Dilema da guerra sem santos sob o mesmo Deus de Abraão

 

 

Mesmo que o novo conflito entre judeus e palestinos na Terra Santa escale, levando ao envolvimento direto de países vizinhos como Líbano e Irã, é impossível Israel perder a guerra. Mesmo que o conflito não ultrapasse o território da Palestina na Faixa de Gaza, é impossível Israel vencer a guerra. Parece um dilema shakespeariano. É, na precisão integral do termo, uma tragédia.

DESDE 1947 — Aparentemente contraditórias, essas duas certezas militares são complementares. Resumem-se na mesma condição terrorista do grupo palestino Hamas contra a população civil israelense e das ações do estado de Israel contra a população civil palestina. Sem poupar mulheres e crianças em seus crimes de guerra, refletem o dilema que se arrasta desde 1947. Quando a ONU presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha criou os estados da Palestina e de Israel.

TERRORISMO DO HAMAS E ISRAEL — Antes de retroagir na História, a que está sendo contada desde os ataques terroristas do Hamas a israelenses do último dia 7. Respondidos com o terrorismo de estado da Israel que já mantinha 2,3 milhões de palestinos no campo de concentração a céu aberto da Faixa de Gaza, de apenas 365 km2. Nos quais passaram a ser confinados desde o dia 8. Sem direito à saída, ou à entrada de água, comida, remédios e energia elétrica. Mas com bombardeio diário.

POR QUE ISRAEL NÃO PODE PERDER? — Por que Israel não pode perder a guerra que declarou contra o Hamas, mesmo que ela escale pelo Oriente Médio? Porque os israelenses têm as mais poderosas forças armadas da região. E seu próprio arsenal nuclear. A esta condição, só um país islâmico do mundo pode se nivelar: o Paquistão, na Ásia Meridional. Está aí o exemplo cordato do Japão, nestes 78 anos após o bombardeio atômico dos EUA a Hiroshima e Nagasaki em 1945, para dirimir qualquer dúvida.

POR QUE ISRAEL NÃO PODE GANHAR? — Por que Israel não pode ganhar a guerra que declarou contra o Hamas, mesmo que ela se restrinja à Faixa de Gaza? Porque, mesmo que consiga invadir e ocupar militarmente aquela região da Palestina, que abandonou desde 2005, o tempo sempre favorece a resistência local em sua guerra de guerrilha, de espera. Estão aí os exemplos radicalizados do Iraque e do Afeganistão, após as recentes ocupação e retirada dos EUA, para dirimirem quaisquer dúvidas.

 

Pacientes que sobreviveram ao bombardeio do Hospital Batista Al-Ahly Arab, incluindo crianças palestinas, chegam transferidas ao hospital Al-Shifa, também na cidade de Gaza (Foto: Anadolu/Reuters)

 

HOSPITAL BOMBARDEADO EM GAZA — Como a guerra de Israel contra o Hamas na Faixa de Gaza pode escalar? Após o bombardeio na terça (13) contra o Hospital Batista (cristão) Al-Ahly Arab, na cidade de Gaza, os muçulmanos se levantaram desde quarta (14). Em protestos na Cisjordânia, outra área da Palestina na Terra Santa. Cujo governo caberia à Autoridade Nacional Palestina (ANP), de origem laica, opositora do Hamas e seu fundamentalismo religioso. A ANP aceita o estado de Israel. O Hamas, não.

FUNDAMENTALISMO JUDEU NA CISJORDÂNIA PALESTINA — A despeito da tolerância religiosa e política da ANP, a Cisjordânia já sofre ocupação militar de Israel. Cujo primeiro-ministro conservador, Benjamin Netanyahu, foi liberado pelo então presidente de extrema-direita dos EUA, Donald Trump, para instalar colônias ilegais de fundamentalistas judeus no território palestino. Netanyahu se aliou à extrema-direita religiosa do seu país para tentar controlar a Suprema Corte. E evitar ser preso por crimes de corrupção.

