Por Aluysio Abreu Barbosa, Arnaldo Neto, Cláudio Nogueira e Matheus Berriel
“De fato, já não é uma novela, é uma tragédia”. Foi assim que o historiador Marcelo Gantos, professor da Uenf, definiu a situação da Câmara Municipal de Campos, após anulação pela situação da eleição que deu a presidência da Casa à oposição. Que, em represália, passou a esvaziar as sessões legislativas, em atitude agora ameaçada com cassação de mandatos pela atual Mesa Diretora. Foi no programa Folha no Ar da manhã da última quinta (14), na Folha FM 98,3, quando também foram entrevistados os cientistas políticos Hamilton Garcia e Hugo Borsani, outros professores da Uenf, e George Gomes Coutinho, também sociólogo e professor da UFF-Campos. “É uma bomba atômica”, classificou George a ameaça do governo de cassação dos mandatos da oposição. “Está se olhando o umbigo nesse conflito”, advertiu Hugo. “Enquanto alguns legislativos locais (de Rio das Ostras e Macaé) conseguem dar à população mostras de responsabilidade social, de democracia, aqui (em Campos) a gente se perde no labirinto de luta pelo poder da máquina legislativa”, comparou Hamilton.
Os quatro professores também falaram sobre as eleições da Hungria, que manteve o ultradireitista Viktor Orbán como primeiro-ministro, e das eleições do dia 24 a presidente da França, no segundo turno entre o atual, o liberal Emmanuel Macron, e a extrema direta de Marine Le Pen. Os entrevistados começaram analisando a desconfiança sobre a democracia na América Latina. Sobre este tema, George, Hamilton, Hugo e Marcelo promovem o debate “A renovação chilena e os desafios da democracia na América Latina e no Brasil”. Que terá a participação especial também do historiador Alberto Aggio, professor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), especialista em História da América Latina. Será a partir das 9h desta segunda (18), com transmissão ao vivo na Folha FM.
Folha da Manhã – Como analisa o crescimento na desconfiança sobre a democracia na América Latina?
George Gomes Coutinho – Acho que talvez possamos discutir essa questão fazendo um panorama geral e depois regionalizando, ou seja, trazendo para a América Latina. Acho que é mais ou menos consenso, seja no Atlântico Sul ou Norte, que nós temos um problema em torno da legitimidade de alguns princípios e valores da democracia representativa liberal. Acho que a questão pode ser resumida bastante nessa questão: o quanto os estados nacionais são capazes ou não de ofertar bem-estar às suas populações, respostas concretas de bem-estar das populações. Na medida em que há dificuldade de acesso ao mercado formal de trabalho ou um rebaixamento inclusive da massa salarial nesses países, você gera um problema de legitimidade do sistema político vigente. Acho que cabe a gente ficar atento a eventuais tentações autoritárias, sem dúvida alguma. Se você pegar as eleições recentes no Legislativo na Argentina; se você pegar o plebiscito apertado no Uruguai, recentíssimo; se pegar, por exemplo, a efervescência da disputa eleitoral no Brasil; está emergindo essa multiplicidade de interesses. O exemplo chileno é muito alvissareiro. Nós temos aí, talvez, possibilidades.
Hamilton Garcia – Nós não temos uma tradição democrática na América Latina. A modernização política no mundo ocidental deveu-se sobretudo às revoluções burguesas no Velho Continente. Foi um processo ao longo dos séculos, recriando os pactos sociais e políticos que constituíram o Ocidente. Nós somos um Ocidente onde tudo isso aconteceu como um processo de dominação colonial. E isso torna tudo bastante mais difícil. Nos aproxima muito da tradição russa, também forjada no despotismo. O elemento das populações fundidas nesse processo de constituição das nações latino-americanas se deu de maneira subordinada. A democracia na América Latina sempre foi marcada pela ojeriza das classes dominantes às diferenças étnicas na nossa formação econômica social, pelo temor de que esse processo de exploração desaguasse na subversão das relações de poder. A nossa modernização sempre foi marcada pelo medo do povo, pelo medo da participação popular. Nesse apartheid implícito, o nosso processo, dentro do Ocidente, foi periclitante. E é instável neste momento.
Hugo Borsani – Há vários indicadores sobre a democracia, e praticamente todos vão nessa direção da perda de confiança, mais autoritarismo, perda de direitos. Isso é mundial, não só na América Latina. Nos últimos dois anos, somente Uruguai e Chile melhoraram no índice. Na América Latina, todos (os demais) retrocederam. Um dos grandes problemas é a corrupção. E tradicionalmente há a fragmentação política, uma incapacidade de fazer acordos. Junto, se tem uma polarização muito grande, que é também reflexo da sociedade. Existe a questão do populismo, algo tradicional na América Latina, desde a extrema direita à extrema esquerda. Isso está, sem dúvida, afetando muito essa capacidade de resposta do sistema democrático representativo. Hoje em dia, você tem um desafio muito alto pela extrema direita, negando a divisão poderes, querendo fortalecer exclusivamente poderes presidenciais. É um momento de muita tensão, de muito conflito. É um desafio sério e é preciso encarar isso. Porém, eu vejo uma certa resiliência da democracia. Que não sabemos até quando irá se manter.
