Acusação de racismo contra petista Gilberto é arquivada

 

Gilberto Gomes (de camisa verde, ao centro) após passar dois dias preso por acusação de racismo que o Ministério Público pediu e o juízo da 3ª Vara Criminal de Campos arquivou (Foto: Rodrigo Silveira/Folha da Manhã)

 

“Essa decisão só reforça o que dissemos desde o momento da prisão: fui vítima de uma mentira que resultou em perseguição política, sofri uma série de arbitrariedades, desde a condução inadequada dos guardas municipais até o absurdo na delegacia onde fui preso sem nenhum flagrante ou testemunha que apoiasse a alegação do indivíduo que me denunciou.” Foi como Gilberto Gomes, secretário de Comunicação do PT de Campos, reagiu ao pedido do Ministério Público (MP) de arquivamento da acusação de injúria racial que sofreu. E foi acolhido pelo juiz titular da 3ª Vara Criminal de Campos, Glaucenir Silva de Oliveira.

O fato aconteceu em bate-boca (confira aqui) entre Gilberto e o militante monarquista Hugo Hebert, no desfile do último 7 de Setembro no Cepop. De onde Gilberto saiu conduzido por guardas municipais, prestou depoimento na 134ª DP, sendo autuado e preso em flagrante por injúria racial. Para depois ser conduzido à Casa de Custódia, de onde foi liberado (confira aqui) no dia 9 daquele mês.

— Ressalte-se que a versão do sr. Hugo não encontra respaldo nos outros elementos acostados aos autos, tal como a mídia acostada aos autos, na qual se verifica, em clara contradição ao depoimento prestado em sede policial, dialogando com a versão apresentada pelo indiciado Gilberto e pela testemunha Eduardo Peixoto, o sr. Hugo Hebert concedendo entrevista e esclarecendo que a fala do investigado foi “um preto monarquista, monarquista?” — justificou o promotor de Justiça Arthur Keskinof Zanfelice em seu pedido de arquivamento acatado pela 3ª Vara Criminal de Campos.

Advogado de Gilberto, João Paulo Granja também se manifestou sobre o acolhimento do Judiciário ao pedido de arquivamento do caso, ao qual ainda cabe recurso da suposta vítima à instância superior do MP:

— Por decisão da 3ª Vara Criminal de Campos, foi acolhido o parecer do Ministério Público e determinado o arquivamento, pela ausência fundamento jurídico para o ajuizamento de ação penal, do inquérito policial, instaurado para investigar suposta injúria com cunho racial, atribuída a Gilberto Gomes. Demonstrando que, na discussão travada no desfile de 07 de setembro, as palavras utilizadas pelo Gilberto não se enquadraram no ilícito que lhe foi atribuído, restaurando a verdade dos fatos ocorridos.

Outro advogado de Gilberto, o criminalista Alex Ribeiro Cabral também se manifestou sobre o pedido de arquivamento do caso, acolhido pela Justiça:

— Conforme havíamos manifestado no dia posterior ao ocorrido, realmente não se tratava de hipótese de injúria racial, pela falta de elemento básico ao crime, qual seja o ânimo do agente de ofender a honra da vítima, atribuindo a ela uma característica negativa que tenha relação com a cor, raça, etnia etc. Desde o início, portanto, era clara a não ocorrência de injúria racial. Em verdade, sequer deveria ter ocorrido a prisão em flagrante.

Gilberto também agradeceu ao papel dos advogados João Paulo e Alex em sua defesa. E disse que pretende buscar na Justiça reparação pelos danos causados à sua imagem:

— Vamos buscar reparação dos danos que sofri e todo constrangimento. Sempre tive uma vida honesta e sigo firme defendendo meus ideais de justiça social e luta antirracista. O arquivamento do caso pelo MP é uma vitória, mas nós provamos que houve má fé na denúncia, que existe contradição no depoimento. Por isso vamos analisar com nossos advogados, Dr. Alex Cabral e Dr. João Paulo Granja, os quais eu agradeço e destaco a atuação impecável, quais são os próximos passos, pois entendo que se houve denunciação caluniosa, que é o crime de imputar falsamente a alguém a prática de algo ilícito, isso deve ser denunciado e apurado pela Justiça.

