Campos espelha os 100 primeiros dias do Lula 3

 

Cem dias são pouco para se avaliar qualquer governo. Mas o período se tornou emblemático após o “Governo dos 100 dias” de Napoleão Bonaparte em 1815, do retorno do exílio na ilha de Elba para retomar o poder na França, até ser derrotado na batalha de Waterloo. Com governos anteriores para comparar, como tinha o Napoleão 2, Lula 3 completou os 100 primeiros dias da atual gestão no último domingo (10). Na terça (12), pesquisa Ipec (antigo Ibope) registrou que sua aprovação popular oscilou negativamente em relação a março. Na quarta (13), chegou à China, onde fez declarações polêmicas sobre o dólar dos EUA como moeda comercial internacional. Na quinta (14), saiu na capa da revista Time, dos EUA, como uma das personalidades no ano. Mas como analisar seus 100 dias de governo no Brasil?

Para buscar respostas em áreas variadas, a Folha ouviu, em ordem alfabética, o empresário e arquiteto Edvar Júnior, presidente da CDL-Campos; o advogado Filipe Estefan, presidente da OAB-Campos; o cientista político Hamilton Garcia, professor da Uenf; e o economista Roberto Rosendo, professor da UFF-Campos. Falando de uma Campos que se mostrou amplamente bolsonarista no segundo turno presidencial de 2022, essa condição aparece refletida em respostas eufemísticas sobre a fuga de Bolsonaro para os EUA, para não dar posse ao adversário eleito e tentar não ser ligado à tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro. Como, no contraponto, surge também na defesa de alguns pontos mais polêmicos do Lula 3. Mas é neste contraste político revelado nas análises que se tira a média de um Brasil ainda dividido. Do qual Campos, como na frase atribuída ao ex-presidente Getúlio Vargas, ainda é espelho.

 

Empresário Edvar Júnior, advogado Filipe Estefan, cientista político Hamilton Garcia e economista Roberto Rosendo (montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

 

Folha da Manhã – É atribuída a Getúlio Vargas a frase: “Campos é o espelho do Brasil”. No segundo turno da eleição presidencial de 2022, a cidade deu a Jair Bolsonaro (PL) 63,14% dos seus votos válidos, contra 36,86% de Lula. Que se elegeu novamente presidente com 50,9% da soma nacional, contra 49,1% do hoje ex-presidente. O espelho rachou?

Edvar Júnior – O espelho reflete a realidade de um país dividido. Campos deveria se espelhar nesta célebre frase de Getúlio Vargas, dita quando éramos protagonistas na economia com a produção de açúcar. Como gosto de contar histórias: o nome do Pão de Açúcar, foi dado por causa do formato de pão da montanha e do açúcar de Campos. Mas voltando ao caráter político da pergunta, o espelho reflete sim um país dividido. E Campos votou como a maior parte da região Sudeste.

Filipe Estefan – O ex-presidente Bolsonaro teve ampla vantagem de votos no Sul e Sudeste. Obviamente, Campos não seria diferente. Somos a mais populosa cidade do interior do estado e também o município com a maior extensão territorial. Somos um dos principais centros políticos do estado do Rio de Janeiro e desfrutamos de reconhecimento político em âmbito nacional. Geramos oportunidade de negócios, emprego e renda para toda a região. Não creio que essa eleição seja parâmetro para rachar o espelho. O momento político é atípico.

Hamilton Garcia – Passados mais de 50 anos, é de se esperar que tudo tenha mudado, inclusive, o espelho. Mas a frase ainda pode guardar alguma pertinência, pois a política despartidarizada, praticada por grupos políticos hospedeiros de partidos, que se realiza por estas bandas, se nacionalizou e se instalou no seio do Congresso Nacional, mais especificamente em sua Câmara baixa. A chamada “pequena política”, outrora regional, englobou a “grande política”, com as consequências hoje sabidas.

Roberto Rosendo –  A frase atribuída a Vargas remete à primeira metade do século 20, onde o Rio de Janeiro exercia grande influência no cenário nacional e espelhava o Brasil. Simbolizando a importância de Campos à época, o campista Nilo Peçanha assumiu a presidência entre 1909 e 1910. Como cidade do interior, Campos mantém certo conservadorismo político. O PT nunca teve a hegemonia política no estado ou no Norte Fluminense. Bolsonaro se identifica como carioca, o que contribuiu para a sua expressiva votação em Campos.  O espelho não rachou!

