre este campo, a pauta “anti-corrupção”, realmente eu tenho dúvidas se a saída de Sérgio Moro causou tamanho impacto. Pode ter causado sim baixas no apoio. Mas, não algo dotado de impacto estrutural. Igualmente tenho muitas dúvidas se a pauta anti-corrupção, embora sem dúvida vocalizada muitíssimo, seja realmente um modulador de preferências relevante. Cabe notar que para parte destes grupos “anti-corrupção” a prática de corrupção era algo vinculado a um determinado grupo do espectro político. Curioso que tanto parte da esquerda quanto parte da direita compartilham essa curiosa percepção: a corrupção é privilégio do outro lado do espectro político. Faticamente enquanto fenômeno de massas os agrupamentos “anti-corrupção” causaram abalos sísmicos de fato em dois governos do campo da centro-esquerda. O governo João Goulart na década de 1960 e no governo Dilma na década de 2010. Finalizando a minha reposta, eu gostaria de olhar mais detidamente para os dados e comparar com outras pesquisas para assumir um veredito. Neste momento sou cético quanto a ser uma bandeira que causaria uma debandada importante de apoio ao governo.
Murillo – Não concordo que esta perda tenha começado com a saída de Moro e se intensificado com o inquérito das fake news. Isso vem de antes. Bolsonaro é uma usina de fazer e falar bobagens.
Roberto – Bolsonaro surfou na onda da moralização da política, conseguindo combinar vários movimentos de condenação moral do sistema político, afinados com diferentes classes e segmentos de classe. A política brasileira foi tomada por um leque variado de fenômenos de moralização que se retroalimentam em círculo vicioso. O antipetismo é talvez o mais destacado, mas deve ser entendido no contexto de outros fenômenos similares e complementares que o alimentam, como a cruzada anticorrupção do lavajatismo e a “guerra cultural” do bolsonarismo. Em termos gerais, os fenômenos de moralização da política se caracterizam pela colonização da política pelo código moral, o binarismo bem/mal; ouseja, pela tradução de problemas e causas coletivas em problemas e causas morais: o foco passa ser a acusação de pessoas e grupos como os responsáveis pelo mal e a busca de heróis “antissistema” capazes de promover a vitória do bem como solução única e invariável para todos os problemas. O lavajtaismo tem sua base em frações da classe média tradicional, herdeira do velho e conhecido udenismo. O bolsonarismo é mais recente e inédito, e não tem herdeiros significativos na história política brasileira: trata-se de frações da baixa classe média e das classes populares, cujo moralismo está mais voltado para o combate à violência e a controvérsias sobre costumes. Tivemos uma composição entre lavatajismo e bolsonarismo, que se desfez, e a perda da bandeira anticorrupção pode ser realmente danosa em situação de crescente deterioração econômica, como vimos acontecer no governo Dilma.
Enterro de vítimas da Covid-19 no Cemitério São Francisco Xavier, no Rio (Foto: Saulo Angelo – Futura Press – Estadão Conteúdo)
Opiniões – Outro fator de perda de apoio de Bolsonaro, sobretudo entre as mulheres, é sua condução da crise da pandemia da Covid-19, alvo de reprovação em todo o mundo. Como viu agora seu anúncio de que testou positivo para a doença, bem como os desejos de morte que lhe destinaram parte dos seus opositores? E a possibilidade do presidente do Brasil ser processado por crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional de Haia?
Arthur – Antes mesmo de chegar à presidência, Jair Bolsonaro era abominado pelas mulheres politizadas e militantes do movimento feminista. Os filhos também, embora existam mulheres que apoiem toda a família de maneira aparentemente contraditória. Já com relação à pandemia da Covid-19, Bolsonaro vem revelando ser o mais irresponsável, incompetente e cruel chefe de Estado. Nem mesmo contaminado, ele adota postura condizente com, até aqui, a maior pandemia do século XXI. Venho lendo artigos de autores que desejam expressamente a morte do presidente. Seu comportamento contém mesmo fortes elementos para ser processado por crimes contra a humanidade. Essa prova de fogo que ele não está sabendo ou querendo enfrentar vem lhe roubando apoio, como se viu na fala de uma mulher que o apoiava e que ele mandou sair de sua presença.
Carlos Alexandre – Governantes de todo mundo e do Brasil que se contaminaram se submeteram aos tratamentos médicos, observaram as opiniões dos cientistas e, acima de tudo, foram discretos nesse momento. O que fez Bolsonaro? Comercial da cloroquina, sua bandeira, ao lado do negacionismo, contra a ciência e o resto do mundo. Como acreditar na seriedade, no comprometimento de um presidente assim? Ainda mais sabendo que ele toma o medicamento, mas faz monitoramento ininterrupto de sua situação cardíaca. Quantos, que ele incentiva a usar a cloroquina, podem fazer esse monitoramento? A sua irresponsabilidade não encontra limites, e espero que ele pague esse preço nas urnas. Por outro lado, não acredito em sua condenação em organismos internacionais e nem que isso seja eleitoralmente relevante.
Cristiano – A péssima condução da crise da pandemia da Covid-19 pelo Bolsonaro é algo inegável e notório, o que certamente contribuiu para o aumento do seu índice de reprovação. E, agora, ele acaba sendo uma vítima da sua própria conduta. O teste positivo do Bolsonaro não pode ser visto como sendo uma surpresa, seja pelo alto poder de contágio do coronavírus, seja também pela enorme exposição e pela falta de práticas preventivas por parte do Presidente da República. Mas isso, por evidente, não nos confere o direito de lhe desejar mal. Em particular, torço para a sua pronta recuperação, assim como desejo a recuperação de todos aqueles que se contaminaram com o coronavírus. Sobre a possibilidade de o Bolsonaro vir a ser processado perante o Tribunal Penal Internacional, ela é bem real. Contudo, penso ser bem pouco provável algum tipo de punição, ainda que concorde que as condutas dele na condução da crise da pandemia sejam absolutamente equivocadas e irresponsáveis.
