Guiomar Valdez — Eleições 2018: quando veremos face a face?

 

 

Tenho acompanhado e aprendido neste espaço as opiniões e debates sobre as eleições 2018, em especial, os que tratam da corrida presidencial. Muito qualificado o que vem se apresentando, onde as diversas interpretações se apresentam de uma forma plural e legítima (importante registrar que não há ‘pensamento único’, pode existir pensamento hegemônico, ok?!). Gosto disso. Reflete o debate geral no país, incluindo, óbvio, as diferenças, e, às vezes, visíveis incompatibilidades das ‘leituras’ do mundo e atitudes afins, no trato com o Fato e o Conhecimento (com letra maiúscula mesmo!). Isso é riquíssimo, bem mediado, como é, para exercitar a frágil Democracia em que vivemos. Continuemos assim! Nestes tempos onde a intransigência com o diferente se agudiza, paciência, paciência histórica, é do que precisamos e muito!

Também é sobre Política e corrida presidencial 2018 que me expresso hoje, apenas apontando um aspecto que vem sendo secundarizado, às vezes, negligenciado nessas discussões: o entrelaçamento entre a crise econômica mundial que persiste e se aprofunda há 10 anos, a nossa crise política que estabeleço como proposta de marco inicial o ano de 2013, seu primeiro resultado com consistência o ano do impeachment da presidenta Dilma (2016) e as eleições gerais desse ano. Muitas análises podemos encontrar sobre estes temas, mas, para mim, infelizmente, de maneira isolada. Penso que se articularmos esses temas com o cuidado necessário, sem fundamentalismos e histerias, podemos, inclusive, clarear o contexto conjuntural, nos dando uma visão para além do curtíssimo prazo; um olhar, inclusive, que nos faça compreender nossos interesses, sejam individuais ou coletivos.

Um entendimento que deveria já ser comum, é de que as crises do nosso sistema socioeconômico deixaram de ser cíclicas para ser crônicas. Ou seja, não existe mais ‘remédio’ para as crises. O desafio é aprendermos a viver com ela (acho que quem nasceu a partir da segunda metade dos anos de 1970, a primeira palavra que falou foi ‘crise’, e, não mamãe e papai) ou construir um outro sistema socioeconômico (mas isso é um outro assunto…).

Fato é que vivemos hoje apenas a ilusão de um desenvolvimento/crescimento ‘auto-sustentável’. Na prática, é vã qualquer tentativa de controle daquilo que é incontrolável. Os ciclos ‘virtuosos’, quando acontecem, estão cada vez mais escassos. As inspirações keynesianas estão impossíveis de se aplicarem, como num passado recente. As liberais, ou, sejamos sinceros, as neoliberais – ‘hayekianas/friedmianas’ — estão batendo cabeças, aterrorizadas com o pesadelo das suas soluções que não resolvem a tendência à queda de lucros dos momentos de superacumulação, de um capital hegemônico que deixou de ser ‘produtivo’, para se lambuzar no monetarismo-especulativo. É fato a desindustrialização!

Ora, eu sei que fica muito confuso traduzir esta crise econômica, esta crônica situação para a dimensão política, para as relações de poder, institucionalizadas ou não. Mais difícil ainda, traduzi-la para a dimensão cultural e particular/privada. Porém, eu engatinho neste esforço. E, nesse caminho, relação política-economia, é imprescindível o papel do Estado. Ele é essencial para o funcionamento da economia capitalista — seja para institucionalizar a ordem política, econômica e cultural necessárias à acumulação, seja para atuar em momentos das crises cíclicas.

Nesse vaivém (acumulação acontecendo satisfatoriamente ou a queda da taxa de lucros), é quando se apresentam mais claramente as discussões do ‘tamanho’ do Estado: pequeno/grande. Raramente se pergunta pequeno ou grande para quê? Para quem? Certo é que o Estado é um protagonista insubstituível das ações/medidas necessárias à ordem empresarial/burguesa. É certo também, a história demonstra, que a ‘conta’ maior, em tempos de crise, vem sendo paga pelos trabalhadores em sua quase totalidade de segmentos.