 

Folha – Estrategista do ex-presidente dos EUA Bill Clinton, James Carville cunhou a frase que virou lugar comum para definir o sucesso ou fracasso de qualquer governo: “é a economia, estúpido”. Como viu o projeto do novo arcabouço fiscal do ministro da Fazenda Fernando Haddad? Como elevar arrecadação e gastos, sem aumentar impostos? E a reforma tributária?

Edvar – Esse arcabouço fiscal proposto pelo ministro da Fazenda foi visto com bons olhos neste primeiro momento, no que se refere ao fato do governo se comprometer a aumentar a arrecadação sem aumentar ou criar novos impostos ou taxas. O contribuinte, pessoa física ou jurídica, não suporta mais essa mão pesada do Estado. A reforma tributária é necessária, mas não para penalizar o empresariado. O ministro da Fazenda fala em cobrar impostos de atividades econômicas que não pagam. Agora é aguardar para ver se essa conta fecha.

Filipe – A Lei de Responsabilidade Fiscal, na gestão Fernando Henrique, e o teto de gastos, na gestão Temer, de certa forma, trouxeram estabilidade financeira e crescimento econômico, ao impor deveres e obrigações com os gastos e com a arrecadação. O ministro afirma que a intenção da “regra é compatibilizar o que era bom da Lei de Responsabilidade Fiscal com o que é bom de uma regra de gastos”. Sou contra o aumento de impostos, e vejo como imprescindível a diminuição dos gastos públicos. A reforma tributária é necessária e urgente.

Hamilton – A política fiscal do novo governo está umbilicalmente ligada à reforma tributária que tramita no Congresso: sem esta, aquela é natimorta. O país precisa investir em infraestrutura, trabalho e educação, se quiser fugir da armadilha da renda média na qual se encontra faz mais de quatro décadas. E isso implica em investir com responsabilidade fiscal. É em desafio para um Estado de tradição neopatrimonial, onde o bem comum é um valor dependente da contrapartida ao bem privado de quem tem poder político e financeiro.

Roberto – Para o economista John Maynard Keynes, o grande problema das economias modernas é o desemprego, que leva à degradação da sociedade. O arcabouço fiscal do ministro Haddad vai ao encontro da visão keynesiana, sem perder de vista a importância do controle da inflação e dos gastos públicos. E se contrapõe à visão ortodoxa-monetarista dominante, que defende a estabilidade monetária “acima de tudo”. Só há uma maneira de aumentar a arrecadação sem aumentar impostos: a economia precisa crescer. Quanto à reforma tributária, pratica-se hoje no Brasil um imposto regressivo, isto é: quem ganha mais paga menos e vice-versa. A reforma deve priorizar a progressividade do imposto.

 

Folha – Há o receio de que Lula 3 vá estar economicamente mais próximo de um “Dilma 3”, que fabricou a maior recessão da história do Brasil no Dilma 1 e Dilma 2, do que da prosperidade com responsabilidade fiscal do Lula 1 e Lula 2. Por outro lado, a postura política de Haddad em busca de freio fiscal aos gastos, tem sido elogiada. Qual a sua análise?

Edvar – No primeiro governo Lula, ele pegou um ambiente de negócios favorável e todo o mundo cresceu, não apenas o Brasil. No segundo governo, enfrentou a crise do mercado imobiliário dos EUA (em 2008), que teve reflexos aqui, mas o governo brasileiro tinha acumulado reservas em dólar. A questão está no ambiente adverso deste terceiro governo Lula, com as sequelas da pandemia e uma guerra em curso, ambos os eventos causando reflexos em toda economia mundial. Mantenho um olho no otimismo e outro na realidade.

Filipe – A imposição do aumento de gastos públicos no início da gestão foi, a meu ver, um erro crasso do governo Lula. A falta de responsabilidade com o teto de gastos assustou os mais renomados economistas, inclusive alguns que endossaram apoio a ele na campanha, como foi o caso de Armínio Fraga. O freio fiscal nos gastos públicos defendido pelo ministro Haddad é essencial ao equilíbrio das contas públicas. No momento em que a economia sai de controle, aumenta-se a incerteza e propicia-se o risco de recessão.