George – Vou precisar dividir. Primeiramente as mulheres em uma sociedade periférica são as mais penalizadas em um cenário de quarentena. Alijadas do aparato escolar, que lhes permite até mesmo maior disponibilidade para o mercado de trabalho, as mulheres se encontram sobrecarregadas enquanto educadoras de seus filhos e cuidadoras. Também historicamente há a desigualdade, em nossa sociedade, na distribuição das tarefas de reprodução da força de trabalho, a manutenção do ambiente doméstico, preparação de alimentos, etc. Este conjunto de pressões tem boas razões para afetar o humor do eleitorado feminino sem dúvida. Ainda mais a parte do eleitorado que compreendeu que a frouxidão da condução do enfrentamento da pandemia no Brasil está prorrogando o sofrimento cotidiano delas mesmas. Afinal, factualmente os países que conseguiram vencer a pandemia foram os que se fecharam, controlaram e testaram massivamente suas populações. Em termos comparativos não há outro caminho que não perpasse perdas e mortes. E ainda o eleitorado feminino lida com a barbárie do aumento da violência doméstica/conjugal. Sobre o teste para a Covid-19 do presidente até agora vejo três consequências imediatas. E não vou entrar aqui no debate sobre veracidade do resultado ou não. A despeito disso, em termos práticos o presidente pode utilizar a justificativa da doença como tática de contenção de pressão política e midiática sobre si. Pode desmarcar compromissos, ganhar tempo, etc. Pode se tornar um recurso para manobras protelatórias. Igualmente pode usar como fator positivo na busca por recuperação do desgaste de sua imagem diante de parte do eleitorado, direcionar como fator que o humanize e angariar simpatia e empatia. Também há a possibilidade de injetar maior interesse no consumo da cloroquina e da hidroxicloroquina, caminho terapêutico que já defendeu em inúmeras ocasiões. Sobre desejar a morte. Não é ilícito. Não é o mesmo que incitar o assassinato do presidente, isto sim crime. Mas, em minha perspectiva, indica somente a perda de qualidade de nossa opinião pública. Quando na falta de análises e críticas objetivas um agente público, qualquer agente público, apresenta a morte decorrente de uma doença como uma solução para um determinado quadro político conjuntural… acho que temos uma deterioração lamentável da capacidade argumentativa, discursiva. Não obstante ser algo moralmente reprovável. Como disse, não é ilícito. E é parte da cultura política a comemoração da morte ou a celebração de diagnósticos graves quando temos aí alvos da classe política brasileira. Parte de nossa população já se demonstrou capaz até mesmo de celebrar publicamente um diagnóstico de câncer. De forma ou de outra é, em minha perspectiva, algo que apequena quem profere tal desejo e expõe, para dizer o mínimo, certa incapacidade de formulação e embate na arena política dentro das regras do jogo. Me parece a arma do canalha despreparado. Sobre Haia e o uso de tribunais internacionais eu não tenho condições de responder com exatidão neste momento. Contudo me parece que se Bolsonaro é passível de julgamento neste tipo de foro nos cabe perguntar se Donald Trump também o é. As práticas de ambos são muito semelhantes e ambos, ignorando o conhecimento sistemático que temos, a ciência, provocaram perdas de vidas em seus respectivas países que poderiam ter evitado. É importante notar que a Suécia enveredou em caminho similar. Mas, com menos ênfase de uma ignorância orgulhosa de si. O que eu digo é sobre a possibilidade da acusação de genocídio. Pau que dá em Bolsonaro tem que dar em Trump e este debate está só começando. Se estamos falando de um tribunal internacional, Bolsonaro não é caso único no próprio sistema internacional.
Murillo – Acho que o desejo de sua morte não deveria existir. Até entendo estas reações em pessoas que perderam seus familiares e amigos e viram o presidente zombando da Covid-19, sem ser solidário com eles. A postura dele na pandemia é abominável. Parece coisa de um psicopata. Quanto ao Tribunal de Haia, parece demais. Acho que a denúncia não irá prosperar.
Roberto – Há uma contradição fundamental que envolve a “guerra cultural” enquanto traço definidor do bolsonarismo: ela garante a força mobilizadora do bolsonarismo, contribuindo para resolver problemas de apoio social, mas ela também impossibilita que o governo se volte para a entrega de resultados econômicos e sociais. A contradição é que a criação constante de inimigos, característica principal do bolsonarismo, precisou se tornar o modus operandi do próprio governo. Isto fica evidente na pandemia da Covid-19: o governo investe pesadamente na tática de “guerra cultural”, disseminando o negacionismo dos dados objetivos com teorias conspiratórias diversas, que vão desde a suposta “estratégia comunista chinesa” em torno das medidas de isolamento social à ideia absurda de que registros administrativos sobre contaminações, mortes e ocupação de leitos de UTI estão sendo inflados pelos “inimigos”. Mas a “guerra cultural” não é capaz de fazer com que resultados econômicos e sociais desastrosos sejam assimilados como simples “narrativas do inimigo”. Sua grande desvantagem é que ela não permite diferenciar suficientemente a lógica da mobilização política, que garante apoio social, da lógica governamental e administrativa de produzir e entregar resultados. A eclosão da pandemia da Covid-19 acelerou essa contradição entre mobilização constante da base e governo. As mulheres são a maioria entres os que praticam e pensam o cuidado. Bolsonaro sempre teve maior rejeição no eleitorado feminino. Confesso que não fiquei surpreso nem com a contaminação do presidente nem com as manifestações em favor de sua morte. O negacionismo de Bolsonaro é real, e eu achava que ele já havia sido contaminado e curado em sigilo. Também não fiquei surpreso com algumas manifestações desejando sua morte. É lamentável, mas infelizmente virou um círculo vicioso negar a existência do outro como ator legítimo no campo político. O moralismo, quando atinge as proporções que tem hoje, torna essas coisas normalizadas. Se o outro é visto como o mal encarnado, então porque não desejar sua morte? Isso sempre existiu, mas não era o centro da comunicação política. Eu tento me policiar para não aderir a isso. Mas o moralismo político não é um problema moral pessoal, é um problema social e político. Ele se amplifica e vira protagonista em contextos específicos de frustração com a política. A vitória sobre a ameaça autoritária só é possível pelo enfrentamento das suas condições sociais e políticas. Embora eu acho justo e merecido que o presidente seja processado no Tribunal Penal Internacional de Haia, isto não revolve nenhum problema brasileiro.
Na inversão da ordem alfabética, Roberto, Murillo, George, Cristiano, Carlos Alexandre e Arthur (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)
Jornalista Ricardo Capelli
Opiniões – Jornalista e secretário do governo Flávio Dino (PC do B) no Maranhão, Ricardo Capelli denunciou que o lulopetismo cobra da esquerda na oposição o que não fez como governo. Lembrou que o PT escolheu Michel Temer (MDB) duas vezes como vice de Dilma Rousseff, que teve o liberal Joaquim Levy como ministro da Fazenda. E que liberal é Henrique Meirelles (MDB), presidente do Banco Central nos dois governos Lula. Capelli está certo: o PT prefere perder as eleições presidenciais de 2022 a perder a hegemonia da esquerda?
Roberto Dutra – A crítica do Ricardo Capelli é muito importante para entendermos as disputas na esquerda em torno do papel do PT no futuro próximo, em 2022. Ricardo Capelli expressa de certo modo um descontentamento crescente no PCdoB com a postura que vem sendo chamada de “hegemonista” de uma parte do PT que segue mais fanaticamente o Lula. No debate em que Capelli fez suas críticas, o interlocutor era um militante de um portal de “notícias” que expressa a visão de mundo descolada da realidade desta parte fanática e moralista do partido. O interlocutor apregoa que o PT só pode participar de alguma aliança se for o condutor, impondo seu projeto aos parceiros. Isso teria acontecido entre 2002 e 2016: o PT teria construído uma hegemonia em torno de um projeto. O maior partido, o mais organizado e com um projeto para as maiorias, realmente seria o caso de concordar com a pertinência do PT ser hegemônico. Acontece que isto é uma fantasia. O PT nunca teve nem hegemonia nem projeto. O que houve foi uma “hegemonia às avessas”, na bela formulação de Francisco de Oliveira (aqui). O que fez foi humanizar e redistribuir a renda marginal nos marcos do mesmo projeto fracasso que nos empobrece desde a década de 1980. O interlocutor de Capelli articula uma fantasia sobre o passado, um negacionismo político sobre os problemas e responsabilidades do PT. Infelizmente, ele representa parte importante da militância, justamente a mais fanatizada em torno de Lula. E para estes, sim, é melhor perder as eleições presidenciais de 2022 a perder a hegemonia da esquerda. Embora não confessem isso, deixam escapar. Mas isto não representa o PT e nem a militância como um todo. Uma parte importante do partido, a melhor parte em termos de sucesso político, não segue esta linha. Quem segue esta linha é a parte mais medíocre, que depende do Lula para tudo.
Murillo Dieguez – O PT está perdido e irá demorar um tempo para se reencontrar. Hegemonia é tudo que ele não tem hoje.