 

Após Bolsonaro e Trump, Lula volta a crescer nas pesquisas

 

(Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Após cair em intenção de voto (confira aqui, aqui, aqui e aqui), por classificar no dia 4 como “matança” a megaoperação policial no Rio do dia 28, com amplo apoio popular (confira aqui, aqui, aquiaqui e aqui), o presidente Lula (PT) parece voltar a se recuperar nas pesquisas a 2026. Em pesquisa MDA divulgada ontem (25), Lula liderou fora da margem de erro todos os quatro cenários de 1º turno e os oito do 2º turno.

Efeitos Bolsonaro e Trump — Feita com 2.002 eleitores, com margem de erro de 2,2 pontos para mais ou menos, entre 19 e 23 de novembro, a pesquisa MDA pegou em seus dois últimos dias de coleta os reflexos iniciais da prisão preventiva de Bolsonaro (confira aqui), na manhã do dia 22. Como também pegou o recuo dos EUA de Donald Trump (confira aqui), no dia 20, nas tarifas comerciais ao Brasil, fato favorável a Lula.

Lula sobe, Bolsonaro desce no 1º turno — Nas simulações de 1º turno em consulta estimulada, Lula bateu Bolsonaro, inelegível até 2060, por 38,8% de intenção a 27,0%. Hoje, são 11,8 pontos de vantagem ao petista. Ele cresceu, na série histórica MDA, 3 pontos de setembro a novembro. São os mesmos 3 pontos que Bolsonaro perdeu no mesmo período.

 

(Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Tarcísio, Michelle e Eduardo batidos no 1º turno — Nas outras três simulações de 1º turno, Lula bateu ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (REP), por 42,0% a 21,7% (20,3 pontos de vantagem). Contra a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL), o petista teve 42,7% a 23% (19,7 pontos de vantagem). E 42,7% a 16,4% (26,3 pontos de vantagem) contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL).

 

(Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Lula também amplia ao 2º turno — Nas simulações de 2º turno, Lula hoje não só bateria um Bolsonaro inelegível por 49,2% a 36,9% (12,3 pontos de vantagem), Tarcísio por 45,7% a 39,1% (6,6 pontos de vantagem) e Michelle por 49,1% a 35,6% (13,5 pontos de vantagem). Na série MDA, o petista também aumentou sua vantagem entre setembro e novembro sobre Bolsonaro e Tarcísio.

Sobre Ratinho, Zema e Caiado no 2º turno — Nas outras simulações de 2º turno, Lula bateria os governadores do Paraná, Ratinho Júnior (PSD), por 46% a 39% (7 pontos de vantagem); de Minas, Romeu Zema (Novo), por 47,9% a 33,5% (14,4 pontos de vantagem); e Goiás, Ronaldo Caiado (União), por 46,9% a 33,7% (13,2 pontos de vantagem). De setembro a novembro, Lula abriu a vantagem sobre Ratinho e Caiado e estabilizou com Zema.

 

(Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Lula amplia também sobre Ciro — Na simulação de 2º turno restante da MDA, Lula bateria também seu ex-ministro Ciro Gomes (PSDB), por 44,1% a 35,1%. São 9 pontos de uma vantagem do petista que cresceu 6 pontos desde setembro.

 

(Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Bolsonaros campeões na rejeição — Na rejeição, fundamental ao 2º turno, Bolsonaro tem 60,1% de brasileiros que não votariam nele de jeito nenhum.  Ele só foi superado pelo filho Eduardo, com 62,6% no índice negativo. Atrás dos dois vieram Lula (47,8% de rejeição), Ciro (43,2%), Tarcísio (35,7%) e Ratinho Jr. (34,5%).

