A nova Revista da Academia Campista de Letras (ACL) foi lançada em 8 de novembro na 11ª Bienal do Livro de Campos. Que traz o poema “atafona/convivência”, escolhido após convite do presidente da ACL, Christiano Freitas, para honrosamente colaborar na publicação. Impossibilitado de estar no lançamento, escrevo para convidar ao seu relançamento, às 17h deste sábado (3), na sede da ACL no Jardim São Benedito.
Como a mesma ACL terá às 19h desta terça (6) a posse do seu novo membro eleito, Adriano Moura, poeta, dramaturgo e professor de Língua Portuguesa e Literatura do IFF. A quem pedi uma análise do poema. Que segue abaixo, entre o testemunho da gênese de “atafona/convivência” e do próprio:
Atafona é a praia da minha primeira infância, nos anos 1970. Essa convivência se espraiaria por adolescência, juventude e idade madura. Nesta última transição, seria seu morador por uma década, entre meados dos anos 1990 e 2000, em tempos ainda pré-Porto do Açu. Aquela mutável faixa de areia entre o Paraíba do Sul e Atlântico, com mar castanho nos meus olhos e muxuangos de olhos azuis, de tempo regido por ventos e marés, foi lar após sair da casa dos pais. E, como esta, a primeira casa de suserania própria ninguém esquece.
Para quem vinha de vida urbana até os 22 anos, Atafona seria também escola empírica. De como o passar do tempo geológico, geralmente lento à brevidade de uma vida humana, pode ser acelerado à percepção do passar de meses. Em cada novo avanço do mar, casa derrubada, memória submersa, com a perda da força do rio e seus tendões cortados pela ação do homem. Transformada em cotidiano, a observação da natureza e seus sinais, para neles antever dias de sol ou chuva, passaria a ser tão acessível quanto o boletim meteorológico do IPhone — antes que este existisse.
Após voltar a morar em Campos, esse cordão umbilical com Atafona não foi cortado. Final de semana sim, final de semana não e às vezes também, o pouso ali permeneceu certo. Como as férias, que passaram a ser tiradas em março, mês ainda de sol forte e praia já estiada de veranistas. Foi assim naquele verão de 2021, quando a boca da barra do Paraíba fechada alongou a caminhada à beira-mar, até a antiga ilha da Convivência. E sua repetição diária, sempre à maré baixa e à companhia de um cão, gerou versos. Feitos para registrar visões e visagens de um cenário cuja metamorfose era a única certeza.
Um ano depois do poema, veio o convite para colaborar como confrade à Revista da ACL, na forma de livro, em comemoração aos 83 anos da instituição. Seu presidente, Christiano Freitas estava animado com a participação também do poeta carioca Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). E considerado grande especialista na obra de João Cabral de Melo Neto, poeta maior de Pernambuco. O que, de certa maneira, determinou a escolha de “atafona/convivência”.
Dois foram os motivos. O primeiro, resumido numa das sentenças mais conhecidas de Tolstói véio de guerra — e paz: “Se queres ser universal, canta a tua aldeia”. O segundo? Por ser todo o poema composto em quadras e linguagem seca, como o rio da aldeia asfixiado com areia na boca, o contexto da assumida influência cabralina seria melhor traduzida em versos posteriores: “capibaribe ao paraíba do sul/ canavial de vidas/ severinas sob céu azul/ dois rios a caminho do mesmo mar”.
Abaixo, antes do poema, sua análise pelo Adriano Moura:
Nos intertextos da memória em “atafona/convivência” de Aluysio Abreu Barbosa
Por Adriano Moura
Segundo a poética clássica, a literatura se dividia em três gêneros: lírico, dramático e épico, todos escritos em versos. O primeiro marcado por uma poesia na qual prevalecia a subjetividade de um eu cujos sentimentos e o mundo a sua volta fundiam-se. O segundo era o texto escrito para a encenação eternizando clássicos como Édipo Rei e Antígona; o terceiro, uma poesia narrativa, em torno da figura de um herói capaz de feitos extraordinários, sendo epopeias como Ilíada e Odisseia as principais representantes do gênero no Ocidente. O romance, no entanto, tirou das epopeias o protagonismo da arte de narrar, tornando-se o recurso principal dos que pretendiam, em prosa, contar histórias em vez de expressar sentimentos e visões pessoais acerca do mundo em versos. O conto, outro texto originário do épico, também se popularizou na propagação de pequenas narrativas. Porém a literatura contemporânea há muito desafia a fronteira dos gêneros e tipologias textuais, hibridizando estilos, formas e linguagens.