Hamilton – É um risco efetivo em função do negacionismo político do lulopetismo em relação a várias coisas, inclusive ao desastre da “nova matriz econômica” de Mantega. Embora pareça que Haddad e equipe tenham a dimensão desse desastre, Gleisi e Mercadante aparentam não tê-lo.  Sendo assim, Lula se equilibra nas duas posições buscando unificar o PT e deixar uma porta aberta para uma saída eleitoral de emergência ao modo de Dilma, que admitiu “fazer o diabo” para se reeleger, e Bolsonaro. Tudo isso mantém a incerteza em alta.

Roberto – Certamente houve erros na condução econômica, especialmente no Dilma 2. Mas o problema que levou o Brasil a ter dois anos de crescimento negativo pela primeira vez em sua História, -3,5% em 2015 e -3,3% em 2016, foi a crise política que resultou no impeachment da presidente Dilma. Lula 1 e 2 tiveram responsabilidade fiscal com crescimento do PIB, em torno de 3,7% entre 2003 a 2009, contra 1,8% entre 1990 a 2000, com Collor, Itamar e FHC. Ou seja, é possível compatibilizar crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade fiscal.

 

Folha – As críticas de Lula ao presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, não tiveram sucesso em baixar a alta taxa de juros. Pode ser a tentativa de fabricar bodes expiatórios no caso de fracasso econômico: Bolsonaro, cujo “liberalismo” deixou R$ 300 bilhões de estouro de teto, e o presidente do BC indicado por ele? Como você vê?

Edvar – Juros desta ordem param a economia e o governo tem que fazer a sua parte para reduzir, não interferir. O que interessa é a redução de juros, mas não de forma artificial. Se houver alguma pedalada fiscal, o governo perde o equilíbrio e a bicicleta da economia tomba. Para não dizer que não fiz comentários sobre os dois governos Dilma, digo que ela não concluiu o seu segundo mandato exatamente por artificializar os índices da economia, como quem usa um cheque especial. Artificializar a queda dos juros, é colocar juros sobre juros.

Filipe – O momento exige que o presidente seja gestor. Os ataques ao presidente do Banco Central são um equívoco. O presidente está no início do governo, se souber implantar as reformas necessárias ao desenvolvimento econômico, à promoção do empreendedorismo de pequenas, médias e grandes empresas, a geração de empregabilidade e renda, combate à corrupção, diminuição dos gastos públicos, reforma tributária, dentre outras, não vai precisar de bode expiatório.

Hamilton – O BC autônomo tem por obrigação legal olhar para inflação sem perder de vista a atividade econômica e o emprego. O que, no mundo inteiro, moderou a política de juros para o controle inflacionário. Este parece ser o destino do BC brasileiro também, pois o endividamento público, ferramenta poderosa quando manejado para o bem comum, se tornou inviável com as taxas de juros escorchantes praticadas no país, sobretudo no crédito privado. Neste particular, o país terá muito a ganhar se o BC assumir suas responsabilidades.

Roberto – As críticas do Lula à atual política de juros do Banco Central não são apenas do Lula, mas de economistas renomados, inclusive considerados neoliberais, como é o caso de André Lara Resende, um dos país do Plano Real.  A taxa básica de juros do Banco Central hoje é de 13,75% ao ano. Ganhador no Nobel de economia, Joseph Stiglitz afirmou recentemente que a taxa de juros no Brasil é “chocante e mataria qualquer economia”. Esses juros inviabilizam o crédito para investimento e consumo, ao mesmo tempo em que favorecem o rentismo.

 

Folha – Condenado após ter sido criado no governo Bolsonaro na tarefa exitosa de se blindar a pedidos de impeachment na Câmara de Deputados, o orçamento secreto foi chamado de “safadeza” pelo candidato Lula, mas mantido pelo presidente Lula. É a única maneira de conseguir sobreviver diante do Congresso conservador eleito em outubro?

Edvar – Infelizmente esse cenário político sempre existiu. Antes da Dilma, Fernando Collor teve seu impedimento aprovado pela Câmara e Senado. Existiam todas aquelas provas do esquema do PC e Collor não tinha o Parlamento na mão. O mesmo se repetiu com Dilma. Bolsonaro evitou essa queda de braço compondo com o Congresso do qual Lula hoje também hoje é refém. Para mim tão importante quanto à reforma tributária seria a reforma política, mas essa nunca entra na pauta. Esse assunto está mais para as observações da ciência política.

