Longe do Brasil há 25 dias, os últimos 20 no Egito, após os cinco iniciais de viagem na Holanda, chego agora ao hotel no balneário de Sharm el-Sheikh, no sul da Península do Sinai, entre o Deserto homônimo e o Mar Vermelho. No início da tarde daqui, 5 horas de fuso horário à frente do Brasil, venho de uma madrugada em claro em tracking puxado até o cume no Monte Sinai. De onde o profeta Moisés desceu com seus 10 Mandamentos, cerca de 1.250 antes de Cristo. E onde eu e meu filho, Ícaro, subimos hoje para ver sol nascer.
O dia é, portanto, pessoalmente, muito especial. Não só pela capital importância histórica do local às três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Mas pela força ainda viva de Big-Bang que esse poderoso maciço de granito de 2.285 metros ainda irradia do encontro do homem com o Divino, na busca de orientação e luz, no sul do deserto do Sinai. Nome grego que, através da primeira tradução da Bíblia, batiza ainda hoje ao mundo o lugar santo, chamado de Monte Horebe (ou Monte de Deus) pelos judeus e de Jabel Muça (Monte de Moisés) pelos árabes.
Mas esta quarta-feira é especial também pela publicação hoje, na página da Academia Campista de Letras (ACL) na Folha Letras, da análise da poeta e professora de Literatura do IFF e da Uenf pesquisadora e ensaísta, Analice Martins, sobre um meu poema. A data já havia sido agendada pelo presidente da ACL, o advogado, prosador e poeta Christiano Fagundes, desde o final de 2022. Quando fiz o convite à parceria honrosa com a Analice. Como as que igualmente já honraram minha obra poética os literatos Edinalda Almeida, Arlete Parrilha Sendra e Adriano Moura.
Entre alguns poemas enviados, Analice acabou por escolher um de lavra atafonense, de 1º de junho 2015. Após as imagens da noite de dois dias antes, registrados em foto no Bar do Ricardinho, à boca da foz sobrevivente do rio Paraída do Sul, serem autoficionados em versos entre Odisseu e Penélope.
Da religião e da arte, diz-se ser as maneiras que o homem criou para se ligar ao Mistério. De uma à outra, com a distância de um Equador, um Atlântico e um Mediterrâneo unida em tessituras, passemos sem mais delongas à análise de Analice do poema “teia de antes”, de quase oito anos atrás:
NA FOZ DE TODOS OS VERSOS
Por Analice Martins
Em Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, Marc Augé distingue os lugares de trânsito e de passagem dos que estabelecem pertencimentos e identidades. Classifica como “lugares antropológicos” aqueles em relação aos quais nos definimos, nos sentimos abrigados e nos percebemos. Nem todos os lugares de nascimento ou da infância são lugares antropológicos. Podem até ser lugares da memória — guardados ou banidos —, mas não são necessariamente antropológicos.
Atafona, no litoral sanjoanense no estado do Rio de Janeiro, tem uma geografia peculiar: confluência do mar e do rio Paraíba, mangue, maré cheia e vazante. Sofre também, há anos, com um fenômeno de erosão costeira em que o avanço do mar parece tudo engolir. Na poética de Aluysio Abreu Barbosa, Atafona constitui um lugar antropológico e fundacional, de maré cheia, que sempre lhe rendeu belos poemas, irrigando registros, imaginação e memória. Embora não estejam ainda reunidos em livro, esses textos espraiam-se em jornais impressos ou eletrônicos, guardanapos, frequentam festivais de poesia e já desaguaram no espetáculo teatral Pontal, encenado pela primeira vez em 2010, a partir da coletânea não só de poemas seus, como também de Adriana Medeiros, Antônio Roberto Kapi e Artur Gomes.
Em 2004, assisti a uma palestra sobre uma pesquisa de Mestrado intitulada Atafona, patrimônio mar adentro e realizada na Universidade Cândido Mendes (Ucam). O trabalho acadêmico da arquiteta Márcia Viana Hissa Azevedo analisava, inclusive de forma antropológica, o espantoso fenômeno erosivo dessa região. Não era apenas da sobreposição de plantas urbanísticas que a pesquisa tratava, mas de memórias, histórias, ruínas. Fui seduzida pelo título poético e sugestivo. Acredito que, em certo sentido, os versos de Aluysio Abreu Barbosa também façam esse percurso, escavando areia, casuarinas, casas, embarcações. Escavando e cartografando. Por meio da palavra, seus versos fotografam instantes, estilhaçam memórias e restauram ruínas, porque é próprio da palavra literária escavar, guardar e trazer à luz: mar adentro e mar afora. A escrita literária sobre um lugar pode, às vezes, restituir o que foi devastado e erodido, pode preservar casas e tijolos, tanto quanto pode tudo dissipar e reinventar.