Marcelo Gantos – Experiências autoritárias muito fortes estão na lembrança e na experiência da população, muito frescas. Então, há um aprendizado democrático ainda em fase preliminar, frágil em termos de institucionalidade. A gente está vivenciando não só no território latino-americano, mas no mundo esse desgaste desse modelo republicano, democrático, que está erodindo até nos Estados Unidos. São fenômenos que não só atingem os países periféricos; são realidades que a gente está vivenciando como um problema que tem que a ver com outra dinâmica do mundo do trabalho, da globalização, do poder financeiro. Quando a gente fala da democracia, também fala de uma possibilidade concreta de participação, de discussão pública de agendas que se ampliaram dentro das nações latino-americanas. O caso da integração indígena na participação política é um ponto muito favorável que a gente hoje pode reconhecer na Bolívia, no Chile, na Argentina. Com todas as consequências negativas, ainda considero que estamos num momento crucial de afirmação democrática.
Folha – Como viu a reeleição no dia 3 do ultradireitista Viktor Orbán, aliado dos Bolsonaro, a primeiro-ministro da Hungria? E projeta o 2º turno do domingo do dia 24 a presidente da França, entre o liberal Emmanuel Macron e a extrema direita de Marine Le Pen?
George – Vou reiterar que a legitimidade do sistema precisa lidar com a entrega de resultados aos eleitores. Quando uma série de medidas não se traduzem em bem-estar, você gera a crise de legitimidade, que é algo, inclusive, cíclico. Você já viu essas crises de legitimidade da democracia no século XX: nos anos 1920 (o fascista Benito Mussolini chegou ao poder na Itália em 1922) e nos anos 1970 (crises do petróleo de 1973 e 1979) também. Nós estamos de novo numa crise de legitimidade, que é nítida nos discursos à esquerda e à direita, de um conjunto de medidas: aquilo que se compreende como um consenso liberal de gerência da sociedade. É algo que está por trás das medidas de austeridade que você vê emanadas de Bruxelas (capital da Bélgica e da União Europeia) para os diferentes estados nacionais, no caso europeu. No caso francês em particular, uma parte da esquerda vota na Le Pen, em protesto ao consenso gerencial que coloca a sociedade de joelhos, com prioridades de austeridade, e não entrega ganhos sociais, num momento de perda de qualidade até mesmo do trabalho formal.
Hamilton – A democracia dependeu da ascensão econômica da Europa. A chamada Pax Americana (Paz Americana, imposta pelos EUA) a partir da 2ª Guerra Mundial (1939/1945), baseado nessa prosperidade e na Guerra Fria (1947/1991), na ameaça soviética e no discurso dos partidos comunistas sobre as massas trabalhadoras na Europa, fizeram com que liberais e socialistas moderados acordassem um pacto de sustentabilidade da democracia. Não só baseada nas regras de mercado, mas também na proteção social. Com Margareth Thatcher (primeira-ministra britânica conservadora entre 1979 e 1990), o chamado neoliberalismo se impõe, com forte impacto social. Com essas massas populares empobrecidas, junta à leva de imigrantes, temos um quadro explosivo da Europa, onde essa direita tem condições de prosperar, diferente do fascismo, propondo a permanência de uma certa normalidade liberal. Eles se dizem iliberais, não antiliberais, inclusive falando em reindustrialização da Europa via protecionismo. Uma pauta antes exclusiva da esquerda agora faz parte da direita radical.
Hugo – A Hungria, para muitos analistas, não é considerada mais um estado democrático, não há uma efetiva separação de poderes. Algumas pesquisas independentes confirmam que na Rússia o Putin tem amplo apoio. Mas os opositores vão para prisão, são envenenados. Isso facilita a manipulação desde o poder para a opinião pública. A situação da França é completamente diferente, mas com risco parecido: a proximidade da Le Pen com Orbán, com dificuldade em condenar a invasão russa na Ucrânia. O que há é uma fragilização da ideia de diálogo, de negociação. Há a ideia de impor, dada a dificuldade dos resultados e da negociação. A democracia nunca foi investimento fácil. O mais fácil é o rolo compressor, resolver as coisas pela imposição. Apesar de os radicais se basearem no conceito de liberdade, eles são iliberais. Chegam no poder e querem barrar a possibilidade de discussão. Eu acho fundamental justamente o que estamos fazendo aqui. Os setores acadêmicos, da mídia, políticos, precisam entrar nesse debate. A questão do discurso é fundamental.