Filipe – Pois é, seria cômico se não fosse trágico. Ainda mais quando se trata de orçamento público, onde, via de regra, não pode ser secreto. Um dos princípios que regem a administração pública é a publicidade e transparência, como consta no Art. 37 da CRFB/88. Outrossim, o plenário do Supremo Tribunal Federal, em dezembro de 2022, julgou inconstitucional o chamado orçamento secreto. Considerando as questões legais descritas, esse assunto pode custar caro ao presidente no futuro.

Hamilton – Sim, porque o sistema eleitoral-partidário, junto com a cultura popular, incentiva o político a usar o poder apenas para se reeleger. Para acabar com esta chantagem institucionalizada, precisamos reformar o sistema de modo a despersonalizá-lo com o voto em lista e controlá-lo, com o voto majoritário. Precisamos responsabilizar os partidos pelo mau uso do poder por seus delegados, com perda de fundo partidário, tempo de propaganda gratuita, etc.  O eleitor precisa de instrumentos para aplicar freio às oligarquias partidária.

Roberto – As emendas de relator, batizadas de “orçamento secreto”, tendem a favorecer a um limitado grupo de deputados e senadores, em detrimento dos demais parlamentares. Nos EUA, o lobby é regulamentado e, portanto, legal. Dada a cultura do Congresso brasileiro, cabe ao mesmo regulamentar tais emendas de relator, a fim de que esses recursos do orçamento sejam democratizados, com critérios em que todos os parlamentares possam ter acesso aos mesmos, com transparência e controle da sociedade, dentro da legalidade.

 

Página 2 da edição de hoje da Folha da Manhã

 

Folha – Tudo leva a crer que Lula vai indicar seu advogado pessoal na Lava Jato, Cristiano Zanin, na vaga de Ricardo Lewandowski no Supremo Tribunal Federal (STF). O que, na substituição de um homem branco alinhado politicamente por outro, vai contra a cobrança identitária por diversidade usada na campanha vitoriosa a presidente. Há contradição?

Edvar – Esse é outro assunto da esfera política. O Zanin como todos sabemos foi o advogado de defesa do presidente Lula nos processos da Lava Jato que o levaram à prisão. Essa indicação de bastidores já tem sido muito criticada. Bom lembrar que existe um rito, e que passa pela sabatina do Senado. Criticaram muito quando o Bolsonaro que nomeou Sergio Moro como ministro da Justiça. Agora certamente Lula vai sofrer críticas se fizer o seu advogado de defesa ministro da Suprema Corte.

Filipe – Em tese, sim. Podemos perceber algumas contradições entre o candidato e o gestor. Mas não podemos esquecer que o Cristiano Zanin preenche os requisitos necessários à assunção ao cargo. Particularmente, gosto da postura sóbria, corajosa, elegante e educada do Zanin. Foi um advogado à altura do cargo no processo da Lava Jato. Tem meu respeito e admiração.

Hamilton – Sim e mostra que o identitarismo é mais um instrumento de mobilização eleitoral do que uma política pública para a mudança social. Por isso foi radicalizado até provocar a emergência do bolsonarismo. Quando os interesses fundamentais das elites estão em jogo, exigindo a blindagem jurídica e o controle da Procuradoria e da Polícia, tudo o mais é descartável. Neste ponto, petistas e bolsonaristas, via Aras, confraternizam nas cocheiras das prerrogativas, onde os interesses privados se travestem de públicos na narrativa do lawfare.

Roberto – Havendo competência técnica comprovada, é prerrogativa legal do presidente da República indicar o ministro do STF. Trata-se de uma indicação para um cargo que envolve confiança, indicação esta, vale ressaltar, que precisa ser aprovada pelo Senado Federal. Que é quem decide na prática. Portanto, não vejo contradição na eventual indicação do Presidente Lula de seu advogado Zanin. Faz parte de um processo que é legal, mas também político.

 

Folha – Lula declarou em 2 de março, sobre a indicação do novo Procurador-Geral da República (PGR): “não penso mais na lista tríplice”. Foi o que Bolsonaro fez com Augusto Aras, que blindou o ex-presidente como um Advogado Geral da República. Lula 1 e Lula 2 respeitaram a lista tríplice do Ministério Público na PGR. O capitão ensinou o caminho das pedras ao petista?

Edvar – A lista tríplice é uma convenção muito bem recebida por todos os atores do jogo democrático. Bolsonaro não a utilizou e foi bastante criticado. Só que Bolsonaro indicou que não iria respeitar essa convenção. Pelo histórico do presidente Lula, ele deveria respeitar. Se pegou mal para Bolsonaro não respeitar a lista tríplice, para Lula o efeito negativo será triplo.