 

(Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Aprovação de governo — Impulsionado pelos fatos recentes de Bolsonaro e Trump, Lula também melhorou sua aprovação de governo. Entre setembro e novembro, os que aprovam cresceram 4,1 pontos, de 44,0% aos atuais 48,1%, enquanto os que desaprovam oscilaram 0,5 ponto para baixo, de 49,3% aos atuais 48,8%. A desaprovação ainda tem maioria numérica, mas em empate técnico bem próximo com a aprovação.

 

(Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

William Passos, geógrafo com especialização doutoral em estatística no IBGE

Análise do especialista — “A MDA de novembro de 2025 estimulou quatro cenários de 1º turno a presidente, com Jair Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, Eduardo Bolsonaro e Michelle Bolsonaro na 2ª colocação. E testou oito cenários de 2º turno contra Bolsonaro, Tarcísio, Ratinho Jr., Romeu Zema, Ronaldo Caiado, Ciro Gomes, Eduardo e Michelle. Em todos os cenários, Lula lidera acima da margem de erro”, resumiu William Passos, geógrafo com especialização doutoral em estatística no IBGE.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

 

Questionável, inquestionável e inédito nas prisões por golpe

 

Bolsonaro flagrado por câmera dentro da sede da Polícia Federal de Brasília no domingo, onde está preso desde sábado, após tentar violar sua tornozeleira eletrônica com um ferro de solda (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Bolsonaro da preventiva ao início da pena

Preso preventivamente no início da manhã de sábado (22), após confessamente tentar violar sua tornozeleira eletrônica, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi transferido no mesmo dia da sua casa à Superintendência da Polícia Federal em Brasília. Onde, desde ontem (25), passou a cumprir sua pena de 27 anos e 3 meses de prisão, por tentativa de golpe de Estado.

 

O questionável e o inquestionável

Há questionamentos legítimos (confira aqui, aqui, aqui e aqui) à condução do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que condenou Bolsonaro (confira aqui) em 11 de setembro. Mas nenhum dos réus e advogados negaram no processo que a tentativa de golpe existiu. E a prisão preventiva de um condenado em prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica e que tenta violá-la, é inquestionável.

 

Histórico golpista do Brasil

Para além da parte jurídica, há questões históricas maiores. A primeira? Do golpe militar de Estado que fundou a República em 15 novembro de 1889 à Invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro 2023, o Brasil teve sete golpes consumados e 16 tentativas. O que dá ao país, em 134 anos de República, a média de um golpe de Estado ou tentativa a cada 5,8 anos.

 

Inédito à República

Incluído Bolsonaro, capitão da reserva do Exército, 17 militares já foram condenados (confira aqui) na tentativa de golpe de Estado: um almirante da Marinha, três generais, três coronéis, seis tenentes-coronéis, dois majores e um subtenente do Exército. Na primeira vez que militares pagam por seus crimes contra a democracia no Brasil. É um didatismo inédito à República.

 

Generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira e o almirante Almir Garnier foram presos ontem

 

Três generais e almirante presos

Ontem, com a conclusão do processo no STF, também foram presos os generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira e o almirante Almir Garnier, respectivamente, ex-ministros do GSI, da Defesa e ex-comandante da Marinha. O general Braga Netto já estava preso desde 14 de dezembro. São as mais altas patentes presas por tentativa de golpe na História do Brasil.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Com Bolsonaro, Brasil prendeu quatro presidentes em 7 anos

 

Jair Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva, Michel Temer e Fernando Collor de Mello, quatro presidentes do Brasil presos nos últimos 7 anos e meio (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Quatro ex-presidentes presos em 7 anos

Há uma segunda questão histórica que deveria pesar sobre as jurídicas e a torcida política pessoal. Nos últimos 7 anos e meio, desde que Lula (PT) foi preso em 7 de abril de 2018, após ter habeas corpus negado pelo STF, Bolsonaro foi o 4º ex-presidente encarcerado. O que dá uma média de um a cada 1 ano e 8 meses.