George Gomes Coutinho – Sem dúvida alguma Capelli está jogando com a concretude do paradoxo governo/não governo. E é um excelente recurso de retórica. O mesmo comportamento, de acusar e cobrar e não praticar quando se está no governo, é um comportamento estrutural e faz parte do jogo de disputa argumentativa em prol da obtenção do poder. Já no governo a necessidade de compor em uma sociedade complexa e heterogênea se impõe. O problema, dada a realidade objetiva que constrange, não é compor. Questionável é propor soluções disruptivas quando se sabe que as mesmas produziriam a ruína de um governo. Aí nem pau e nem pedra. Nem mudanças avançadas e tampouco mudanças graduais. Tão importante quanto chegar ao poder é ali permanecer. Por isso os acordos se colocam como necessidade inelutável… cabe discutirmos as letras pequenas e as entrelinhas destes acordos. Voltando para sua pergunta, eu acho muito arriscado projetar 2022 neste julho de 2020. O grau de complexidade do cenário de quarentena e do pós-quarentena, o conjunto de incertezas de agora e do futuro próximo, não nos permite arriscarmos quais estratégias serão utilizadas. Mas, o Partido dos Trabalhadores segue sendo a maior e mais consolidada legenda do campo de centro-esquerda no país. É um partido dotado de militância orgânica e de massas. Considero pouco razoável que o partido arrisque a perder parte deste capital, que ainda é importante neste 2020, em prol das eleições; um objetivo de menor monta se compararmos com todo o esforço empregado na construção do capital político do partido. Seria se secundarizar enquanto alternativa, seguir a via do PMDB para não sair do poder. Não me parece, por agora, via identificável na história do PT.
Cristiano Miller – Não sei se há essa preferência, mas me parece bem claro que o PT não reconhece os seus erros, do passado e do presente, o que certamente dificulta qualquer avanço no diálogo em prol do país.
Carlos Alexandre de Azevedo Campos – Sem dúvida. Lula já fez isso em 2018, e penso que fará de novo. Neste ponto, falta a ele apreço à democracia, à alternância de poder. É imperioso ao país que Lula deixe os espaços vazios serem ocupados, que a extrema direita encontre um adversário em que as pessoas possam confiar, sem ter que cair na alternativa Bolsonaro ou o PT. Os que desejam a boa mudança precisam ter essa margem de escolha, essa opção. Lula fará muito mais mal do que bem ao nosso processo de renovação política caso mantenha a postura de 2018.
Arthur Soffiati – Até ser preso e por algum tempo depois, Lula motivou fortes mobilizações de apoiadores. Ao sair da cadeia, ele não encontrou seu novo lugar. Lula sempre foi personalista e vaidoso. Fez alianças com todas as tendências políticas. Buscou até mesmo o apoio de Maluf para a eleição de Haddad ao governo de São Paulo. De fato, a esquerda mais consequente tem razão ao entender que Lula, nesse momento, mais atrapalha que ajuda. Há, no PT, integrantes intransigentes que não aceitam alianças nem diante de uma guerra do país. Lula aceita alianças depois de conquistar a presidência. Não antes. Ricardo Capelli está certo.
(Foto: Felipe Beltrame – NurPhoto)
Ciro Gomes
Folha1 – Não integrar a Frente Democrática com os ex-ministros Ciro Gomes (PDT) e Marina Silva (Rede), e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), é reflexo do personalismo do projeto lulopetista? Ciro está certo ao culpar Lula e o PT pela ascensão de Bolsonaro?
Roberto – Não integrar a Frente Democrática faz parte da estratégia de Lula de oferecer uma reaproximação simbólica com ideais vagos associados a um suposto projeto radical de esquerda, que o PT teria relaxado para fazer alianças, mas que deveria ser retomado como solução para a esquerda e o país. De repente o Lula virou antiliberal na economia. Como assim não pode participar da Frente porque tem correntes liberais participando? É a tentativa de vender um “de volta ao PT raiz”, que o interlocutor do Ricardo Capelli nos faz ver de modo tragicômico: não participo porque não aceito rebaixar meu exigente programa de mudança social. Não há programa nenhum! É a velha estratégia de esconder um plano que não possuem. Mas é importante não exagerar e ser justo na crítica ao PT. O que Ciro diz em seu livro é mais correto do que sua polêmica com o lulismo: a ascensão de Bolsonaro é resultado de uma crise em nossa trajetória de desenvolvimento, da qual fez parte todos os atores políticos que comandaram o país desde a redemocratização. O PT tem muita responsabilidade porque foi o que mais gerou esperança. Prometeu mudar o país e não o fez. Não pode culpar os outros pelas frustrações que gerou. Às vezes, esses militantes mais fanáticos agem como os protagonistas de relações abusivas: como se outro não tivesse o direito de se frustrar, dada a crença do protagonista de que oferece realmente o melhor possível. As decisões sobre o processo eleitoral de 2018 são parte da responsabilidade de uma parte do PT. Mas não podemos agora ficar cobrando só PT. E os outros atores? E quem apoiou Bolsonaro? E a grande mídia que fez vista grossa porque apoia a política econômica de Paulo Guedes? Todo mundo tem que fazer autocrítica. Não pode cobrar só do PT. Além disso, em termos de organização política, só Bolsonaro conseguiu concorrer com o PT. Neste aspecto, todo mundo fica a desejar em comparação com o PT, incluindo a centro-direita.
Murillo – Sem dúvidas, é o reflexo do personalismo do partido. Aliás, o PT sempre foi personalista. Vem desde a eleição de Tancredo (Neves, a presidente em 1985, pelo Colégio Eleitoral). Quanto à afirmação de Ciro Gomes, concordo. Afinal, o PT chegou ao poder prometendo não roubar e nem deixar roubar. O personalismo de Lula, não cedendo a vez a Ciro Gomes, mostra o quanto ele é soberbo. Mesmo assim, tenho dúvidas se a esquerda levava a eleição.
George – Me parece mais algo que envolve o capital político adquirido pelo PT em 40 anos, o que o torna ainda o único partido de massas com capilaridade na sociedade do que propriamente uma decisão personalista. Sem a objetividade da magnitude da máquina qualquer vaidade seria risível ou inócua a despeito de quem quer que fosse a liderança, o que inclui Lula. Não é racional, na perspectiva da máquina partidária do tamanho do PT, compor de maneira a se permitir guiar por uma liderança a qual não reconheça legitimidade. Não faz sentido em termos de auto-interesse e das perspectivas de sobrevivência da própria máquina. O PT enquanto coletividade, que obteve importantes resultados no Nordeste brasileiro mesmo nas eleições de 2018, me parece que segue também coerente com a sua compreensão dos fatos do segundo governo Dilma para cá. Isto o torna arredio, para dizer o mínimo, em compor abertamente com lideranças da centro-direita que tanto questionaram os resultados eleitorais de 2014 quanto ajudaram a inviabilizar o segundo governo Dilma, isto a despeito dos equívocos diversos praticados pelo staff de Dilma desde a segunda metade de seu primeiro mandato. Sobre Ciro Gomes, é importante colocar o seu discurso nesta temática como parte das estratégias de disputa pelo eleitorado de centro esquerda e da centro direita. Responsabilizar Lula pela ascensão de Bolsonaro é uma meia verdade. Sem dúvida o conjunto de experiências do PT no poder no século XXI ajuda a explicar sim a formação do capital político que Bolsonaro angariou. Porém me parece carregar demais nas tintas responsabilizar o candidato que estava em primeiro lugar nas pesquisas e foi preso, retirado da disputa, poucos meses antes do pleito, pela vitória de um de seus adversários. A eleição de Bolsonaro é resultado de um conjunto complexo de variáveis. Responsabilizar diretamente Lula por isso não é estabelecer relação causal sustentável. Funciona como recurso de retórica na disputa pela atenção do eleitorado. Mas, é desonesto intelectualmente se visa explicar a ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo.
