Adriano Moura — “atafona/convivência” no sábado da ACL

 

A nova Revista da Academia Campista de Letras (ACL) foi lançada em 8 de novembro na 11ª Bienal do Livro de Campos. Que traz o poema “atafona/convivência”, escolhido após convite do presidente da ACL, Christiano Freitas, para honrosamente colaborar na publicação. Impossibilitado de estar no lançamento, escrevo para convidar ao seu relançamento, às 17h deste sábado (3), na sede da ACL no Jardim São Benedito.

Como a mesma ACL terá às 19h desta terça (6) a posse do seu novo membro eleito, Adriano Moura, poeta, dramaturgo e professor de Língua Portuguesa e Literatura do IFF. A quem pedi uma análise do poema. Que segue abaixo, entre o testemunho da gênese de “atafona/convivência” e do próprio:

 

Homem e cães na ponto da antiga ilha da Convivência, na foz que sobrou ao rio Paraíba do Sul, em 6 de junho de 2020 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Atafona é a praia da minha primeira infância, nos anos 1970. Essa convivência se espraiaria por adolescência, juventude e idade madura. Nesta última transição, seria seu morador por uma década, entre meados dos anos 1990 e 2000, em tempos ainda pré-Porto do Açu. Aquela mutável faixa de areia entre o Paraíba do Sul e Atlântico, com mar castanho nos meus olhos e muxuangos de olhos azuis, de tempo regido por ventos e marés, foi lar após sair da casa dos pais. E, como esta, a primeira casa de suserania própria ninguém esquece.

Para quem vinha de vida urbana até os 22 anos, Atafona seria também escola empírica. De como o passar do tempo geológico, geralmente lento à brevidade de uma vida humana, pode ser acelerado à percepção do passar de meses. Em cada novo avanço do mar, casa derrubada, memória submersa, com a perda da força do rio e seus tendões cortados pela ação do homem. Transformada em cotidiano, a observação da natureza e seus sinais, para neles antever dias de sol ou chuva, passaria a ser tão acessível quanto o boletim meteorológico do IPhone — antes que este existisse.

Após voltar a morar em Campos, esse cordão umbilical com Atafona não foi cortado. Final de semana sim, final de semana não e às vezes também, o pouso ali permeneceu certo. Como as férias, que passaram a ser tiradas em março, mês ainda de sol forte e praia já estiada de veranistas. Foi assim naquele verão de 2021, quando a boca da barra do Paraíba fechada alongou a caminhada à beira-mar, até a antiga ilha da Convivência. E sua repetição diária, sempre à maré baixa e à companhia de um cão, gerou versos. Feitos para registrar visões e visagens de um cenário cuja metamorfose era a única certeza.

Um ano depois do poema, veio o convite para colaborar como confrade à Revista da ACL, na forma de livro, em comemoração aos 83 anos da instituição. Seu presidente, Christiano Freitas estava animado com a participação também do poeta carioca Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). E considerado grande especialista na obra de João Cabral de Melo Neto, poeta maior de Pernambuco. O que, de certa maneira, determinou a escolha de “atafona/convivência”.

Dois foram os motivos. O primeiro, resumido numa das sentenças mais conhecidas de Tolstói véio de guerra — e paz: “Se queres ser universal, canta a tua aldeia”. O segundo? Por ser todo o poema composto em quadras e linguagem seca, como o rio da aldeia asfixiado com areia na boca, o contexto da assumida influência cabralina seria melhor traduzida em versos posteriores: “capibaribe ao paraíba do sul/ canavial de vidas/ severinas sob céu azul/ dois rios a caminho do mesmo mar”.

Abaixo, antes do poema, sua análise pelo Adriano Moura:

 

Rio Paraíba do Sul, que formou e abastace de água toda a planície goitacá, com sua foz fechada entre o Pontal de Atafona e a antiga ilha da Convivência (Foto: Divulgação)

  

Adriano Moura, poeta, dramaturgo, professor de Literatura do IFF e novo membro da ACL

Nos intertextos da memória em “atafona/convivência” de Aluysio Abreu Barbosa

Por Adriano Moura

 

Segundo a poética clássica, a literatura se dividia em três gêneros: lírico, dramático e épico, todos escritos em versos. O primeiro marcado por uma poesia na qual prevalecia a subjetividade de um eu cujos sentimentos e o mundo a sua volta fundiam-se. O segundo era o texto escrito para a encenação eternizando clássicos como Édipo Rei e Antígona; o terceiro, uma poesia narrativa, em torno da figura de um herói capaz de feitos extraordinários, sendo epopeias como Ilíada e Odisseia as principais representantes do gênero no Ocidente. O romance, no entanto, tirou das epopeias o protagonismo da arte de narrar, tornando-se o recurso principal dos que pretendiam, em prosa, contar histórias em vez de expressar sentimentos e visões pessoais acerca do mundo em versos. O conto, outro texto originário do épico, também se popularizou na propagação de pequenas narrativas. Porém a literatura contemporânea há muito desafia a fronteira dos gêneros e tipologias textuais, hibridizando estilos, formas e linguagens.