Filipe – Desde 2001, 11 listas foram votadas pelos procuradores da República, com exceção da primeira, apresentada ao presidente Fernando Henrique Cardoso, e das duas últimas, em 2019 e 2021 (com Bolsonaro), as demais nomeações respeitaram a lista tríplice. Há uma mudança de comportamento, sim. Contudo, por mais deselegante que seja, não podemos perder de vista que a nomeação do PGR é uma prerrogativa do chefe do executivo, após aprovação do nome pelo Senado, Art. 128, §1º da CRFB/88.

Hamilton – Lição aprendida sobre as consequências de uma Justiça, Procuradoria e Polícia autônomas. A solução desse “problema”, por Mendes, Toffoli e Lewandowski, em acordo com Bolsonaro para salvar sua família, ou com os neopatrimonialistas para “estancar a sangria”. Foi o grande legado do capitão à frente do Executivo e uma das razões para ele ter terminado o mandato, não obstante o descalabro. A “pax gilmariana” tem tudo para tornar as instituições da Nova República muito parecidas com as da República Velha, aguçando contradições sociais.

Roberto – Há de se destacar que a lista tríplice é uma tradição democrática, mas que, legalmente, é prerrogativa do presidente da República fazer a indicação para o cargo de procurador-geral. Do ponto de vista da democracia brasileira, seria muito importante manter a tradição da lista tríplice. Mas muitas instituições públicas sofreram intervenções do governo passado. Caberá ao atual presidente da República avaliar a conjuntura política e tomar a melhor decisão à luz de seu programa de governo, da estabilidade jurídica e política da nação.

 

Folha – A fuga do Brasil aos EUA, a tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro e as joias sauditas desgastaram Bolsonaro. A se confirmar sua inelegibilidade pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), quem será o herdeiro do bolsonarismo? Lula acerta ou erra ao espelhar o antecessor, como fez na segunda (10), no pronunciamento dos seus 100 dias de governo?

Edvar – Bolsonaro se ausentou do país e não fugiu, no meu entender. Errou ao não transmitir o cargo, mas não foi o primeiro a fazer isso. A tentativa de golpe foi repudiada por todos os segmentos da sociedade em defesa da democracia. Essa questão das joias está em fase de investigação. Tudo isso desgasta e não podemos avaliar as consequências legais. Mas como disse no começo o país está dividido, e existem lideranças bolsonaristas de alta expressão, como o atual governador de São Paulo, o ex-ministro Tarcísio Freitas (Rep).

Filipe – Considerando que todos são inocentes até que haja uma sentença penal condenatória transitada em julgada, acho prematuro falar de herdeiros políticos do Bolsonaro, que ainda está elegível. Contudo não podemos perder de vista que Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, goza de boa reputação e carisma entre os eleitores. Ainda temos um longo percurso pela frente e os desafios são grandes. Quanto ao pronunciamento do presidente, acho esse espelhamento desnecessário.

Hamilton – Lula precisa de Bolsonaro para eclipsar seu passado obscuro no poder e vice-versa. Esta foi a aposta vitoriosa em 2022 e tem tudo para se repetir em 2026, se o tecido social se mantiver íntegro até lá, sob as políticas de proteção social e sem choques externos graves. Claro, é preciso que as correntes democráticas continuem fugindo do desafio de mudar a ordem à guisa de “defesa da democracia”. Neste caso, infelizmente, mesmo estando Bolsonaro inelegível, é possível que nada melhor surja neste cenário de irracionalismo mutuamente alimentado.

Roberto – Considero que ex-presidente Bolsonaro esteja dentro espectro ideológico “populista de direita”.  Nesta perspectiva, não vejo quem possa substituí-lo caso se torne inelegível. Sou da opinião que, nos três primeiros anos de governo, o foco deva estar direcionado à resolução dos problemas do país e não na campanha político/partidária como fez o governo Bolsonaro ao longo dos quatro anos de mandato. Penso que Lula deveria evitar polemizar politicamente com Bolsonaro neste momento.

 

Folha – Após polemizar com Campos Neto, Bolsonaro e o senador Sergio Moro, inclusive creditando a uma “armação” do ex-juiz federal uma investigação da Polícia Federal (PF) em seu próprio governo, Lula sofreu muitas críticas. Inclusive de analistas considerados “petistas”, como o jornalista Bernardo Mello Franco, de O Globo. Como você vê?