“atafona/convivência”, de Aluysio Abreu Barbosa, é um poema narrativo que, embora não se possa chamar de epopeia, assume em versos a arte narrar, levando o leitor a uma viagem entre a praia de Atafona e a ilha da Convivência (em São João da Barra, cidade litorânea do interior do Rio de Janeiro) sob o olhar de um narrador, “escravo da maré vazante”, poeta que, acompanhado de um cão, fotografa em palavras seu percurso em meio a memórias que emergem das imagens evocadas pelas ruínas de prédios, vítimas do mar, que avança sobre o território que sempre lhe pertencera, mas ocupado pelos seres humanos, desconhecedores da necessidade que a natureza tem de tomar o que é seu.
Leio o poema de Aluysio a partir de suas perspectivas intertextuais e memorialísticas. Alusivo, o texto remete a figuras da literatura, do cinema e de moradores conhecidos do cenário da praia, cujas ruas e construções mais próximas do mar foram reduzidas a ruínas. O poeta constrói sua pequena “epopeia” com uma sucessão de trinta e três quadras independentes entre si, mas integradas à unidade temática conferida pela habilidade do autor em tecer seu painel de imagens no decorrer da viagem:
“escravo da maré vazante
saía desta uma hora antes
de atafona à convivência
na areia entre rio e oceano
noite ainda quando partiu
negro como o dorso do cão
mar enrubescia a cada onda
sol que paria em contração
tijolos redivivos no caminho
não levavam ao mágico de oz
mas às visões hoje submersas
do paraíba caolho de foz”
O rio Paraíba do Sul é o poeta caolho, alusão a Luís de Camões, autor de Os lusíadas, epopeia que narra a viagem portuguesa a caminho das Índias liderada por Vasco da Gama. No poema épico, o oceano não assistiu impassível à aventura humana, assim como não o fizeram o rio e o mar na praia sanjoanense. O efeito madeleine, como se pode definir o elemento catalizador de signos escondidos nos escombros da memória, metáfora eternizada por Marcel Proust no primeiro volume de “Em busca do tempo perdido”, se manifesta no poema pelas carcaças de bichos e concretos que permitem ao narrador poeta pôr em desfile as imagens de uma Atafona cada vez mais sucumbida à memória. “No caminho de Swan”, do clássico francês, evoca-se a memória da infância do narrador, que percebe a inutilidade de recuperação do passado, sendo possível no máximo captá-lo nos vestígios de objetos do presente, como ocorre na estrofe seguinte do poema:
“dos fundos do clube demolido
fugiam os carnavais passados
mergulho sem tirar a fantasia
de cara na piscina partida”
A memória evoca, portanto, desde o prédio do clube que abrigou bailes de carnaval frequentados por veranistas à figura de Neivaldo, morador e dono de um bar que se situava à beira mar, tragado pelas ondas assim como talvez tenha sido, possivelmente, seu habitante, cujo desaparecimento é ainda um mistério, alçando-o à categoria de lenda contemporânea:
“refluxo natural dos destroços
ou entidade tentando contato?
com um pouco de sorte, iemanjá
menos, o lamparão do neivaldo”
O narrador poeta assume sua condição de testemunha do passado que vai se deslindando enquanto caminha pelos escombros, “na areia entre rio e oceano” e como ele se presentifica, já que o presente pode ser, às vezes, o futuro de um pretérito. O crítico literário e teórico Márcio Seligman-Silva nos escreve que “a memória é uma arte do presente, mas também a relação entre memória e a catástrofe, entre memória e morte, desabamento”, e que a arte da memória é também uma leitura de cicatrizes. Quase morador de Atafona, pode-se afirmar que Aluysio testemunhou as mudanças sofridas na paisagem natural e humana, desde os tempos em que a praia era referência para o turismo da região até o momento em que suas casas, bares e hotéis começaram a ser tragados pelos olhos de ressaca dessa Capitu oceânica que é o mar:
“testemunho dessas histórias
de atafona à convivência
na areia entre rio e oceano
onde homem deságua cão”
A natureza se manifesta no poema de forma viva, não moldura para as ações ou sentimentos humanos típicos de uma lírica romântica. O peso da barra fechada que, mesmo “sem ser cristo”, o poeta atravessa em “cruzada a pé”, o conduz ao vislumbre do anum galego que “levou o camaleão pelo gogó/suspenso no ar em rapina”, além de peixes pequenos que “exibiam vida aos passantes”, numa demonstração de como a existência dos seres não humanos pode prosseguir à revelia de suas emoções e pensamentos.
O poema constrói uma geografia e uma antropologia do espaço, que desafiam o leitor desconhecedor dos fenômenos que impactam a região com o avanço do mar sobre o continente e dos personagens que habitaram e habitam o imaginário regional de Campos dos Goytacazes e São João da Barra:
“diante da ilha do pessanha
após, o bracutaia em gargaú
o paraíba morria à míngua
para dar de beber no guandu”
“Bracutaia” é uma figura lendária de Gargaú, distrito de São Francisco, onde se pode chegar atravessando o rio, em alguns trechos moribundos. Outros nomes próprios permeiam o poema, demandando conhecimento biográfico para que suas significações sejam mais acessíveis, embora a escrita de Aluysio, construída de signos da localidade, se projete pra além das fronteiras do espaço em que se circunscreve. A leitura intertextual e memorialística do poema o enriquece, porém não o limita, permitindo inferências possibilitadas por outras imagens que o poeta cria.