Cristiano – Nesse ponto, concordo com o Ciro Gomes. O Bolsonaro foi eleito pelo personalismo e pela incompetência do PT.
Carlos Alexandre – Veja: Bolsonaro é o Lula de sinal trocado, e vice-versa. São os representantes no Brasil do personalismo próprio do sistema presidencialista latino-americano. Não inspiram projetos, políticas, mas, acima de tudo, o culto à figura do líder. Não é por outra razão o choque com as instituições democráticas, que penso ser ainda bem pior com Bolsonaro. Ciro está certo em alguma medida. Mas não se pode ignorar a demanda de conservadorismo represada por tantos anos da sociedade brasileira. É aquele lance da identidade. Bolsonaro não se elegeu apenas como antipetista, mas também como o “messias” do conservadorismo defendido pelos “cidadãos de bem”, expressão que camufla todo o sentimento careta e reacionário de boa parte da população brasileira, independentemente de classe social.
Arthur – Já tive oportunidade de expressar minha opinião aqui mesmo na Folha sobre a responsabilidade de Lula e dos radicais do PT, penso em Gleisi Hoffmann e em Lindbergh Faria, na vitória de Bolsonaro em 2018. As alianças e os acordos que Lula fez em seus dois mandatos e que deixou como herança para Dilma Rousseff nos dois seguintes foram os principais alvos de Jair Bolsonaro. Se Lula e Dilma não se corromperam, não há dúvidas que deixaram a corrupção correr com bastante liberdade. Ele fez alianças em baixo e em cima, algo meio parecido com Getúlio Vargas, mas com menos competência. Uma aliança com as forças democráticas para derrotar Bolsonaro é fundamental. Vejo os progressistas não-petistas com discursos renovadores, e fiquei muito bem impressionado com o discurso de Flávio Dino, enquanto vejo Lula desaparecendo. Creio que o tempo dele já passou.
(Foto: Sérgio Lima – Poder 360)
Folha1 – Condenado em 2ª instância em dois processos da Lava Jato e réu em outras cinco ações penais, Lula está livre, mas impedido de concorrer pela Lei da Ficha Limpa que aprovou quando presidente. Ele terá condições legais de um dia voltar a disputar mandato? Saiu da prisão maior ou menor do que entrou? E Moro, seu algoz, do governo Bolsonaro?
Roberto – Não consigo avaliar se ele terá condições legais para disputar mandato. Lula saiu da prisão menor. Perdeu em importância dentro e fora de seu partido. Ele disse que não quer ser candidato em 2022. Muita gente acha que é encenação. Moro também saiu menor. Lula e Bolsonaro têm organização política. Moro não. Ele depende da Lava Jato, que perde poder, e da grande mídia, que também perdeu poder.
Murillo – Quanto a Lula vir a ser candidato, em função das suas condenações na Justiça, é uma incógnita. No Judiciário, vi até “boi voar”. Não tenho dúvidas de que Lula, fora da prisão, virou um anão. A sua figura, como um todo, mostra decadência. Deveria sair de cena, mas o seu ego é incapaz de permitir.
George – Não creio que Lula seja, nesta etapa de sua trajetória política, um candidato viável para a presidência. Certamente poderia ser eleito senador da república. Mas, para presidência… Lula sintetizou ódios, ressentimentos e demais antipatias de amplas parcelas do eleitorado brasileiro. É importante reforçar isso. Para termos uma candidatura viável para um pais com as dimensões do Brasil e com a respectiva heterogeneidade do eleitorado, um candidato precisa ir além de seus apoiadores. Precisa angariar, disputar votos em agrupamentos que transcendem seus eleitores identificados ideologicamente com seus valores e programa. Lula fez isso pacientemente de sua primeira campanha no final dos anos 1980 até o início deste século. Foi um trabalho persistente que, atrelado a fatores conjunturais do término do segundo governo FHC, produziu a primeira vitória na disputa presidencial do Partido dos Trabalhadores. O termo “tempestade perfeita” se aplica aqui. Neste momento, até mesmo por sua idade, não creio na viabilidade de um “projeto Lula” para os anos 2020 a partir das evidências que temos neste momento. Porém, claro, ocorrendo fatos novos de relevância, podem ocorrer mudanças neste diagnóstico. Só não sei se Lula sai propriamente maior ou menor… Ele tem sido tensionado por determinadas declarações impensadas e para além disso, em termos eleitorais, segue inviável… E talvez a questão de sua inocência ou não seja francamente irrelevante para parte do eleitorado que jamais teve apreço por jogar nas regras do jogo. Importava muito mais retirar Lula da disputa de 2018 e isto foi feito. Não cabe superestimarmos os efeitos práticos de uma questão moral no cenário político brasileiro. A moralidade é argumento ad hoc na cultura política. Sobre Moro, é importante olharmos a sua trajetória. Ele representou os anseios, e soube utilizar isso habilmente na mídia, da busca por uma solução para a corrupção dos governos do Partido dos Trabalhadores. E assim atuou. Porém, comparando com Lula, temos algo francamente desproporcional. Sérgio Moro falou a atuou para seus convertidos de sempre, a classe média branca e tradicional, e para seus simpatizantes de ocasião. Intelectualmente foi discutido e desmontado diuturnamente por seus adversários no campo jurídico… Flertou com práticas na margem do Estado do Direito que contavam com a legitimação de aficionados por filmes de gangsteres onde qualquer ação, mesmo que ilegal, valeria por “combater um mal maior”… Portanto, Moro sempre foi visto como ser vil, medíocre e um problema para o estado democrático de direito para parte da população. E segue uma espécie de gigante moral para determinados setores, sendo estes quantitativamente cada vez em menor número. Contudo, nesta conjuntura, poderia ser um candidato bem sucedido ao Senado Federal. Sua carreira política pode prosseguir e ele ainda tem capital político para isso. Porém, ironicamente tal como Lula nesta conjuntura, talvez não tenha capital político para se lançar em voos mais altos.
Cristiano – O Lula, atualmente, está impedido de concorrer em decorrência da Lei da Ficha Limpa. Do ponto de vista jurídico, em algum momento ele vai poder voltar a disputar mandato. Apenas tenho dúvida do ponto de vista prático. Sinceramente, não sei se quando lhe for possível disputar novamente eleições, se ainda haverá condições físicas para tanto. E entendo que, apesar de ainda ter força e importância, ele saiu menor da prisão. Quanto ao Moro, em minha análise o erro dele foi lá atrás, quando aceitou ser ministro do Bolsonaro.
Carlos Alexandre – Sim, Lula pode concorrer após oito anos do cumprimento da pena. Mas espero que não venha mais candidato a nada. Por certo que saiu menor de um modo geral, embora não para o seu eleitorado fiel. Uma “elite intelectual”, especialmente de juristas, ainda mais entre criminalistas, sabe dos desvios de conduta de Moro como juiz da Lava-Jato. Mas penso que isso tem pouco peso eleitoral. Moro saiu do governo fortalecido, é sério candidato à presidência, caso venha a concorrer.