Pois bem, o entrelaçamento Economia<<>>Política na História Contemporânea chega sob os auspícios do Liberalismo, que projeta e busca realizar uma Democracia que não atente contra à ordem vigente da dimensão socioeconômica e seus pressupostos filosóficos/ideológicos. A História, em especial, do século XX, tem em abundância exemplos de que quando a economia/acumulação entra em crise, a Democracia Liberal também sofre seus revezes, suas flexibilizações e/ou rupturas, afinal, Liberdade, Igualdade, Direitos, etc, podem ser proclamados, podem ser constitucionalizados.

Mas, diante da crise material, tudo é passível de ser relativizado! Isso acontece porque os espaços institucionalizados da Democracia construída historicamente tem a hegemonia do bloco de poder (reunião de frações da classe dominante/empresarial) de quem domina a economia. A variação no tempo se dá nas frações que compõem, não na classe. De uma maneira geral, as frações políticas de esquerda, enquanto classe, ainda pouco conseguiu historicamente se constituir em ‘bloco’.

Daí porque em tempos de crise econômica/acumulação, transborda a crise política/crise orgânica do bloco de poder, o impasse, as alianças, em busca da sobrevivência, em busca de uma forma de saída da crise que não desmorone a classe ou o sistema socioeconômico vigente. Normalmente ficamos confusos porque essas frações nem sempre se entendem no como administrar a crise, gerando uma concorrência orgânica/interna, um ‘salve-se o meu setor’, que me faz lembrar de uma frase significativa da política partidária do Segundo Reinado: “nada mais conservador do que um liberal no poder; nada mais liberal do que um conservador na oposição”.

No Brasil, o Partido dos Trabalhadores no poder não representou um bloco de esquerda, por favor. E, para mim, infelizmente. A ‘Carta aos Brasileiros’ de 2002 e os seus mandatos até 2016, representou o símbolo de um novo arranjo na hegemonia do bloco de poder, repetindo a reunião de frações da classe dominante/empresarial, em tempos de crise socioeconômica mundial crônica! Ao passar a ‘marolinha’ por volta de 2009/2010, os sinais do ‘tsunami’ começam a chegar, tornando impossível a continuidade da conciliação que ‘servia a quase todos’; tornando impossível conter as antigas e novas insatisfações… esta é uma possível leitura do ano de 2013.

Aparentemente caótica, as manifestações, o surgimento de novos movimentos sociais, da ação informativa e mobilizadora das redes sociais, apresenta o que ficou abafado, contido, engolido a seco, da ‘conciliação política’. Não apenas dela, mas das ideias políticas que estavam nos porões autoritários aparentemente adormecidas. Tudo sai dos armários!

A crise econômica chegou arrasadora e assumida, no momento dos dois últimos governos do PT. O que aparentava para nós nas eleições de 2014? Mais uma disputa partidária entre PT x PSDB. Não, foi muito mais que isso! Foi a expressão de uma crise política, sem mais a mediação conciliatória, diante da avassaladora crise sistêmica! A ilusória pretensão do Lulismo de que havia encontrado a ‘fórmula da harmonia social’, caiu por terra. Serviu mesmo, do ponto de vista do bloco de poder hegemônico, para salvaguardar seus interesses. Agora, não serve mais, mesmo tomando medidas de ajustes econômicos e políticos antipopulares!

O impeachment de 2016 e seus desdobramentos para o lulopetismo veio significar o fim da ‘conciliação’, como também, um momento da disputa dentro do bloco hegemônico de poder (industrial, agrário, financeiro, exportador, comercial, etc, etc) buscando saídas para administrar politicamente a crise, um acerto de contas dentro do próprio Estado das frações empresariais/burguesas. É preciso dar respostas econômicas à crise no âmbito político! É preciso manter a ordem, mesmo que a Democracia seja relativizada, desestabilizada.