O poema traz algumas marcas da poética do autor, como o uso exclusivo de letras minúsculas, inclusive em nomes próprios, o verso objetivo, seco, com adjetivação somente necessária, quase cabralino, como predomina nos demais poemas de sua autoria. O narrador poeta vive, nessa “pequena epopeia”, uma travessia testemunhada por fauna, flora e ruínas entre Atafona e Convivência, onde o “homem deságua cão”. “atafona/convivência” é, portanto, um condomínio de gentes, bichos, plantas, concretos e histórias editados nessa ilha que é a memória do poeta.
atafona/convivência
escravo da maré vazante
saía desta uma hora antes
de atafona à convivência
na areia entre rio e oceano
noite ainda quando partiu
negro como o dorso do cão
mar enrubescia a cada onda
sol que paria em contração
tijolos redivivos no caminho
não levavam ao mágico de oz
mas às visões hoje submersas
do paraíba caolho de foz
cruzado entre duas cisternas
perto era o primeiro portal
da caixa d’água seca de torre
e vísceras minando do sal
dos fundos do clube demolido
fugiam os carnavais passados
mergulho sem tirar a fantasia
de cara na piscina partida
o homem notou redemoinhos
que pareciam seguir ele e o cão
na escalada de outras ruínas
açoitadas pela arrebentação
refluxo natural dos destroços
ou entidade tentando contato?
com um pouco de sorte, iemanjá
menos, o lamparão do neivaldo
adiante era o segundo portal
entre as fundações e os muros
maciços e quebrados ao meio
da casa de ailton damas
dali se abria a enseada
até o prédio do julinho
quatro andares desabados
lar de corujas e mariscos
damas e julinho eram ilhas
do que restou dos seus planos
no último, o terceiro portal
ao gume de adaga das conchas
depois eram vultos inertes
cemitério triste na areia
troncos por corpos e cruzes
do mangue do antigo pontal
crianças com fome de praia
fisgava pela entranha o anzol
cação frito, arroz e salada
palafita do bar do espanhol
jusante entre vida e morte
urubus em carcaça de bagre
a lágrima pelo rio na barra
caía do olho ruim de camões
ilha que não era mais ilha
com atafona, a convivência
aterrou a aventura do nado
aos rastros das patas e pés
na busca da boca de cécias
que sopra o vento nordeste
a língua à direita descia
com todo cuspido à canhota
foi lá que o homem e o cão
assistiram ao sol nascer
do mar em que pescadores
limpavam do mato as redes
três cargueiros do mundo
eram reis magos no horizonte
no oposto o imbé era fundo
aos cataventos sem quixote
quina de água doce e salgada
canto da boca do moribundo
são paulo, as gerais e o rio
corriam sob cada traineira
diante da ilha do pessanha
após, o bracutaia em gargaú
o paraíba morria à míngua
para dar de beber no guandu
beira-mar ao fim do caminho
até a última artéria aberta
mangue ao de osório vizinho
atalho tomado à tornada
do alto da árvore, o carcará
observou o homem e o cão
pelos maruins feitos caça
agonia em nuvem, aguilhão
corridos do mangue ao rio
e até nele seguidos de perto
a nado deram ambos na praia
mais secreta da convivência
com bem-te-vis à vanguarda
galho após galho da restinga
escalaram as dunas de areia
ao tapete da mata nativa
chegaram ao casario recente
onde o cão não era temido
por gatos com dorso em arco
eriçados pelos, garras e dentes
novos muxuangos de lamego
olhos azuis dos holandeses
náufragos no rio castanho
já não raptavam mulheres
sem inseguranças adrianas
paixão por si em verso vão
vanessa caranguejeira fazia
o melhor pastel de camarão
após palhoças ribeirinhas
e a curva à esquerda dali
extinta, a foz repetia lagoas
do açu, iquipari, grussaí
nos sulcos da sua margem
crosta da terra em maquete
enquanto pequenos peixes
exibiam vida aos passantes
cruzada a pé, sem ser cristo
a barra fechada era peso
muito além da areia fofa
ao ruído e milagre das ondas
após voltar julinho e damas
cume do píer de raoul thuin
emergia do mar na vazante
ressurreto no plano sem fim
perto dele o anum galego
voo de mergulho em ruínas
levou o camaleão pelo gogó
suspenso no ar em rapina
de andar e voo desajeitado
a ave venceu o lagarto ágil
que debatia cabeça ao rabo
do quanto virtude era fútil
testemunho dessas histórias
de atafona à convivência
na areia entre rio e oceano
onde homem deságua cão
campos, 12/03/21