“atafona/convivência”, de Aluysio Abreu Barbosa, é um poema narrativo que, embora não se possa chamar de epopeia, assume em versos a arte narrar, levando o leitor a uma viagem entre a praia de Atafona e a ilha da Convivência (em São João da Barra, cidade litorânea do interior do Rio de Janeiro) sob o olhar de um narrador, “escravo da maré vazante”,  poeta que, acompanhado de um cão, fotografa em palavras seu percurso em meio a memórias que emergem das imagens evocadas pelas ruínas de prédios, vítimas do mar, que avança sobre o território que sempre lhe pertencera, mas ocupado pelos seres humanos, desconhecedores da necessidade que a natureza tem de tomar o que é seu.

Leio o poema de Aluysio a partir de suas perspectivas intertextuais e memorialísticas. Alusivo, o texto remete a figuras da literatura, do cinema e de moradores conhecidos do cenário da praia, cujas ruas e construções mais próximas do mar foram reduzidas a ruínas. O poeta constrói sua pequena “epopeia” com uma sucessão de trinta e três quadras independentes entre si, mas integradas à unidade temática conferida pela habilidade do autor em tecer seu painel de imagens no decorrer da viagem:

 

“escravo da maré vazante

saía desta uma hora antes

de atafona à convivência

na areia entre rio e oceano

 

noite ainda quando partiu

negro como o dorso do cão

mar enrubescia a cada onda

sol que paria em contração

 

tijolos redivivos no caminho

não levavam ao mágico de oz

mas às visões hoje submersas

do paraíba caolho de foz”

 

O rio Paraíba do Sul é o poeta caolho, alusão a Luís de Camões, autor de Os lusíadas, epopeia que narra a viagem portuguesa a caminho das Índias liderada por Vasco da Gama. No poema épico, o oceano não assistiu impassível à aventura humana, assim como não o fizeram o rio e o mar na praia sanjoanense.  O efeito madeleine, como se pode definir o elemento catalizador de signos escondidos nos escombros da memória, metáfora eternizada por Marcel Proust no primeiro volume de “Em busca do tempo perdido”, se manifesta no poema pelas carcaças de bichos e concretos que permitem ao narrador poeta pôr em desfile as imagens de uma Atafona cada vez mais sucumbida à memória. “No caminho de Swan”, do clássico francês, evoca-se a memória da infância do narrador, que percebe a inutilidade de recuperação do passado, sendo possível no máximo captá-lo nos vestígios de objetos do presente, como ocorre na estrofe seguinte do poema:

 

“dos fundos do clube demolido

fugiam os carnavais passados

mergulho sem tirar a fantasia

de cara na piscina partida”

 

A memória evoca, portanto, desde o prédio do clube que abrigou bailes de carnaval frequentados por veranistas à figura de Neivaldo, morador e dono de um bar que se situava à beira mar, tragado pelas ondas assim como talvez tenha sido, possivelmente, seu habitante, cujo desaparecimento é ainda um mistério, alçando-o à categoria de lenda contemporânea:

 

“refluxo natural dos destroços

ou entidade tentando contato?

com um pouco de sorte, iemanjá

menos, o lamparão do neivaldo”

 

O narrador poeta assume sua condição de testemunha do passado que vai se deslindando enquanto caminha pelos escombros, “na areia entre rio e oceano” e como ele se presentifica, já que o presente pode ser, às vezes, o futuro de um pretérito. O crítico literário e teórico Márcio Seligman-Silva nos escreve que “a memória é uma arte do presente, mas também a relação entre memória e a catástrofe, entre memória e morte, desabamento”, e que a arte da memória é também uma leitura de cicatrizes. Quase morador de Atafona, pode-se afirmar que Aluysio testemunhou as mudanças sofridas na paisagem natural e humana, desde os tempos em que a praia era referência para o turismo da região até o momento em que suas casas, bares e hotéis começaram a ser tragados pelos olhos de ressaca dessa Capitu oceânica que é o mar:

 

“testemunho dessas histórias

de atafona à convivência

na areia entre rio e oceano

onde homem deságua cão”

 

A natureza se manifesta no poema de forma viva, não moldura para as ações ou sentimentos humanos típicos de uma lírica romântica. O peso da barra fechada que, mesmo “sem ser cristo”, o poeta atravessa em “cruzada a pé”, o conduz ao vislumbre do anum galego que “levou o camaleão pelo gogó/suspenso no ar em rapina”, além de peixes pequenos que “exibiam vida aos passantes”, numa demonstração de como a existência dos seres não humanos pode prosseguir à revelia de suas emoções e pensamentos.

O poema constrói uma geografia e uma antropologia do espaço, que desafiam o leitor desconhecedor dos fenômenos que impactam a região com o avanço do mar sobre o continente e dos personagens que habitaram e habitam o imaginário regional de Campos dos Goytacazes e São João da Barra:

 

“diante da ilha do pessanha

após, o bracutaia em gargaú

o paraíba morria à míngua

para dar de beber no guandu”

 

“Bracutaia” é uma figura lendária de Gargaú, distrito de São Francisco, onde se pode chegar atravessando o rio, em alguns trechos moribundos. Outros nomes próprios permeiam o poema, demandando conhecimento biográfico para que suas significações sejam mais acessíveis, embora a escrita de Aluysio, construída de signos da localidade, se projete pra além das fronteiras do espaço em que se circunscreve. A leitura intertextual e memorialística do poema o enriquece, porém não o limita, permitindo inferências possibilitadas por outras imagens que o poeta cria.