A dimensão jurídica dessa Democracia tem sido protagonista neste novo arranjo, por exemplo. As forças estão sendo acumuladas desde então. O clima para a tese do descontrole está dado: desemprego, corrosão salarial, péssimos serviços públicos em todas as áreas, violência social exacerbada e a institucionalizada também, perdas de direitos, insegurança social se generalizando.

As Eleições Gerais de 2018 estão contidas nessa conjuntura política que expressa a crise estrutural no Brasil. As candidaturas stricto-sensu de centro-direita e de direita e seus fisiologismos são os possíveis vitoriosos. Não é o que eu quero ou desejo viver no meu país novamente! Considerando que o processo de acumulação não se move pela ética humanitária e recordando que em tempos de crise sistêmica-estrutural a Democracia Liberal pode ser solapada, até a extrema direita tem espaço, dependendo apenas da análise do grande capital e suas inseguranças políticas para a saída da crise. Para mim seria um pesadelo vivenciar o fardo desse possível tempo histórico! Por não entrelaçarmos Economia<<>>Política, vemos em ‘parte’, e, às vezes, em pedacinhos minúsculos dessas partes. Quando veremos ‘face a face’?

 

Facebook fez a limpa nas páginas do MBL e direita zurra “censura”

 

Líder do MBL Kim Kataguiri posa orgulhoso ao lado do então presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, antes deste ser preso pela Lava Jato

 

Nesta semana, 196 páginas brasileiras do Facebook, a maioria ligada ao MBL, foram retiradas do ar. E afirmar que foi pela suspeita de disseminação de fakenews é, de fato, a única fakenews. Na verdade, as páginas foram alvo da limpa por serem operadas por 87 perfis falsos, o que é proibido. Não por outro motivo, todos foram igualmente banidos.

Contra a ação necessária e talvez tardia, acusações de “censura” são ecoadas com a mesma moral de quem prega menos interferência do Estado na iniciativa privada — como é o caso da empresa de Zuckerberg — enquanto comemora como bom Macunaíma o pedido de explicações ao Face feito pelo MPF de Goiás.

Ao que tudo indica, operar páginas com perfis falsos era uma tática do MBL, símbolo dessa neodireita histérica que, em 2017, comandou uma cruzada tupiniquim contra as artes e os artistas do país — relembre aqui. Quem aderiu naquela oportunidade para destilar seus recalques, é o mesmo indivíduo que agora zurra “censura”, com o histrionismo de um Fernando Holiday.

Um dia após o outro, não deixa de ser irônico constatar que os chiliques hoje da direita têm a mesma eficácia do “não passarão!” da esquerda em 2016, enquanto o impeachment de Dilma passava das ruas ao Congresso Nacional. No Brasil, o antipetismo é uma seita carbono do lulismo. Tão pretensiosa, chata e maniqueísta quanto. Só que menos popular.

 

Paula Vigneron — Enquanto

 

Trilha férrea Tiradentes/São João Del Rey, 24/09/17 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

 

Sorriu.

Acendeu as luzes. Olhou para o espelho. Estavam gastos, ele e a moldura. Não era tão ruim, pensou. Ajeitou os cabelos. O relógio apontava o amanhecer. No corpo, pontadas. Também não era tão ruim assim, analisou pela segunda vez. Esta chata mania de pensar, pensou.

E sorriu.

Os ponteiros do relógio mostravam os poucos minutos para o amanhecer. O corpo em ritmo de pontadas. Terminou de se arrumar. Os primeiros raios de sol entravam pelas frestas entreabertas. Havia deixado assim desde o começo das dores no correr das horas.

Do outro lado, o dia apontando em cores. Tempo perdido. Do seu lado, pontuavam as dores. Somos tão jovens, gritava um carro pela rua.

Sorriu.

Sentia o quarto esquentar enquanto seu corpo esfriava. Ouvia crescentes barulhos na rua enquanto os seus silenciavam vagarosamente. Ouviu o tic-tac do relógio enquanto os perdia. Sentiu seu corpo anoitecer enquanto amanhecia.