Edvar – Todas as críticas nesse sentido são merecidas, tanto na polêmica com o presidente do BC, quanto no caso do hoje senador Sergio Moro. Foi de péssimo tom.

Filipe – Não vejo com bons olhos. O presidente precisa superar esse comportamento bélico e focar na gestão. A investigação que apontou a existência de um plano para matar um senador da República revela uma situação gravíssima. Querer inverter e transformar a “vítima” em algoz, traz desconforto e preocupação à sociedade. Até porque, uma das maiores preocupações nos dias atuais é justamente a escalada da violência. Recomendável, inclusive, que o governo implante uma política de segurança pública mais austera.

Hamilton – Lula perdeu sua “santidade”, para a maioria dos eleitores, no Mensalão e na Lava Jato. E seu novo governo, sob condições inéditas de partilha de poder com a “frente ampla” de Lira, torna mais difícil sua ressureição. Ao mesmo tempo, a direita saiu do armário e joga o jogo pesado das narrativas com uma liberdade que desconcertou a própria esquerda, pioneira no ramo. Assim, Lula, com idade já avançada e prisioneiro da crença na própria infalibilidade, se vê obrigado a jogar no mesmo nível de seus adversários, sem a proteção do pedestal.

Roberto – A discussão pública nos aspectos técnicos e políticos a respeito da taxa de juros praticada pelo BC está correta a meu ver. Já a polêmica envolvendo o ex-juiz Sergio Moro e o ex-presidente Bolsonaro não são adequadas à conjuntura econômica e política do país neste momento.

 

Folha – Ainda sobre fake news, o PT tem ecoado duas: o impeachment de Dilma em 2016 foi “golpe”, mas não o de Fernando Collor de Mello em 1992; e a Lava Jato, a despeito de erros comprovados, foi engendrada nos EUA. Representante do PT em evento na Rússia uniu as duas no dia 30, creditando aos EUA a queda de Dilma. Há fake news do “bem” e do “mal”?

Edvar – Essa história de notícias falsas sempre existiu, os boatos que viraram “verdades”. Os dois impedimentos ocorreram e passaram pelo Parlamento. Cada um tem sua versão sobre fatos e boatos. Essa história de que os Estados Unidos intervieram no impedimento da Dilma é filhote da história de que os próprios nortes americanos estavam por trás da queda de Getúlio. Essa pergunta tem como resposta outros ingredientes que somam as “teorias” e as “conspirações”.

Filipe – Não podemos confundir fake news com opinião. Na democracia, todo indivíduo tem direito à opinião e expressão. Contudo, necessário existir um compromisso com a verdade. A disseminação de ofensas, discurso de ódio ou incitação à violência e que venha a ameaçar a paz social e a segurança nacional não pode ser confundido com liberdade de expressão. Vivemos em uma sociedade onde já não se comporta mais a expressão da inverdade como pano de fundo para o sucesso argumentativo.

Hamilton – No mundo encantado das narrativas quase tudo cabe, exceto a realidade que não é nunca convidada. Mesmo assim, ela sempre entra de penetra para complicar a vida e desmanchar os sonhos, pois se trata da dimensão inexorável da vida. Por mais eficientes que sejam as ideologias e suas narrativas, chega um momento em que elas se desfazem ou perdem gradativamente a eficiência persuasiva. O PT voltou ao poder, mas suas versões dos fatos perderam poder de convencimento, ao preço do florescimento de novas fantasias.

Roberto – O Congresso, respeitados os trâmites legais, tem o poder para destituir um presidente da República legitimamente eleito. No caso do impeachment da presidente Dilma, entendo que as bases legais para sua destituição foram frágeis (Collor foi absolvido no STF das acusações que geraram seu impeachment). A questão foi mesmo política! Neste caso, entendo que houve um desrespeito à vontade da maioria da população que a elegeu. Por outro lado, houve uma certa inabilidade do governo Dilma 2 para lidar com o Congresso.

 

Folha – Na questão geopolítica, como viu Lula creditar a Lava Jato ao Departamento de Justiça dos EUA, após este país ter sido fiador do sistema eleitoral brasileiro e seu resultado em outubro? Como vê a reaproximação do Brasil com a China e a Rússia, que em meio à Guerra da Ucrânia tentam criar um eixo alternativo à América do Norte e à Europa?