Arthur – Continuando o raciocínio da resposta anterior, sem dúvida Lula sai muito menor do que entrou. Essa deve ser uma lição para todo político. Glórias nunca são eternas nem inesgotáveis. Bolsonaro pode ter esse destino. Como disse, entendo que a era Lula passou melancolicamente. Quanto a Moro, já ouvi alguém dizer que ele é o candidato dos Estados Unidos. Perguntei de qual: dos Republicanos ou dos Democratas? Mas também não creio que ele tenha perfil de político de mandato. Noto que ele procura não sair do noticiário. Mesmo assim, entendo que suas chances são poucas para o cargo de presidente. Depois de deixar o Judiciário coberto de glórias por muitos, creio que ele saiu menor do cargo de juiz, embora tenha saído maior do cargo de ministro. Ele pode pleitear com sucesso um mandato no Congresso, mas não creio que saia bem como candidato à presidência da República.
Joe Biden e Donald Trump (The Wall Street Journal)
Opiniões – Ninguém à direita ou à esquerda, no Brasil ou no mundo que nos acompanha, crê que Bolsonaro se elegesse presidente em 2018, sem que Donald Trump o tivesse feito antes nos EUA, em 2016. Se o moderado Joe Biden vencer as eleições presidenciais de lá, em 3 de novembro, como indicam as pesquisas até aqui, o eixo político do mundo migrará ao centro?
Roberto – Eu até acho que uma vitória de Biden pode enfraquecer Bolsonaro, porque este tem relações de dependência muito forte com a política trumpista. Mas não vejo como algo que possa revigorar o centro político se Biden não enfrentar os dilemas econômicos e sociais que formaram as condições políticas para o protagonismo da extrema-direita não só nos EUA, mas em várias partes do mundo. No processo de adesão ao programa de seus adversários, o Partido Democrata, assim como outros partidos de centro-esquerda no mundo, buscou e ainda busca o centro político como lugar de apagamento e moderação das principais diferenças na esfera da política econômica. O apagamento e a moderação destas diferenças seriam o único caminho para unir os pobres e a classe média em torno de uma agenda comum. Na prática, o que a esquerda tem feito, ao adotar este centrismo rendido, é desconectar a agenda da inclusão social e da redistribuição de renda da agenda da mudança da política econômica, combinando política identitária para minorias, política compensatória de transferência monetária para os pobres e política regulatória de serviços privados de educação e saúde para a classe média, ao preço de executar e ampliar a política rentista das oligarquias financeiras que promovem a oligopolização do controle das finanças, travestindo-se de mercado financeiro. Obama não alterou isso. Reproduziu a rendição. Muitos interlocutores preocupados com o destino da política de esquerda ainda estão presos à ideia de um centro político como lugar de apagamento e moderação das principais diferenças políticas. Acreditam que a moderação programática é o único caminho possível e/ou desejável. Precisam se dar conta que ela é parte do problema. Estão ainda reféns da confusão entre ser radical e ser sectário: partem da premissa de que um programa político radical, ousado, que busque soluções estruturais para problemas estruturais, é sempre sectário, estreito no espectro dos grupos e classes sociais que lhe dão sustentação. Esta confusão pode e deve ser desfeita, pois ser radical na dimensão programática não significa necessariamente sectarismo. É preciso ser radical no programa e amplo nas alianças. Radical no conteúdo e amplo na forma da comunicação política. O centro político perdido era um centro amorfo, marcado pelo rebaixamento de expectativas. O centro precisa ser reconquistado e reconstruído como centro radical. Há um componente real na revolta “antissistema”. E o centro foi identificado com o sistema. Não há como ser moderado no conteúdo das mudanças que precisam ser encaminhadas para evitar a reprodução das condições sociais do autoritarismo de extrema-direita. Biden poder ser moderado na forma e radical no conteúdo. Os EUA precisam de um sucessor do New Deal. Se isto vier, pode ser uma inspiração importante para que o eixo da política se altere em desfavor da extrema-direita. O protagonismo da extrema-direita tem raízes mais complexas que a presença de um “exemplo estimulante” como Trump.
Murillo – Não concordo. Entendo que a eleição de Bolsonaro não se deu por Trump estar no poder. Quanto à possibilidade de vitória de Joe Biden, não necessariamente o mundo mudará para o centro. O mundo estava indo para a direita, quando Obama estava no poder.
George – As eleições norte-americanas, desde o pós-Segunda Guerra, interessam a um público que vai muito além do que seu próprio eleitorado nativo. A vitória de Trump sem dúvida produziu um importante “empoderamento” de projetos extremistas de direita no mundo. Polônia, Hungria, Brasil, Itália… Conferiu energia a partidos de extrema direita também na Grécia, Espanha, França… Não coloco as Filipinas de Duterte aqui pelas especificidades deste governo. Prosseguindo, não por acaso Steve Bannon, ideólogo de extrema direita que teve sim contribuição relevante na eleição de Trump, tentou engendrar uma “Internacional Populista”… E até mesmo fez um uso, pasmem, positivo do termo “populista” ao referir-se ao seu projeto e ao de seus simpatizantes/liderados/seguidores. O que afirmo neste momento é que Trump derrotado interessa simbolicamente sim para grupos da centro direita que “jogam no jogo” da ordem democrática e aos agentes de diferentes matizes do campo progressista. Contudo, não há garantias de um encaminhamento para o centro em todas as realidades nacionais. Por enquanto pode implicar no retraimento da extrema direita e da direita radical, o que já não é pouca coisa. É importante pensarmos nos impactos da pandemia. Economias em frangalhos e a demanda pela volta do Estado enquanto agente talvez produza, na verdade, importantes vitórias para a esquerda social democrata em muitas realidades nacionais. Também pode projetar a centro direita conciliadora em determinadas disputas.
Cristiano – Apesar da importância e da influência dos EUA, esse impacto político mundial é algo absolutamente imprevisível.
Carlos Alexandre – Política é um pêndulo, varia entre extremos, num movimento contínuo, com pousos no centro. A velocidade das mudanças depende dos erros e acertos dos que entram, da postura dos que saem. A política é também cheia de “freios de arrumação”, uns certos, outros que não dão certo. Por óbvio que, em países periféricos como o Brasil, de democracia tardia, o que acontece no mundo e, em especial, em países como os EUA, tem forte influência política e social. A não reeleição de Trump, caso ocorra, vai ter influência no mundo todo, e particularmente no Brasil. E como chegamos a um extremo do pêndulo, acredito sim numa pausa no centro em seu retorno.
Arthur – Não basta eu entender que o melhor caminho para o mundo é a social-democracia e o Estado de bem-estar social. Mais uma vez, precisamos analisar as tendências. Não resta dúvida de que o nacionalismo e as correntes de direita varrem o mundo ocidental no seu núcleo. Algumas experiências da nova direita já foram feitas, como na Itália, na Hungria, nos Estados Unidos e no Brasil. Não coloco entre eles os nomes de Putin e de Erdogan, pois eles representam um autoritarismo antigo. As experiências da nova direita não têm sido bem-sucedidas. Na Áustria e na Grã-Bretanha, os premiers integram a nova direita e estão sendo obrigados a ir para o centro. Creio que a pandemia abre um campo para a centro-esquerda. Se Biden vencer as eleições nos Estados Unidos, aposto no renascimento do centro e centro-esquerda, como na Alemanha, França, Espanha e Portugal. Bolsonaro já manifestou sua preocupação com a vitória de Biden.