 

Gustavo Alejandro Oviedo — É melhor já ir refletindo

 

 

“Um táxi vazio chegou a Downing Street, e dele desceu Attlee”. Com essa frase genial, Winston Churchill desprezou o seu rival político, o laborista Clement Attlee, que o tinha sucedido como primeiro-ministro em 1945 e que, aos olhos de Winston, era evidentemente uma insignificância de pessoa.

A boutade me veio à cabeça após ler a entrevista que o jornal O Globo fez com o candidato a presidente Jair Bolsonaro. Nela, o deputado confessa não ter a menor ideia da política econômica que terá o seu eventual governo. A cada pergunta relacionada com a área, Bolsonaro manda perguntar para o Paulo Guedes, o seu assessor econômico. Tentando ser engraçado, responde “pergunta no Posto Ipiranga”.

A insignificância de Bolsonaro deriva de seu desinteresse com qualquer assunto que não seja segurança pública. O candidato parece não apenas não saber nada sobre assunto algum, mas também fazer questão de se manter na ignorância. Apenas de uma coisa tem certeza: bandido bom é bandido morto.

Há 27 anos que Bolsonaro é deputado federal, e na maioria das vezes em que teve que se posicionar sobre algum projeto de lei votou a favor do corporativismo, do populismo econômico e do fisiologismo. Agora defende o liberalismo de Paulo Guedes, que em teoria se opõe a tudo o que Bolsonaro apoiou até ontem.

No domingo passado, o Partido Social Liberal (PSL) homologou a candidatura de Bolsonaro a presidente da República, sem ter conseguido coligar com nenhuma outra legenda. No evento, o candidato ironizou o acordo que Gerardo Alckmin costurou com o chamado ‘Centrão’ (a ‘direita fisiológica’, como bem a definiu Idelber Avelar) ao dizer que agradecia ao tucano por ter ficado com “a nata do que há de pior do Brasil”. Apenas duas semanas atrás, numa outra entrevista, tinha se orgulhado em dizer que 40% do Centrão o apoiava. Se o Lula reconheceu alguma vez ser uma metamorfose ambulante, Bolsonaro deveria se catalogar como uma incoerência móvel.

E, no entanto, o capitão-deputado tem mais ou menos um quarto da intenção de voto a nível nacional, dependendo da pesquisa. No estado do Rio de Janeiro, deixa o Lula em segundo lugar.

É preciso entender: não é que Bolsonaro tenha chances de ir ao segundo turno apesar das barbaridades e das incoerências que diz, mas graças a elas. A sua fortaleza reside em manifestar declarações que os políticos tradicionais não se animam a dizer. O pior que poderia fazer para sua candidatura é contratar um marqueteiro que venha a lhe aparar os excessos. O eleitorado (ou grande parte dele) está cheio de políticos de boa lábia, mas incapazes de compreender suas necessidades — e hoje, infelizmente, uma das preocupações que o cidadão tem é a de não morrer na volta do trabalho.

Bolsonaro representa a falência da política brasileira, assim como Chavez  representou a venezuelana, o Trump a norte americana, e Hitler a alemã do pós-guerra. São filhos, por parte de pai, da indiferença e do desprezo das elites governantes, e por parte de mãe do ressentimento de um povo. Em condições sociais normais um país nunca elegeria sujeitos pitorescos, despreparados, psicopatas ou fanfarrões para dirigir o seu destino. Bolsonaro pode parecer uma atrocidade, mas em verdade é o sinal de febre de um país doente.

 

Cineclube Goitacá exibe e debate nesta quarta “Lawrence da Arábia”

 

Lawrence da Arábia. O que falar do clássico do cinema e da personagem real na qual ele se baseia? Considerado pelo American Film Institute como o sétimo melhor filme já feito, o longa dirigido em 1962 pelo mestre inglês David Lean (1908/91) ganhou os Oscar de melhor filme, diretor, edição, fotografia, direção de arte, som e trilha sonora. A partir das 19h de hoje, a obra será apresentada no Cineclube Goitacá, na sala 507 do edifício Medical Center, no cruzamento das ruas Conselheiro Otaviano e 13 de Maio. A entrada e a participação no debate são gratuitas e bem vindas.