Edvar – Essa questão do Departamento de Justiça dos EUA vai para a conta da teoria da conspiração. Os Estados Unidos aprovaram o sistema eleitoral brasileiro. O voto eletrônico, inclusive, é usado em alguns estados norte-americanos. Eu quero falar mais de “geo” do que de política. O Brasil precisa se aproximar de grandes mercados: Rússia e China são grandes mercados. Vamos tirar a ideologia desse contexto e vê-lo como estratégica econômica.

Filipe – Os dois cenários são complexos. Primeiro que o presidente estaria creditando aos EUA uma possível interferência dentro do Poder Judiciário brasileiro, em especial, no caso da Lava Jato, o que não acredito. Em segundo lugar, a única reaproximação que acho salutar nesse momento com a China e a Rússia, até pela tensão de um cenário de guerra, seria para ampliar o fomento das exportações e melhorar o ambiente de negócios entre os países. Não podemos perder de vista que os EUA e a Europa também são parceiros comerciais importantes.

Hamilton – Na política externa, o Brasil intenta se situar no campo do não-alinhamento terceiro-mundista, terreno outrora bem explorado pelos soviéticos e hoje disponível à estratégia chinesa. A China, ao contrário da antiga URSS, não busca replicar seu sistema político pelos continentes, o que lhe dá maior capacidade de atração por motivação econômica, que capturou as potências ocidentais. O problema é que uma possível guerra com Taiwan pode colocar o Brasil numa posição tão difícil quanto aquela de Vargas em 1941.

Roberto – É natural que por conta do alinhamento histórico da diplomacia brasileira com os EUA e pela identidade do PT com o Partido Democrata, Lula contasse com o governo Biden para reconhecer sua vitória. Mas, enquanto país em desenvolvimento, o Brasil faz parte do Brics, que integra também a Rússia, a China, a Índia e a África do Sul.  O peso da economia mundial está mudando do Ocidente para o Oriente.  Há estimativas de que em um prazo não superior a 10 anos a China se torne a maior economia do mundo, superando os EUA.

 

Folha – Parece consenso que o pêndulo do voto de centro determinou o segundo turno presidencial de 2018 e 2022, respectivamente, para Bolsonaro e Lula. Nenhum candidato do centro chegou a dois dígitos nas pesquisas e nas urnas de outubro. Que, no governo Lula, tem Simone Tebet no ministério do Planejamento. Esse centro seguirá apenso ao lulopetismo?

Edvar – A Simone Tebet foi uma grande novidade da campanha passada e realmente fez muita diferença. Acho que ela, agora ministra de uma pasta importante planeja um futuro político solo, com mais visibilidade.

Filipe – Difícil avaliar, até porque a política é como nuvem, está sempre se movendo e deslocando. Mas um fator interessante que percebi nessa eleição do segundo turno, foi que o eleitor que migrou os votos para Lula ou Bolsonaro, em sua maioria, seguiu sua consciência pelo critério de aprovação ou rejeição. Penso que grande parte do centro é independente e seu compromisso com o governo irá depender muito do êxito da gestão. A aliança política que firmou com presidente do Senado e da Câmara está sendo fundamental nesse contexto.

Hamilton – Creio que parte de suas lideranças, sim. Mas seus eleitores, que tem pautas não abarcadas pelo petismo, como eficiência da máquina pública, combate à corrupção, segurança e desburocratização, não. O que deve motivar algumas lideranças a se manter longe do governo. Por isso Lula está ansioso para produzir resultados econômicos que compensem as frustrações da classes média, para neutralizar os independentes. O problema é conseguir isto com um Estado corrupto, ineficiente e ensimesmado, que queima recursos consigo próprio.

Roberto – Nada passa no Congresso Nacional sem a chancela do chamado Centrão.  Enquanto o Centrão puder obter do governo Lula retornos políticos, a ele se vinculará em maior ou menor grau. O mesmo vale para as eleições presidenciais. Os votos do Centrão acabam pesando na balança eleitoral. Simone Tebet pertence ao MDB, antigo PMDB, partido emblemático do Centrão, que foi a base de sustentação dos governos do PT, com destaque para os governos Dilma 1 e 2 que tiveram como vice-presidente da república Michel Temer.

 

Folha – Todas as pesquisas atestam que Lula conquistou seu terceiro mandato de presidente no voto do eleitor com renda mensal familiar até 2 salários mínimos. Para atender esses brasileiros pobres bastará a retomada de programas antigos, como o “Bolsa Família”, o “Minha Casa, Minha Vida” e o “Mais Médicos”? De maneira geral, falta inovação? 