PROTESTO NA EMBAIXADA DOS EUA NO LÍBANO — Além dos protestos na Cisjordânia palestina, ocupada por colonos da extrema-direita religiosa israelense, os protestos pelo bombardeio no hospital cristão em Gaza também ocorreram na quarta, diante da embaixada dos EUA em Beirute, capital do Líbano. Onde, na fronteira sul daquele país de população muçulmana e cristã com o norte de Israel, os conflitos seguem ainda em banho-maria com outro grupo terrorista e fundamentalista islâmico, o Hezbollah.

O PODER DO HEZBOLLAH — Financiado pelo Irã, o Hezbollah é muito mais poderoso que o Hamas. Se este tem entre 20 e 40 mil militantes armados, aquele conta com cerca de 100 mil, testados na Guerra Civil da Síria, além de 150 mil mísseis apontados a Israel. Onde são capazes de derrubar prédios na capital, Tel Aviv, como os israelenses fazem há 13 dias na Faixa de Gaza. Foi essa capacidade militar do Hezbollah que expulsou Israel do Líbano em 2006.

O QUE ESPERA ISRAEL POR TERRA EM GAZA — Enquanto o mundo espera a invasão israelense por terra à Faixa de Gaza, o Hezbollah talvez seja o espectador mais ansioso. Se o avanço for freado pelas mortes de mais civis palestinos e dos cerca de 200 reféns capturados em Israel pelo Hamas, além do seu maior conhecimento do território e dos 500 km de túneis subterrâneos que ali escavou — o metrô de Londres tem “só” 406 km —, o grupo libanês seria estimulado a abrir uma segunda frente de batalha.

COMO PODE ESCALAR AO LÍBANO E IRÃ — Se, depois do maior assassinato coletivo de judeus desde o Holocausto pela Alemanha Nazista na II Guerra Mundial (1939/1945), Israel tiver sua capital bombardeada com a capacidade que o Hezbollah possui, difícil imaginar uma resposta que não fosse ainda mais avassaladora sobre o sul do Líbano, ou todo o país vizinho. O que, se acontecer, poderia instar o Irã a reagir em apoio ao grupo que abertamente patrocina.

 

(Arte: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

CAMINHO DO IRÃ A ISRAEL — Diferente do Líbano, o Irã não tem fronteira com Israel. Mas tem com o Iraque, cuja passagem foi aberta desastrosamente nos crimes de guerra dos EUA. E, já na fronteira israelense, os iranianos talvez também tivessem passagem aberta com a Síria. Cujo ditador, Bashar al-Assad, só sobreviveu à sua sangrenta Guerra Civil com o apoio do Irã, do Hezbollah e, sobretudo, da Rússia. Contra seus opositores sírios apoiados pelos EUA e Israel.

COMO PODE ESCALAR AOS EUA E RÚSSIA —  Se o Irã entrasse em apoio ao Hezbollah, numa eventual escalada do conflito, difícil crer que a reação israelense ao regime dos aiatolás se desse sem os EUA. Como, se os iranianos alcançassem Israel pelo corredor do Iraque e da Síria, e esta sofresse represália, difícil crer que Vladimir Putin assistisse passivamente a uma agressão ao seu maior aliado no Oriente Médio. Cujo governante bancou em Damasco, capital síria, na vitória militar da Rússia sobre os EUA.

SEM SANTOS, COM 5.437 MORTES — Entre o que pode acontecer, o já acontecido custou, até o início da noite de ontem, 5.437 vidas humanas. Cerca de 1,3 mil israelenses, nos crimes de guerra do Hamas. Mais que o triplo, 4.137 eram palestinas, nos crimes de guerra de Israel. Diferente dos cristãos católicos, os judeus e os muçulmanos não creem em santos. Que não existem em nenhum dos lados envolvidos nessa nova guerra na Terra Santa aos crentes do mesmo Deus de Abraão.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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