 

Além de Bolsonaro e Lula, Temer e Collor

Completam a lista os ex-presidentes Michel Temer (MDB), preso em 21 de março de 2019, pelo hoje compulsoriamente aposentado juiz federal de 1ª instância Marcelo Bretas, e solto 4 dias depois. E Fernando Collor (sem partido), preso em 25 de abril deste ano pelo STF e posto em prisão domiciliar em 1º de maio, na qual se encontra. E sinaliza o rumo futuro a Bolsonaro.

 

Quem elegeu os quatro presidentes presos?

Em qualquer democracia representativa da Terra em que quatro ex-presidentes sejam presos em 7 anos e meio, o problema demanda foco histórico. Está muito mais no conjunto da sociedade que os elegeu por voto popular (incluído o vice, que assumiu após impeachment com apoio das ruas) do que em indivíduos apeados do poder e seus eventuais “mal feitos”.

 

Pedagogia necessária, mas dia triste

Além dos remédios para tentar justificar um alegado surto contra a tornozeleira, o Brasil parece demandar tratamento político à base de lítio e de mudanças no estilo de vida. Sempre recomendáveis a transtorno bipolar. A despeito da necessária pedagogia antigolpista do “quem tem, tem medo”, a prisão de Bolsonaro no sábado foi um dia triste à República.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Democracia e economia: prisão de Bolsonaro é só mais um capítulo

 

 

Da Folha ao Estadão

Reproduzida para abrir hoje a coluna, parte do texto acima foi publicada (confira aqui) segunda (24) no blog Opiniões. No dia seguinte (25), o Estadão trouxe a mesma linha de análise no artigo (confira aqui ou aqui) “A prisão de Bolsonaro é um sintoma de um problema muito maior”, do jornalista Rodrigo da Silva. Em que ele também coloca como nossa instabilidade política custa caro na economia.

 

Rodrigo da Silva, jornalista e articulista do Estadão

O custo econômico de derrubar governantes

“Quando os economistas medem quantas vezes um país troca abruptamente de governo, eles percebem que isso cobra um preço bem alto no crescimento. Se um país derruba governantes com frequência (Collor sofreu impeachment em 1992 e Dilma Rousseff, em 2016), cada troca está associada à queda de 2,4% de crescimento no PIB per capita”, revelou Rodrigo da Silva.

 

Bagunça política vira bagunça econômica

“Isso acontece, em parte, porque quando o país está preso a um clima de tensão, com greves, protestos e ameaças de golpe e impeachment, quem tem dinheiro fica com medo do futuro, e com isso adia os investimentos, cancela projetos e manda o dinheiro para fora do país. A bagunça política vira bagunça econômica”, seguiu o jornalista.

 

Prisão de Bolsonaro é só mais um capítulo

“No fim, é isso que a prisão de Bolsonaro escancara. O nome mais popular da direita brasileira está atrás das grades. E este é só mais um capítulo de uma longa história de instabilidade institucional que atravessa fronteiras, séculos e regimes. Uma história que parece longe de acabar”, concluiu o texto do Rodrigo da Silva no Estadão.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Felipe Fernandes — Frankenstein entre o belo e o grotesco

 

 

Felipe Fernandes, cineasta publicitário e crítico de cinema

Frankenstein — Entre o belo e o grotesco

Por Felipe Fernandes

 

Considerada por muitos como a primeira ficção científica da história, “Frankenstein” foi escrito pela britânica Marry Shelley e publicado no ano de 1818, quando ela tinha apenas 19 anos. O livro se tornou um clássico da literatura mundial, sendo muito influente na literatura e na cultura ocidental, influência que cresceu com o advento do cinema, tendo sua versão mais famosa lançada em 1931, em um filme que consolidou de vez a figura da criatura no imaginário popular. E fez do livro uma das obras mais adaptadas para a sétima arte, além de constantemente referenciada em todo o tipo de situação. É o tipo de história que mesmo que você nunca tenha lido o livro ou assistido algumas das várias adaptações, você vai reconhecer algumas de suas referências.