Edvar – Essa rede de programas sociais é necessária e o governo anterior manteve (na verdade, extinguiu na prática o “Minha Casa, Minha Vida” e o “Mais Médicos”, além de transformar o “Bolsa Família” em “Auxílio Brasil”, sem os mesmos critérios sociais). O empresariado é defensor de uma rede de proteção social ampla. Jamais foi contra. Só que achamos que essa rede tem que ter como objetivo oportunizar pessoas hoje vulneráveis para se inserirem na cadeia produtiva. Esse é o ideal, olhando de forma ampla. A sociedade apoia esses programas, mas quer ver resultados. A inovação sempre é necessária.

Filipe – Os programas “Bolsa Família”, “Minha Casa, Minha Vida”, e outros programas sociais de inclusão e distribuição de renda são necessários e relevantes à dignidade da pessoa humana. Mas, infelizmente, incapazes de fazer com que a maioria dos beneficiários ascendam a melhores condições de vida. Necessário criar políticas públicas de independência financeira e sustentabilidade. Faltam investimentos sérios em educação e capacitação que lhes garantam conhecimento e qualificação, para ingressarem e se manterem no mercado de trabalho.

Hamilton – Para as camadas mais necessitadas, o assistencialismo é a tábua de salvação, como bem sabem os populistas de todos os matizes. Nossa democracia, desde o Real, foi em boa parte lastreada nesse setor, que atinge cerca de 40% da população, sem a necessidade de promoção via educação ou trabalho. O problema é que os que conseguiram ascender acabaram tomando consciência dos limites desta política, o que vem estreitando a margem de adesão ao modelo.

Roberto – Segundo o IBGE, a cada 10 brasileiros no mercado formal de trabalho, sete recebem até dois salários mínimos. Além disso, os trabalhadores informais somam 38,9 milhões de pessoas com renda precarizada. Fundamental que se consolidem programas que melhorem renda e qualidade de vida dos mais pobres, como o Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, Bolsa Família, Pronaf, Prouni, entre outros. Tão importante quanto a consolidação desses programas é que sejam ampliados e diversificados. Eu diria que tais programas já são bem inovadores.

 

 

Folha – Vencidos os primeiros 100 dias, quais são ao seu ver as principais características, positiva e negativa, do Lula 3?

Edvar – É convencional a avaliação dos 100 primeiros dias, algo quase que de praxe, embora saibamos que é um tempo curto para uma análise profunda. A característica positiva está no fato em que Lula recua diante de questões imutáveis como a autonomia do Banco Central. A negativa está embutida em uma pergunta anterior, ou seja, quando não aceita a lista tríplice para a PGR ou quer emplacar o seu advogado no STF. É preciso tempo para uma avaliação, até porque as características até aqui são políticas. Na economia, temos apenas indicativos.

Filipe – O aspecto positivo foi que ele estabeleceu uma relação mais harmônica com os Poderes da República, em especial, o Congresso Nacional. Já os aspectos negativos são a economia, segurança pública, desemprego e a falta de uma política de empreendedorismo. Ressalto que estamos avaliando 100 dias de gestão. Todo início é difícil e imprevisível. Mas, com planejamento em políticas públicas e gestão eficiente, podemos experimentar o retorno do crescimento econômico e social.

Hamilton – A volta da governança sobre a máquina pública e suas políticas é o ponto mais positivo, junto com a tomada de consciência sobre a necessidade do crescimento baseado na diversificação e complexificação econômica: a reindustrialização. O mais negativo é a ilusão de que podemos alcançar tal objetivo sem focar a promoção social na educação e no trabalho, vide paralisação da reforma do ensino médio. E que o Estado, mesmo nas mãos dos velhos e novos grupos parasitários, pode dirigir este processo sem necessidade de qualquer reforma.

Roberto – O ponto positivo é percepção do governo Lula de que o processo econômico é também um processo social. As políticas públicas não devem priorizar só o ganho econômico, mas ter o mesmo nível de prioridade ao bem-estar do conjunto da sociedade. A maior dificuldade nestes 100 dias tem sido coordenar os projetos e programas com políticos aliados de diferentes partidos nos diferentes ministérios. Como fazer a articulação para a aprovação dos projetos com um Congresso de forte base bolsonarista, além dos interesses próprios do Centrão.

 

Página 3 da edição de hoje da Folha da Manhã

 

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