Socialista Berbie Sanders chegou a liderar as primárias democratas para candidato a presidente dos EUA (Foto: Mike Blake – Reuters)
Filósofo Vladimir Safatle
Folha 1 – Quando o socialista Bernie Sanders ainda liderava as primárias democratas a presidente dos EUA, o filósofo da USP Vladimir Safatle, que já tinha causado grande impacto com o artigo “Como a esquerda brasileira morreu”, disse em entrevista ao jornalista Mario Sergio Conti identificar elementos “revolucionários” tanto no projeto de governo de Sanders, quanto no governo Bolsonaro. No sentido de que, mesmo em espectros políticos opostos, ambos tentavam romper com o status quo, ao qual o PT aderiu no poder. Como você vê?
Roberto – Eu concordo em parte. Os dois movimentos articulam a legitimidade da revolta “antissistema”. E ela é real, vem de interesses sociais majoritários não atendidos pelo sistema político. Sanders é um exemplo claro disso. Bolsonaro é diferente. Ele articulou a revolta “antissistema”, mas em um sentido puramente destrutivo. Não propõe nada. Em Sanders os elementos revolucionários, no sentido de uma visão de processos de transformação estrutural da sociedade, estão presentes. Em Bolsonaro, ausentes. Os elementos revolucionários são a própria negação do sistema, que, sociologicamente falando, é sempre um elemento interno ao próprio sistema. Mas a transformação estrutural da sociedade não depende somente da negação. Ela depende também da reconstrução institucional. Eu acho que a ideia mais adequada para descrever isso é a de “reformas revolucionárias”: não existe a mudança estrutural revolucionária em si, como a tomada definitiva do poder e a mudança definitiva do sistema. Isto é fantasia intelectual que serve para desconectar a imaginação das grandes mudanças que realmente acontecem. A mudança estrutural só se revela no processo e na evolução social. Existem reformas que podem ter consequências revolucionárias. Eu diria que a imaginação e a formulação programática sobre este tipo de reforma é o mais importante elemento revolucionário de um partido, pois ele é indispensável para oferecer alternativa e orientação as frustrações e revoltas “antissistema”.
Murillo – Concordo com a visão do filósofo Vladimir Safatle. O Bernie Sanders seria uma ruptura. O seu programa de governo, a meu ver, seria socialista demais para os EUA.
George – Creio que voltamos para o início de nossa entrevista. O termo “revolucionário” entre aspas me parece interessante. O termo revolução sem aspas implicaria revolver e romper com estruturas consolidadas que determinam o funcionamento sistêmico de uma dada realidade social. Mas, sim, Sanders seria “revolucionário” ao praticar, ora quem diria, algumas medidas que encontram paralelo com as impetradas pela Europa que derivaram no Welfare State nos chamados “anos de ouro do capitalismo” como diria o historiador Eric Hobsbawm. A questão é que tais medidas são tão dissonantes com os EUA que elegeu décadas atrás Ronald Reagan e seu projeto neoliberal, um país que detém uma perspectiva de atuação em termos previdenciários e de saúde coletiva tão radicalmente individualizados, que Sanders poderia implicar em uma mudança importante e gerar uma sociedade mais inclusiva… Os EUA, dentre os países ricos e industrializados, é o que detém os piores e mais aviltantes índices de desigualdade social. O caso George Floyd é a representação disso que estouo falando. Sanders poderia abalar essa configuração sócio-econômica e demonstrar que os EUA podem ser diferentes. Mas, mesmo assim uma realidade social tão consolidada precisaria de um pacto nacional para ser implementado e sustentado por décadas para então surtir efeito. Nenhuma sociedade complexa tem por solução um mandato presidencial. É preciso construir pactos transgeracionais para termos sustentabilidade para projetos de grande monta. Isto vale para os EUA, Brasil, etc. Bolsonaro também seria “revolucionário”, entre aspas, ao desmontar o espirito da Constituição de 1988: justamente ali tínhamos o esboço de um Estado de Bem-Estar Social juridicamente pavimentado. Uma Constituição socialmente avançada para a nação que é dotada de índices insuportáveis de concentração de renda. Constituição socialmente avançada para uma realidade periférica que detém índices sociais bárbaros. O governo Temer tangenciou com pudores esse processo de desmonte da CF 1988. Porém, por “n” razões, não tinha poder de fogo suficiente para levar a cabo este projeto. Vide o fato da aprovação do chamado “Teto de Gastos”, que se mostra a provável causa de um shutdown no próximo ano, e a derrota da proposta de reforma previdenciária. Bolsonaro, como afirmei na primeira pergunta, é eleito com um projeto de refundação da sociedade brasileira no âmbito dos costumes, algo que só poderia se concretizar faticamente com um regime autoritário que perseguisse todas as formas de viver que fugissem do que se considera idealmente a família tradicional cristã idealizada. Seria uma “revolução” no âmbito de retração dos direitos civis. Mas, também implicaria a dilapidação do Estado que já é proporcionalmente, em termos comparativos internacionais, muito menor do que o senso comum afirma ser. O projeto de Bolsonaro no poder implicaria a radicalização da responsabilização individual dos cidadãos na sociedade brasileira, seja em termos de segurança individual armando a população, o home schooling enquanto solução educacionais, trabalhadores sem qualquer tipo de amparo de legislação social e sendo responsáveis individuais quanto a sua sorte no envelhecimento, etc. Para isto o aspecto “revolucionário” do governo Bolsonaro residiria na destruição sistemática e cotidiana da Constituição de 1988 e seu legado. Algo que conta com apoio direto de parte do empresariado brasileiro e de grupos do setor financeiro que consideram o projeto CF 1988 um óbice.
Cristiano – Sob esse aspecto, concordo. É o que falei anteriormente. Lula e o PT foram os grandes responsáveis pela eleição do Bolsonaro. O cenário era tão perturbador que uma parcela considerável de eleitores preferiu romper com o status quo, sem se preocupar, contudo, com as consequências dessa escolha.
Carlos Alexandre – Em um regime democrático de poderes separados, cheio de veto players e de veto points, nenhum poder faz revolução sozinho. Sozinho, somente à base da força bruta, mas aí deixa de ser um regime democrático de poderes separados, e passa a ser uma autocracia. Bolsonaro pretendeu essa revolução, ainda que não tenha expressado bem qual seria essa. Em todas as suas grandes transformações, pretendeu fazê-las sem diálogo com os outros poderes, com as instituições democráticas, e saiu perdendo, tendo apoio apenas dos “camisas amarelas”. No fim, ou ao menos até aqui, a única mudança que ele apresentou foi “pelo menos tiramos o PT”, mas sem apresentar um modelo novo e bom de política e de transformação social. Como revolucionário, ele está mais para seis por meia dúzia.
Arthur – De fato, ambos representam uma contestação ao status quo de centro-esquerda. Bolsonaro faz esta contestação em nome da direita inculta, como a classificou Delfim Netto, e Sanders em nome de uma esquerda estranha aos Estados Unidos. Com as devidas diferenças, algo como Mussolini e Lênin. Ou bem ou mal, Bolsonaro está enfrentando resistências do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, dos governadores e prefeitos. Sendo voluntarista, ele acreditou poder governar ser resistências. Sanders tem apoio dos jovens, mas quem define os limites é a realidade. Safatle me parece desejar uma esquerda pura, como a de Sanders. Tudo bem. A questão é saber se ele tem condições de se eleger. A propósito, li uma reportagem sobre um documentário a respeito da Libelu, movimento estudantil contra a ditadura de 1964. E fiquei sabendo que Antonio Palocci, Reinaldo Azevedo, Miriam Leitão e Demétrio Magnoli fizeram parte dele. Eu era voluntarista na minha juventude, mas não mudei radicalmente de posição como eles. Essas mudanças profundas me impressionam muito.