Eu confesso que adoro o livro e sou aficionado pela história, talvez por isso, sempre eu lia ou via uma entrevista do cineasta mexicano Guillermo Del Toro falando de seus sonho de criança em levar às telas sua versão da obra, eu ficasse tão animado. Além da paixão pelo material original, as características do cinema de Del Toro, que começou no cinema de horror e sempre soube misturar muito bem horror com fantasia, me fizeram acreditar que um filme dirigido por ele, tinha potencial para ser uma das grandes versões do livro lançado a mais de 200 anos.

Escrito pelo próprio cineasta, o longa abre com uma estrutura similar ao material original, mas posteriormente se divide entre dois capítulos, um narrado pelo cientista Victor Frankenstein (Oscar Isaac) e outro pela criatura (Jacob Elordi). Me chamou a atenção como Del Toro reforça a ligação do protagonista ainda criança com seu pai. A ligação afetiva com a mãe é um dos pontos cruciais da obra e está diretamente ligada à obsessão do personagem de lutar contra a morte. Já seu relacionamento com o pai ganha espaço, o pai de Victor é retratado como uma figura rígida, controladora e emocionalmente abusiva, que força o filho a seguir seu caminho na profissão de médico, algo que vai ganhar consequências posteriores na história e na relação de Victor com sua criação.

A criação do monstro é retratada em uma parte considerável da história. Provavelmente na busca por uma espécie de realismo, um mal do cinema mainstream moderno, o filme busca explicar toda a situação. Victor deixa de ter um mentor científico e passa a ter um investidor, um personagem original interpretado por Christopher Waltz, que é um magnata armamentista que vê no experimento de Victor uma oportunidade e passa a financiá-lo. É da interação entre eles que surgem as explicações, buscando uma espécie de validação científica.

Nessa mistura de horror com fantasia, Del Toro deixa de lado o aspecto grotesco da obra e aposta em um visual mais estilizado, ainda que os elementos góticos estejam presentes, todo o processo da criação do monstro acontece em um cenário bonito, com objetos simbólicos, é tudo muito grandioso, com cores intensas, quebrando a sensação degradante do experimento. Estamos falando da construção de uma criatura que é formada pela mistura de diferentes corpos. É uma criatura que deveria ser toda retalhada, em um experimento que desafia as leis naturais, quesitos que ficam em segundo plano em função de uma beleza estética que me pareceu estranha, esvaziando emocionalmente um momento muito marcante da narrativa.

Essas características também estão presentes no visual da criatura. Como mencionei, o monstro é uma criatura assustadora, cuja mera imagem causa desconforto e repulsa a quem o encontra. Ao menos, deveria ser assim. A nova versão do monstro passa longe dessa descrição. O personagem interpretado por Elordi parece um boneco anatômico estilizado. Um personagem de visual muito pobre, vindo de um autor reconhecido por sua criatividade visual, é uma escolha que surpreende negativamente. É um monstro de corpo simétrico, expressivo, sem falar em outras mudanças, que deixam o personagens com características sobre-humanas, que também contribuem para o enfraquecimento dramático do personagem.

Um ponto positivo, é a relação de Victor com a criatura, algo bem explorado pelo filme, que resgata elementos da relação abusiva de Victor com o pai para mais que justificar, mas esclarecer a forma como o personagem lida com sua criação. Todos os cuidados que Victor precisa ter com o monstro, passando pelo processo de aprendizagem, são características de uma relação entre pai e filho e Victor nunca vê a criatura dessa forma. Ela é o resultado de um experimento que foi bem sucedido. Victor queria criar vida através da morte e ele consegue. O que fazer com essa vida depois, não é algo que fazia parte do plano.

Outra personagem que sofre muitas alterações e perde espaço é Elizabeth (Mia Goth). Aqui ela se torna o foco do amor impossível para criador e criatura, mas diferente de Victor, ela não tem interesse pela morte. Ela vê beleza na vida. Por isso seu encantamento com a criatura e com toda sua ingenuidade e pureza. É uma personagem com mais personalidade que no material original, porém, com menos relevância para a trama.

