Por Edinalda Almeida
Março de 2022.
Descubro e entrego-me, neste verão queniano, em estado de intensa celebração sensorial, à leitura dos textos de Aluysio Abreu Barbosa, guardando total fidelidade à etimologia da palavra, nascida do Latim ‘intregare’ que significa restituir.
Lá fora, é veloz a rotação do moinho de acontecimentos que nos revira, da pandemia às crises na saúde, na política, na economia, à russo-ucraniana: ‘um terremoto geopolítico europeu revelador de subalternidades latino-americanas’.
Estou comovida no momento em que começo a escrever esta tão simples apresentação para os primorosos e sofisticados textos desse generoso poeta.
E agradecida. E feliz. E honrada. E… restituída.
Sim, a poesia de Aluysio restituiu minha calma. Leio, releio, navego em ‘fragata no espaço’, saboreio, quase respinga sal, espero a ‘virada do tempo’… Sim, impossível prosseguir nessa via, que, radicalizada, conduziria ao impasse total de um discurso na beira da não linguagem ou do silêncio absoluto.
Seus textos desconstroem, dialeticamente, a desconstrução, pela ‘erosão das construções’, reintegrando o signo à esfera da comunicabilidade. A preferência ostensiva pelo verso e estrofação livres revelam a extrema sensorialização — tátil, visual e olfativa — da realidade; a pulsação lírico-amorosa; e o tempero do humor, às vezes ácido; em outras, pura epifania…
Assim é em ‘barricada em kiev (ou aos especialistas em rússia)’, um tempo de contar, em que proclama a vocação agregadora da palavra poética, convidando a que todos — especialistas e não especialistas — nela se reconheçam. A densa e escura carga de sofrimento — tão Lispector! — encapsulada na barricada de livros, mote do texto, cede espaço à esperança de luz/lua que se reflete no engenhoso desenho oriental do seu ‘haicai do engenheiro’. O banquete é delicadamente servido aos nossos paladares que recusam o cansativo amargo de uma rotina de isolamento, como bichos que não aceitam a extinção. Nossa voluptuosa atmosfera dos trópicos encontra neste belíssimo hai cai a leitura do estio, de certa serena idade madura, cartografada por frestas de encantamento, dessas que anseiam por beber um pouco das paixões que nos consolam, se possível à luz da lua, entre casuarinas. É o poeta que nos oferece tamanhas delicadezas!
O viajante Ulisses Abreu, recolhido em sua pasárgada atafonense entre fragatas, ondas e nuvens, é escritor no conto, na crônica, no ensaio, no memorialismo, nos pedaços insubmissos do poema, fazendo às vezes confluírem no mesmo e esperançado texto a experiência social e a experiência sensual. Tem sabença reconhecida de que ‘carcará traduz matéria de ninho no bico operário’ e maneja com maestria a almajarra, ferramenta capaz da pulsão que move sua preciosa atafona de palavras e versos.
Sua poesia não tem lero lero. Sua ‘liturgia’ de escrever não é uma atividade fashion, um modismo que desfila pelas passarelas do Word. Seu texto não se furta à denúncia! Ao contrário, é o complemento necessário para o homem que vai ‘do batente pro batuque’, em sua altivez teimosa, inscrita num ethos do trabalho, uma ordenação de mundo, pois é nesse sentido que sua poesia revela o subjetivo como arma secreta e insuspeita do homem comum. ‘A gente não quer só comida’. Aluysio inscreve e escreve em seus textos a parede, a pedra, a paz, o pão, algo ao mesmo tempo imanente e transcendente, apto ao uso cotidiano e portador de verdade tão profunda. Sabe que ‘pequenos burgueses do teatro encarnado de gorki/ os especialistas em rússia que não leram dostoiévski/ morrerão sem sabê-la irmã karamasov da ucrânia’. Sabe das asperezas deste tempo de sertões, de astúcias e de tantas travessias e que, como alerta Guimarães Rosa, ‘Deus, mesmo, se vier, que venha armado’.
A clareza de seu texto extrai e expõe o evento diário e sua dimensão trágica, épica, triste. Como um lapidador, com meia dúzia de golpes precisos, confronta o urubu que bate asas para ajustar o resto do ano no ar, vendo de cima o horizonte, com a carniça que espreita, para se lambuzar no piquenique autorizado.
Os mesmos argumentos contra formalismos e avessos a instituições que permitiram a fascinação pelo fascismo no poder têm a capacidade de desmoralizá-lo, ‘agudos e necessários como um estilete pros dentes’. O mesmo ceticismo que recusa a política tende a recusar mitos.
Ah! São muitos Abreus em um só Aluysio!
Há um inquietante mistério em seu ofício, poeta! Arrisco: talvez o de sintetizar em poucos versos não uma engenharia de desdobramentos semióticos ou que tais, mas a vivência específica de algo com tamanha força, referências e consistência que parece se tornar memória pessoal.
É verdade que o que escrevo não importa. Importam os versos de Aluysio Abreu Barbosa. Que os leitores os recebam como uma contribuição vital para dignificação do homem e da palavra, como um corpus único de nossa língua. Que possam, de posse de seus textos, encostar a orelha na terra para escutar o mundo.
Então eu me calo para deixar falar a Poesia de um poeta que consegue dar às palavras tonalidades sem fim. Um poeta de gênio, nas infinitas faces de uma poesia porejante que envolve, cerca, enrosca, desata e arrasta em cada palavra uma espera.
Vai que o tempo vira…
TRÊS POEMAS DE ALUYSIO ABREU BARBOSA:
barricada em kiev
(ou aos especialistas em rússia)
pequenos burgueses do teatro encarnado de gorki
os especialistas em rússia que não leram dostoiévski
morrerão sem sabê-la irmã karamasov da ucrânia
sob as pedras de caim no holodomor e chernobyl
guerra e paz de tolstói para correr com napoleão
tchuikov a sangrar hitler de stalingrado a berlim
nestes tempos de vladimir, não maiakóvski, o putin
a nuvem de calças é a fumaça dos mísseis sobre civis
sem braguilha, cessar-fogo ou corredor humanitário
contra humanidade ursa de quem ignora soljenítsin
resistem atrás de livros os que nos deram lispector
agudos e necessários como um estilete pros dentes
atafona, 06/03/22
***
haicai do engenheiro
lua de asa aberta a um lado
dois morcegos para o outro
depois das três casuarinas
atafona, 10/03/22
***
desconstrução
beija-flor veraneia a manhã no jardim de inverno
ao lado da rede de leitura, sua língua por néctar
carcará traduz matéria de ninho no bico operário
transversal ao regresso do primeiro banho de mar
depois do carnaval, na praia à tarde do domingo
urubu bate asas para ajustar o resto do ano no ar
e ver de cima o horizonte entre lula e bolsonaro
carniça espreita, terceira via, outra copa a neymar
céu azul chega a doer contra o vão branco da porta
mas fragatas surfam no espaço a virada do tempo
são mais íntimas dos pescadores como tesoura
bifurcados seus rabos recortam sudoeste o vento
beija-flor, carcará, urubu e fragatas em pensamento
esquadrilharam em sêmen o ventre de uma mulher
carnadura sem dar poleiro aos estados de espírito
de quando a erosão das construções é quem quer
atafona, 13/03/22