Marcelo – Enfrentamos um cenário singular, pela pandemia e o conflito na Ucrânia. Tenho tido oportunidade de estar com bastante frequência nestes últimos anos na Europa, sobretudo na parte mediterrânea (sul), e há um comprovado aumento da extrema direita. O que é bastante preocupante a essa ideia da Europa, com princípios democráticos que foram constituídos ao longo do tempo a partir da Revolução Francesa (1789) e se constituíram como valores sociais. O caso da França é talvez o mais pragmático. Os medos a partir de situações para nós distantes, como os problemas migratórios, evidenciam também uma desconfiança na ideia de uma Europa integrada. Isso gera um descontentamento que se atribui geralmente às formas de governo. Os ideais democráticos ao longo do século 20 estão em franca decadência. As formas tradicionais de organização de partidos também não representam os interesses, sobretudos dos jovens, que se voltam a propostas internacionalistas, ecológicas, ou decisões muito mais radicais em torno de nacionalismos essencialmente antidemocráticos.
Folha – Como enxerga a crise aberta na Câmara Municipal de Campos, com a ameaça governista de cassação dos parlamentares de oposição que não aceitam a anulação da sua vitória na eleição a presidente da Casa? É mais um confronto Garotinhos x Bacellar?
George – Estamos vendo o embate de elites políticas no nosso Legislativo, que, expressam interesses em um jogo local, mas também regional e estadual, na medida em que o próprio grupo Garotinho volta à cena eleitoral ao Governo do Estado. Há elementos jurídicos e institucionais que oferecem instrumentos para solução dessa crise, à medida em que há um regimento, há uma lei orgânica municipal. Cabe a aplicação dos mesmos. O direito à oposição deve ocorrer dentro desses marcos legais. A oposição, posteriormente, tomou decisões, inclusive de esvaziar a Câmara. Isso depois redundou numa abertura de cassação, que é uma bomba atômica. Você ia caçar uma parte expressiva, quase metade da Câmara de Campos. A própria base se colocou a rever essa decisão, teve consciência das consequências negativas. Agora cabe ao Legislativo local buscar soluções dentro dos marcos legais, que não produzam consequências piores do que as que já estamos vendo. Isso em uma cidade com mais de meio milhão de pessoas, muitas sem saneamento, sem acesso a direitos básicos.
Hamilton – Eleger a Mesa da Diretora da do Legislativo é coisa rotineira em qualquer instituição legislativa. Você não consegue eleger normalmente uma Mesa Diretora? Como assim? É um lugar que, como eles mesmo dizem, é a Casa do Povo. A ausência de regras, o vale-tudo demonstra o afastamento dessa responsabilidade social como Casa do Povo. Isso fica claro quando se fala só em grupos políticos, não em partidos políticos. Em Rio das Ostras, há uma importante ação de restauração ambiental, discutida com a sociedade, com os técnicos, as autoridades na Câmara. Em Macaé, o Legislativo tem observatórios, tem lugares de fala à sociedade civil organizada. Não estou falando de paraíso, lá tem todos os problemas daqui: compra de votos, política acirrada. Enquanto alguns legislativos locais conseguem dar à população mostras de responsabilidade social, de democracia, aqui a gente se perde no labirinto de luta pelo poder da máquina legislativa. Aí é que faz falta a ideia do controle social, para inibir, inclusive, esses ímpetos de privatização do espaço público legislativo.
Hugo – Estava longe de Campos, fui me informando mais recentemente dessa novela. Realmente, é algo difícil de compreender. Os efeitos são absolutamente negativos. Está se olhando o umbigo nesse conflito. O problema é a dificuldade em resolver, o tempo, o desgaste de energia, a paralisia do poder público. É muito problemática a situação em que se originou naquela sessão em que uma eleição foi anulada. Acabam surgindo novas situações de confusão. A aplicação da cassação à totalidade da oposição, através da resolução de três pessoas que estão à frente da (atual) Mesa da Câmara, seria politicamente inviável, geraria mais transtorno. É um problema que mostra a dificuldade da classe política de Campos em chegar a acordos, algo que a gente já falou. E há um distanciamento das preocupações reais. Obviamente, percebo que há rivalidade histórica de famílias que se alastra no tempo. Mas, tem também questão futura, do Governo do Estado, a influência, o apoio. Denota também falta de lideranças experimentadas na negociação política. Realmente, está lamentável.
Marcelo – De fato, já não é uma novela, é uma tragédia. Uma tragédia da democracia assistir a essas disputas anacrônicas. Lembro das análises de Hamilton, quando caracteriza trajetórias históricas da formação da semente política da região e atribui os traços do atraso dessas forças. É muito triste o quão longe essas disputas estão do interesse do cidadão comum. Isso é o mais grave. O que se vê é uma teatralização da política e um conjunto de cidadãos bestializados, que assistem a essa encenação da democracia. Quando nós analisamos a descrença que se instala na população e promove adesões a modelos autoritários, isso passa pelo descrédito dessas lideranças como modelos de vida política. Afeta a legitimidade da democracia levar tudo à esfera legal e jurídica, empobrece a capacidade de participação da cidadania. Estamos perante a um cenário lamentável para a sociedade campista. Mas é uma instância que pode também ser um aviso para que a classe média tome consciência do seu papel na participação ativa, a partir de uma regeneração do modelo democrático.
Na minha opinião são todos eles incompetentes vereador não tem que escolher lados A ou lado B,eles tem sim o dever de fiscalizar o dinheiro público como ele é gasto na saúde na educação e no saneamento do município.