(Foto: Fernando Frazão – Agência Brasil)
Folha1 – Como analisa a ameaça a cada dia mais séria de impeachment do governador Wilson Witzel (PSC), ex-juiz federal e fenômeno eleitoral de 2018, na esteira do bolsonarismo? E quais suas perspectivas para as eleições a prefeito de Campos em 15 de novembro?
Roberto – Vejo como muito preocupação a ameaça de impeachment do governador em meio a esta pandemia. Não consigo ver nada de positivo. O cenário eleitoral para Campos ainda está muito indefinido. Definida mesmo parece estar a ampla visão negativa sobre o governo, o que deve impossibilitar a reeleição do prefeito.
Murillo – Quanto ao impeachment de Witzel, vejo como muito provável. E mais: com o seu fiasco, ele joga por terra o conceito do candidato sem passado, do outsider. Vai ficar a impressão de que governo não é empresa e governar não é para amador. Quanto a Campos, ainda não consigo visualizar um cenário. Estamos enfiados em tantos problemas que parece que a eleição não está na porta. Nas conversas que tento manter sobre o assunto, percebo desinteresse e até um certo descaso. Entendo que esta eleição será vital ao nosso futuro. Por isso, muito me preocupa esse desânimo.
George – Mais uma vez precisaremos dividir a resposta. Primeiramente, no caso de Witzel, vemos é o prosseguimento da tragédia político-institucional fluminense. O impeachment, e não entrarei aqui no mérito da questão, é sempre um processo traumático e gera instabilidade inegável agravada por este momento particular, a pandemia, onde os esforços do aparato estatal deveriam se concentrar no enfrentamento da crise sanitária. É importante colocar em relevo o expressivo placar pró-impeachment de Witzel na Alerj: 69 votos favoráveis e uma abstenção. Algo como um mineiratzen político. Até mesmo este placar representativo indica a necessidade de um tipo de esforço de composição com a Alerj que considero inimaginável… Caso ocorra e Witzel seja bem sucedido, a Alerj precisará explicar para a população fluminense as razões para tal reversão. Por enquanto já compreendo que a Alerj já fez sua opção pelo impeachment do governador. O custo de reconsiderar a decisão politicamente pode ser insuportável. Já Campos se mantém com um cenário de disputa eleitoral em nítida movimentação e com as singularidades de um pleito que precisa conviver com importantes restrições de circulação social. Os agentes políticos seguem se apresentando para a disputa no executivo e no legislativo. Porém, dadas as imposições da conjuntura, a disputa ainda não ganhou em temperatura. E, o que é bastante sério, ainda não me parece que derivou em formulação de projetos, propostas para a cidade. Espero que este ponto, o que verdadeiramente importa, seja sanado pelos interessados nas próximas semanas. Campos necessita de algo mais do que improvisos, medidas pontuais, personalismos. Campos precisa de ação sistemática para lidar com as suas demandas.
Cristiano – O processo de impeachment do governador não segue o mesmo trâmite dos processos de impeachment que, lamentavelmente, o Brasil se acostumou a ver com presidentes da República. No caso do governador, em que pese seja um julgamento político num primeiro momento, posteriormente, após o recebimento da denúncia pelos deputados, a análise do caso passa para o Tribunal de Justiça, o que, ao menos em tese, torna o julgamento mais técnico e jurídico. Mas isso não significa necessariamente uma vantagem, ainda mais no caso concreto. Em relação a Campos, penso que a indefinição é absoluta. Enquanto não houver a escolha dos nomes dos candidatos, qualquer manifestação será pura especulação.
Carlos Alexandre – Caso comprovada a participação do governador nos escândalos de corrupção durante a epidemia, espero que sofra o impeachment, além de ser mais um governador preso no Rio de Janeiro. Mas isso depende de como vão andar as investigações e de como vai trabalhar o apoio na Assembleia Legislativa. Quanto às eleições de Campos, acho que as cartas ainda não estão todas na mesa. Os próximos dois meses serão decisivos. Mas sem dúvida, a disputa será muito, mas muito mais acirrada do que foi na eleição anterior. Acho o resultado imprevisível.
Arthur – Witzel surfou na onda dos esquemas de corrupção do casal Garotinho, de Sérgio Cabral e de Pezão. Nunca percebi estofo nele para governar o Estado. Quero mudanças profundas, mas não sou ingênuo a ponto de pensar que elas ocorrem da noite para o dia. Witzel parece um ídolo com pés de barro. Vejamos se ele tem poder de manobra para evitar um processo de impeachment por uma Assembleia formada por raposas velhas. Confesso que a pergunta mais embaraçosa para mim diz respeito ao futuro do município. Não consigo avaliar as possibilidades de tantos candidatos desprovidos de condições para governar. Sei que os discursos são necessários, mas estou cansado deles.
Alfredo Sirkis em visita a Campos, em 23 de setembro de 2010 (Foto: Antonio Cruz – Folha da Manhã)
Alfredo Sirkis, de 69 anos, morreu ontem (10), em acidente automobilístico na Baixada Fluminense. Viajava sozinho em direção à Via Dutra, quando seu carro saiu da pista, bateu em um poste e capotou. Filho único, estava a caminho de um sítio para visitar a mãe de 96 anos, em isolamento social por causa da pandemia da Covid-19. Iria também rever o filho, que concluiu mestrado nos EUA e estava com a avó. Político, ambientalista, urbanista, jornalista, escritor, Sirkis integrou a luta armada contra a última ditadura militar brasileira (1964/1985). E, como seu colega Fernando Gabeira, soube fazer bem a transição do marxismo dos anos 1960, que sonhava com a Revolução Cubana de 1959, para uma esquerda libertária, não sectária e humanista. Que, na compreensão do homem como parte e inquilino da natureza, não seu proprietário por direito divino, ganha cada vez mais poder político na Europa.
Como político, Sirkis foi candidato à presidência da República em 1998, pelo PV, partido do qual foi um dos fundadores em 1986. Foi vereador da cidade do Rio de Janeiro por quatro mandatos e deputado federal. O conheci pessoalmente ao entrevistá-lo (confira aqui) em setembro de 2010, quando ele fazia essa transição do parlamento carioca ao Congresso Nacional e coordenava a campanha de ex-senadora Marina Silva a presidente. Relendo agora aquela matéria, irônico constatar como ele classificava de “atitude facistoide” uma manifestação do PT em São Paulo, então no governo federal já por dois mandatos, contra a grande mídia brasileira. A mesma que agora é alvo diário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus defensores, chamados de “petistas de sinal trocado” pela ex-aliada e deputada estadual paulista Janaína Pachoal (PSL). Como é impressionante ler, 10 anos depois e com os fatos já consumados, que Sirkis alertava sobre o “fantasma do PMDB” semanas antes de Dilma Rousseff ser eleita presidente pela primeira vez, com Michel Temer como vice em sua chapa.