O poema traz algumas marcas da poética do autor, como o uso exclusivo de letras minúsculas, inclusive em nomes próprios, o verso objetivo, seco, com adjetivação somente necessária, quase cabralino, como predomina nos demais poemas de sua autoria. O narrador poeta vive, nessa “pequena epopeia”, uma travessia testemunhada por fauna, flora e ruínas entre Atafona e Convivência, onde o “homem deságua cão”. “atafona/convivência” é, portanto, um condomínio de gentes, bichos, plantas, concretos e histórias editados nessa ilha que é a memória do poeta.

 

 

atafona/convivência

 

escravo da maré vazante

saía desta uma hora antes

de atafona à convivência

na areia entre rio e oceano

 

noite ainda quando partiu

negro como o dorso do cão

mar enrubescia a cada onda

sol que paria em contração

 

tijolos redivivos no caminho

não levavam ao mágico de oz

mas às visões hoje submersas

do paraíba caolho de foz

 

cruzado entre duas cisternas

perto era o primeiro portal

da caixa d’água seca de torre

e vísceras minando do sal

 

dos fundos do clube demolido

fugiam os carnavais passados

mergulho sem tirar a fantasia

de cara na piscina partida

 

o homem notou redemoinhos

que pareciam seguir ele e o cão

na escalada de outras ruínas

açoitadas pela arrebentação

 

refluxo natural dos destroços

ou entidade tentando contato?

com um pouco de sorte, iemanjá

menos, o lamparão do neivaldo

 

adiante era o segundo portal

entre as fundações e os muros

maciços e quebrados ao meio

da casa de ailton damas

 

dali se abria a enseada

até o prédio do julinho

quatro andares desabados

lar de corujas e mariscos

 

damas e julinho eram ilhas

do que restou dos seus planos

no último, o terceiro portal

ao gume de adaga das conchas

 

depois eram vultos inertes

cemitério triste na areia

troncos por corpos e cruzes

do mangue do antigo pontal

 

crianças com fome de praia

fisgava pela entranha o anzol

cação frito, arroz e salada

palafita do bar do espanhol

 

jusante entre vida e morte

urubus em carcaça de bagre

a lágrima pelo rio na barra

caía do olho ruim de camões

 

ilha que não era mais ilha

com atafona, a convivência

aterrou a aventura do nado

aos rastros das patas e pés

 

na busca da boca de cécias

que sopra o vento nordeste

a língua à direita descia

com todo cuspido à canhota

 

foi lá que o homem e o cão

assistiram ao sol nascer

do mar em que pescadores

limpavam do mato as redes

 

três cargueiros do mundo

eram reis magos no horizonte

no oposto o imbé era fundo

aos cataventos sem quixote

 

quina de água doce e salgada

canto da boca do moribundo

são paulo, as gerais e o rio

corriam sob cada traineira

 

diante da ilha do pessanha

após, o bracutaia em gargaú

o paraíba morria à míngua

para dar de beber no guandu

 

beira-mar ao fim do caminho

até a última artéria aberta

mangue ao de osório vizinho

atalho tomado à tornada

 

do alto da árvore, o carcará

observou o homem e o cão

pelos maruins feitos caça

agonia em nuvem, aguilhão

 

corridos do mangue ao rio

e até nele seguidos de perto

a nado deram ambos na praia

mais secreta da convivência

 

com bem-te-vis à vanguarda

galho após galho da restinga

escalaram as dunas de areia

ao tapete da mata nativa

 

chegaram ao casario recente

onde o cão não era temido

por gatos com dorso em arco

eriçados pelos, garras e dentes

 

novos muxuangos de lamego

olhos azuis dos holandeses

náufragos no rio castanho

já não raptavam mulheres

 

sem inseguranças adrianas

paixão por si em verso vão

vanessa caranguejeira fazia

o melhor pastel de camarão

 

após palhoças ribeirinhas

e a curva à esquerda dali

extinta, a foz repetia lagoas

do açu, iquipari, grussaí

 

nos sulcos da sua margem

crosta da terra em maquete

enquanto pequenos peixes

exibiam vida aos passantes

 

cruzada a pé, sem ser cristo

a barra fechada era peso

muito além da areia fofa

ao ruído e milagre das ondas

 

após voltar julinho e damas

cume do píer de raoul thuin

emergia do mar na vazante

ressurreto no plano sem fim

 

perto dele o anum galego

voo de mergulho em ruínas

levou o camaleão pelo gogó

suspenso no ar em rapina

 

de andar e voo desajeitado

a ave venceu o lagarto ágil

que debatia cabeça ao rabo

do quanto virtude era fútil

 

testemunho dessas histórias

de atafona à convivência

na areia entre rio e oceano

onde homem deságua cão

 

campos, 12/03/21

 

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