O filme tem um sério problema de ritmo. Se a construção da criatura e até mesmo sua parte de aprendizado na fazenda, que é o grande ponto fraco do livro e de todas as adaptações que eu vi,  aqui não é diferente: após um determinado despertar da criatura, o filme fica corrido. Toda a parte final da história é apressada, o que torna difícil aceitar determinadas decisões narrativas.

Acredito que a decisão de tornar o monstro mais bonito e expressivo, tenha a ver com o fato de Del Toro buscar construir uma versão que busque sentimentos diferentes e eu, particularmente, respeito isso. Ele busca pela construção de uma criatura mais emocionalmente complexa, que busca mais que vingança por seu criador. O horror filosófico dá lugar a um drama existencial que está presente no cerne da história, mas aqui aponta para um lado sentimental que soa contraditório com muito do que acompanhamos até ali.

“Frankenstein” é uma grande tragédia em sua essência e se muito dela vem do sentimento de solidão perante ao mundo. Para Del Toro esse abandono está presente no abandono emocional. O desfecho aqui traz sensações conflitantes, sentimentos de reconciliação e aceitação, de um monstro que insiste em escolher a vida, mesmo após conhecer o pior lado da humanidade. É um final emotivo, de esperança, quase um novo renascimento.

O caminho escolhido por Del Toro é o de um cineasta que escolheu olhar uma história sombria sobre um prisma mais leve. Essa humanização de monstros é recorrente no cinema do diretor, que aqui foi mais fiel às suas convicções que a obra original, uma decisão coerente e admirável, que para o bem ou para o mal, traz um diferencial para a adaptação.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Confira o trailer do filme, disponível na Netflix:

 

 

Prisão preventiva de Bolsonaro — O inferno não são os outros

 

Bolsonaro em prisão domiciliar com a famosa tornozeleira eletrônica (Foto: Reprodução)

 

Há questionamentos legítimos à condução do julgamento (confira aqui, aqui, aqui e aqui) do Supremo Tribunal Federal (STF) que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 11 de setembro (confira aqui) por tentativa de golpe de Estado. Mas a prisão preventiva de um condenado, em prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica e que confessamente tenta violar este equipamento, é juridicamente inquestionável.

Para além da parte jurídica, há questões históricas maiores. A primeira? Do golpe militar de Estado que fundou a República em 15 novembro de 1889 à Invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro 2023, o Brasil teve sete golpes consumados e 16 tentativas. O que dá ao país, em 134 anos de República, a média de um golpe de Estado ou tentativa a cada 5,8 anos.

Incluído Bolsonaro, capitão da reserva do Exército, 17 militares já foram condenados (confira aqui) na tentativa de golpe de Estado: um almirante da Marinha, três generais, três coronéis, seis tenentes-coronéis, dois majores e um subtenente do Exército. Na primeira vez que militares pagam por seus crimes contra a democracia no Brasil. É um didatismo inédito à República.

Mas há uma segunda questão histórica que deveria pesar sobre as jurídicas e a torcida política pessoal. Nos últimos 7 anos e meio, desde que Lula (PT) foi preso em 7 de abril de 2018, após ter habeas corpus negado pelo STF, Bolsonaro foi o 4º ex-presidente encarcerado. O que dá uma média de um a cada 1 ano e 8 meses.

Completam a lista os ex-presidentes Michel Temer (MDB), preso em 21 de março de 2019, pelo hoje compulsoriamente aposentado juiz federal de 1ª instância Marcelo Bretas, e solto 4 dias depois. E Fernando Collor (sem partido), preso em 25 de abril deste ano pelo STF e posto em prisão domiciliar em 1º de maio, na qual se encontra. E sinaliza o rumo futuro a Bolsonaro.

Em qualquer democracia representativa da Terra em que quatro ex-presidentes sejam presos em 7 anos e meio, o problema demanda foco histórico. Está muito mais no conjunto da sociedade que os elegeu por voto popular (incluído o vice, que assumiu após impeachment com apoio das ruas) do que em indivíduos apeados do poder e seus eventuais “mal feitos”.