Entre os presidentes ditadores que tomou em armas para derrubar, aos presidentes legitimamente eleitos aos quais se opôs com as armas da democracia, antes de antever a queda de Dilma, Sirkis teve também papel involuntário, mas fundamental no impeachment de outro: Fernando Collor de Mello. Foi com base em seu livro “Os Carbonários” (1980), vencedor do conceituado Prêmio Jabuti de 1981, que a Rede Globo produziu e levou ao ar a minissérie “Anos Rebeldes” em 1992. Seu protagonista, o personagem João Alfredo, interpretado pelo ator Cássio Gabus Mendes em par romântico com Malu Mader, era o próprio Sirkis. No tempo em que a TV concentrava seu atual poder com o que hoje divide com as redes socias, a popularidade da minissérie foi considerada o estopim (confira aqui) para que os jovens “caras-pintadas” saíssem às ruas do Brasil. E derrubassem um populista voluntarioso que buscava unir conservadorismo e moralismo político com liberalismo econômico, eleito presidente para derrotar o fantasma do PT.
Do que pude apreender pessoal e profissionalmente, além de seu leitor, Sirkis era um homem íntegro, inteligente, articulado e profundo conhecedor dos bastidores da política do Brasil. Em que encontraram refúgio seu pais, imigrantes judeus da Polônia, país esmagado entre os totalitarismos de direita e de esquerda durante a II Guerra Mundial (1939/1945). Atualmente, era diretor executivo do Centro Brasil do Clima. Cargo que ocupou após ser exonerado da coordenação executiva do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC) em maio de 2019, pelo presidente Jair Bolsonaro. Por uma vida rica que inspirou tanta gente, sempre em oposição aos dogmas de fé na política, sem medo da autocrítica e da revisão de rumos, Sirkis vai fazer muita falta.
Deputado federal Wladimir Garotinho, juízes Ralph Manhães e Glaucenir Oliveira, e delegado federal Paulo Cassiano (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)
“A Justiça Eleitoral se manifesta nos autos”. Foi como o juiz estadual Ralph Manhães, que vai coordenar a Justiça Eleitoral (confira aqui) nas eleições municipais deste ano, reagiu às declarações do deputado federal Wladimir Garotinho (PSD), dadas no final do programa Folha no Ar, na manhã de hoje (09). Ao vivo na Folha FM 98,3, o pré-candidato a prefeito questionou nominalmente o magistrado. Sem citar o nome, questionou também o delegado da Polícia Federal (PF) Paulo Cassiano, que chefiará as investigações eleitorais em Campos e outros 17 municípios do pleito de novembro. Procurado pela reportagem da Folha, ele preferiu não se pronunciar.
— O delegado de Polícia Federal da eleição passada (Cassiano), que conduziu a operação Chequinho, será o mesmo delegado responsável pela eleição em Campos. O mesmo juiz (Ralph) que participou ativamente da operação Chequinho, vai ser o juiz responsável pela fiscalização da eleição em Campos. Isso me preocupa como pessoa, como pai e como marido (…) Não quero que seja transferida para mim o que houve com a minha família e meu grupo político. Mas eu não estou seguro que isso não vai acontecer. Então, isso também pesa na minha decisão de ser candidato (a prefeito) ou não (…) Tenho essa preocupação: vou disputar uma eleição em que dois atores principais do que ocorreu com a minha família e meu grupo político, estarão mais uma vez à frente da eleição. O que me garante que não vá acontecer nada? (…) Na minha eleição de deputado federal (em 2018), o dr. Ralph Manhães, o juiz, que também vai participar da próxima eleição de prefeito, ele era juiz da propaganda. Ele tentou, de ofício, usurpando da sua competência, abrir um processo criminal de compra de voto e associação ao tráfico de drogas na minha eleição de deputado (…) Eu tive que recorrer ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral), que disse que o dr. Ralph não tinha competência para abrir de ofício aquele inquérito. E curiosamente, misteriosamente, dr. Ralph manda um comunicado ao TRE, narrando fatos, que virou um processo, uma Aije (Ação de Investigação Judicial Eleitoral) que eu e (o deputado estadual) Bruno Dauaire (PSC) estamos respondendo (…) Em Campos existe essa situação que foi criada na eleição passada, do estilo bélico e combativo do meu pai, com setores do Judiciário campista, que eu tenho medo do que, de repente, se possa inventar contra mim — disse Wladimir ao Folha no Ar, cujo espaço foi em seguida franqueado ao vivo ao juiz Ralph Manhães e ao delegado Paulo Cassiano.
Antes de encerrar o programa de hoje, Wladimir também questionou outro magistrado de Campos, Glaucenir Oliveira. Ele foi afastado temporariamente das suas funções por decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 3 de dezembro de 2019, em representação movida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Que, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), decidiu monocraticamente a libertação do ex-governador Anthony Garotinho (sem partido), então preso há 28 dias pela operação Caixa D’Água, em decisão de Glaucenir. Este, em grupo de WhatsApp, questionou a decisão de Gilmar, em áudio que vazou na mídia nacional e gerou a representação do ministro contra o juiz campista no CNJ.
— Teve outro juiz de Campos (Glaucenir) que acabou sendo afastado do seu cargo por dois anos, devido a denúncias que meu pai fez no CNJ. Então, assim, existe uma animosidade do Judiciário contra o meu pai, contra a minha família e contra uma parte do meu grupo político. Que, apesar de eu não ter o estilo bélico que meu pai tem, eu tenho medo como ser humano, como pai, como marido, que isso possa ocorrer. Não estou, em hipótese alguma, dizendo que vá ocorrer. Mas o histórico me leva a ter precaução — disse Wladimir. Lembrado na sequência que o afastamento temporário de Glaucenir se deu por uma representação de Gilmar Mendes ao CNJ, não de Garotinho, o deputado admitiu: “correto”.
Após o Folha no Ar de hoje, Glaucenir também foi procurado para se manifestar sobre sua citação por Wladimir. Após ouvir o áudio deste, o juiz esclareceu:
— Primeiro ponto: todas as minhas decisões foram mantidas no Rio, pelo TRE. Não me preocupo com as mudanças ocorridas em tribunais superiores, que fazem seu trabalho de acordo com o entendimento dos ilustres ministros, cujas decisões devo respeitar. Não tenho nada pessoal contra nenhum dos réus em processos que julgo, e nem poderia. Por isso preservo e muito minha independência e imparcialidade. Mas políticos confundem as estações, o que é evidente: são seus interesses pessoais. Mas, no exercício da função, tomo minhas decisões com rigor nos exatos termos da legislação e de minha consciência jurídica. Friso, não existe nenhuma animosidade minha com ninguém. Seja político, traficante, assaltante. A lei é para todos! Independente de posição social e econômica, e também política. Aplico a lei. Ponto final. Réus que não aceitam ou não concordem com decisões judiciais, podem exercer o direito a recurso e a uso banalizado da ação constitucional de habeas corpus. Não fui afastado das funções, temporariamente e não em definitivo, por denúncias do sr. Garotinho, mas por conta de polêmicas com sua exa. ministro Gilmar Mendes. Todos sabem os motivos. Não deturpem os fatos! E todas as ações e acusações do sr. Garotinho contra mim, em qualquer tribunal, foram julgadas improcedentes, como não poderia deixar de ser. Enfim, trabalho de magistrado é e deve ser respeitado. Só pra ressaltar, minha imparcialidade foi mais uma vez demonstrada quando eu indeferi um novo pedido de prisão do sr. Garotinho, pois não acatei os fundamentos do MP na ocasião. Isso foi amplamente divulgado. Poderia ter feito o contrário. Mas a seriedade da minha judicatura sempre fala mais alto.
A matéria com o resto da entrevista de Wladimir Garotinho ao Folha no Ar da manhã de hoje, junto à que dará o prefeito Rafael Diniz (Cidadania) na manhã desta sexta (09) na Folha FM, será publicada no sábado (11) na edição da Folha da Manhã e no site Folha1.