Engana-se quem pensa ser a obra do escritor a poética de uma nota só. Há nela lugares distantes, outras praias, outras cidades, outros países, como, por exemplo, Kioni, Ítaca, Edimburgo, York. Lugares distantes e igualmente relacionais. Mas parece ser para Atafona que o poeta sempre retorna, singrando mares, qual Ulisses retorna a sua Ítaca. O poeta é, ao mesmo tempo, Ulisses e Penélope: o que sai, o que parte; e o que fica, fia e tece: “tessitura/de seda espraiada sob a lâmpada do teto”.
Em “teia de antes”, o poeta recolhe parte da geografia física e patrimonial do pontal de Atafona nas ilhas do rio Paraíba do Sul, no cais de Ricardinho, na boca da foz, na igreja de Nossa Senhora da Penha. Recolhe e tece com ela uma outra geografia: a do afeto, daquilo que o afeta.
À primeira vista, “teia de antes” pode não se enquadrar como um poema lírico, de acordo com as definições mais rígidas da teoria da literatura, mas há um eu que, se não se assume na voz lírica diretamente, deixa-se fisgar na forma como captura o mundo à sua volta. Não há distanciamento nem descritivismo pitoresco. Ao contrário, há intensa fusão e contaminação.
No poema “Procura da poesia”, Carlos Drummond de Andrade nos adverte sobre o que não se constitui como poesia por ser, tão-somente, a cidade natal, a merencória infância ou os acontecimentos. Não são esses elementos tão decantados que emprestam aos versos sua poesia. Ou seja, não é com as coisas em si que a poesia se constrói. Para Drummond, “o que se dissipou/ não era poesia”. Portanto, não é com a “memória em dissipação” que se ergue um poema. Para que a memória seja poesia, é preciso presentificar o “antes”, é necessário escrever para não deixar dissipar, escrever para guardar, escrever para colocar de pé o que, no caso da poética de Aluysio de Abreu Barbosa, o tempo, o vento e o mar vão levando.
É com palavras e as suas “mil faces secretas” que se estrutura a poesia e que se fundam as realidades e as memórias. Nessa esteira intertextual, a também mineira Adélia Prado proclamou: “Inauguro linhagens, fundo reinos”. Faço coro com Adélia. A literatura funda reinos, muito mais do que os representa.
Na cena praiana da rotina de trabalho em que mesas de um bar e redes de pesca são recolhidas, há também o entardecer que se contempla: “o branco das garças/ bateu as asas do dia no escuro das águas”. O poema “teia de antes” mistura o corriqueiro e o ordinário das práticas cotidianas à flora e à fauna típicas da região. É, entretanto, na tessitura da seda da aranha, que se entrevê o ofício do poeta, entretido, entre(tecido), cabralinamente, na “teia tênue” de um “antes”. João Cabral de Melo Neto “tece a manhã”; Aluysio “tece o antes” na seda do dia que se vai, na memória que não quer se dissipar.
O gigante (qual o poeta), guardião dos mares, retorna a casa ao fim do dia, deixando “a si malhado na teia”, no texto-tecido de suas palavras. Assim como, no pontal de Atafona, Eros e Thanatos (vida e morte) se digladiam, na poética de Aluysio de Abreu Barbosa, há uma cartografia de pulsões em luta constante. Cada poema é uma geografia acidentada à espera de um leitor que se deixe emaranhar em sua teia.
POEMA DE ALUYSIO ABREU BARBOSA(*):
teia de antes
a noite quedou sobre o cais do ricardinho
com a rede no fundo da canoa ancorada
nas ilhas do rio, até o branco das garças
bateu as asas do dia no escuro das águas
funcionários recolhiam as mesas do bar
e a aranha, as vítimas da sua tessitura
de seda espraiada sob a lâmpada do teto
à marcha de oito patas amarelas e negras
com a benção da penha, na boca da foz
afluíram ao outro a aranha e seu gigante
que só percebeu quando voltava à casa
ter deixado a si malhado na teia de antes
atafona, 01/06/15
(*) Poeta, jornalista e membro da ACL