Além dos remédios para tentar justificar um alegado surto contra a tornozeleira, o Brasil parece demandar tratamento político à base de lítio e de mudanças no estilo de vida. Sempre recomendáveis a transtorno bipolar. A despeito da necessária pedagogia antigolpista do “quem tem, tem medo”, a prisão de Bolsonaro no sábado (22) foi (confira aqui) um dia triste à República.

 

Lucas Rodrigues Barbosa — “O Agente Secreto”

 

 

Lucas Rodrigues Barbosa, crítico de cinema e graduando em Letras no IFF

The Secret Agent

Por Lucas Rodrigues Barbosa

 

Acabou que “O Agente Secreto” se tornou meu filme favorito do Kleber Mendonça Filho (KMF). Fica evidente como suas influências vastas em diversos tipos de cinema se misturam em uma coisa muito original, e que ainda consegue brincar com noções de cinema de gênero (como ele já havia feito em “Bacurau”) de uma forma bem diferente do convencional. Ao mesmo tempo em que remete a muitas coisas, nunca soa derivativo, mas sim como homenagens ao cinema, incluindo enquanto espaço físico, mas principalmente enquanto memória.

A memória é o principal foco de interesse do KMF. A memória é fundamental, mas ao mesmo tempo anticlimática e sem glamour se dentro da realidade. Por isso, o final do filme, que pode gerar sentimentos conflitantes, faz total sentido com a proposta narrativa, temática e formal do longa.

Não se trata de uma tentativa de heroificar uma figura, mas de levantar uma preocupação sobre a manutenção dessa memória. Ele faz isso brincando com a estruturação que nos lembra que estamos assistindo a um filme. Essa constante quebra, que só funciona pela ambientação criada, funciona como um jogo com nossas sensações e sentimentos, tanto em relação a memória quanto em relação a filmes.

Diferente de “Ainda estou aqui”, cujo problema principal era justamente essa quebra temporal que me retirou da imersão ao fim da narrativa, em “O Agente Secreto” essa quebra é proposital. Cria esse questionamento de como lidamos com nosso investimento emocional em filmes e em memórias, mas, principalmente, na junção de ambas as coisas, ou seja, em narrativas.

Toda a trama da perna, ou o constante retorno para os jornais e na investigação as garotas do tempo presente, acabam por fazer essa junção da realidade com a verdade fílmica. Trabalha ativamente para construção de uma narrativa palpável, mas que mesmo assim gera estranhamentos, ou melhor, desconfortos propositais.

Esses desconfortos operam nas arestas, onde a realidade fílmica se constrói, como, por exemplo, no jogo de câmera/olhares que constrói toda a tensão da cena inicial. A tensão se faz no não-dito. Sendo assim, essas sensações, mesmo que fictícias, são reais no espectador.

Acaba por ser um jogo muito bem construído de representação gerada pela memória física (as fitas de áudio) com a memória inventada, mítica, que não temos acesso. Assim, a quebra final tira todo glamour que poderia ser dado ao protagonista, produzindo a sensação de frustração que tem ecos na realidade.

Outro ponto que remete a uma preocupação com o real está no retrato da ditadura militar. Forças estatais reprimindo e caçando pessoas, mas sem ignorar que essas forças estatais agiam em serviço dos interesses privados. Interesses privados que agiam contra a pesquisa em universidades públicas, contra a produção de conhecimento fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo.

A trama da perna sintetiza tudo dito ao longo do texto. Uma perna, que muito provavelmente era de uma vítima da ditadura, encontrada dentro de um tubarão. O não-dito é ficcionalizado, mitificado em histórias sobre uma perna assassina, mas, retirado o glamour, é só uma perna, cuja presença e significação geram inquietação que se traduz no folclore, na tensão do ar. Mas, no fim, é só uma perna sem corpo. Uma perna sem memória.

 

Confira abaixo o trailer do filme:

 

Publicado originalmente aqui.