Apesar dos sete Oscar de “Lawrence da Arábia”, Hollywood cometeu das maiores injustiças da sua história ao não conceder também o prêmio de melhor ator ao irlandês Peter O’Toole (1932/2013). Até hoje, impressiona sua solar interpretação da personagem que batiza o filme: o arqueólogo, literato, agente secreto, diplomata e militar britânico Thomas Edward Lawrence (1888/1935).

A partir da morte de Lawrence num acidente de moto, o filme recua em flash-back até o início do seu envolvimento no teatro da I Guerra Mundial (1914/18), no palco do Oriente Médio. Com boa parte dele controlada há 400 anos pelo Império Otomano, o conhecimento profundo da língua e cultura árabes fizeram com que o jovem arquéologo fosse requisitado pelo serviço de inteligência do Império Britânico, para atuar na ligação com as tribos beduínas do deserto. Elas lutavam contra o domínio turco muito antes da I Guerra.

Aliada da Alemanha e Império Austro-Húngaro, a Turquia enfrentava em seus antigos domínios a Grã-Bretanha e a França. Ambas já se interessavam pelo controle da região rica em petróleo, naquele início de século XX — importância geopolítica que o Oriente Médio mantém, 100 anos depois. Como oficial de ligação e agente secreto, Lawrence foi enviado ao acampamento nômade do príncipe Feiçal. Interpretado no filme por Alec Guiness, ele era líder de Meca (cidade mais sagrada dos muçulmanos) e da até então incipiente Revolta Árabe (1916/18).

Na demada do “milagre” pedido por Feiçal, Lawrence assumiu seu protagonismo no papel de profeta sem Deus. Com 50 beduínos, ele cruzou o deserto de Nefud, considerado intransponível, para conquistar Aqaba, na atual Jordânia. Cidade portuária fundamental ao domínio da região, toda a pesada artilharia turca estava apontada para o mar. Por terra, no lombo de camelos e comandando apenas árabes nômades, cujas vestes e costumes passou a adotar, o jovem ocidental de 28 anos fez o que a poderosa Marinha Real Britânica havia tentado, sem conseguir.

A partir do feito militar sem precedentes, Lawrence fundamentou o que ficaria conhecido como guerra de guerrilha. Os árabes tinham camelos, cavalos, espadas e fuzis. A Turquia já contava com metralhadoras, granadas, artilharia e a aviação de um exército moderno e mecanizado. Na impossibilidade de sucesso em confronto aberto, o líder britânico aproveitou a agilidade dos beduínos no deserto, atacando e sumindo rapidamente nas extensas paisagens castigadas de sol. Reproduziu o que a Inglaterra havia feito na Terra com navios.

Após Aqaba, Lawrence realinhou o alvo dos árabes sobre o mar das ferrovias inimigas, fundamentais ao abastecimento numa região desértica. Dinamitadas em açõs cirúrgicas, causaram o esgotamento dos turcos por falta de suprimentos e armamentos, até que o gigante se ajoalhasse vagarosamente por inanição.

O ponto alto da Revolta Árabe, após Jerusalém, foi a tomada de Damasco. Os árabes comandados por Lawrence foram os primeiros a entrar na capital da Síria. E, como libertadores, impuseram o fim de quatro séculos de domínio da Turquia sobre o Oriente Médio. Ao seu lado, o britânico tinha líderes beduínos como Ali ibn el Kharish (Omar Sharif) e Auda Abu Tayi (Anthony Quinn). Imbatíveis na guerra, os nômades se revelaram, todavia, incapazes de administrar as demandas sedentárias de uma grande cidade em tempos de paz.

Após o esfuziante sucesso militar, o dilema do jovem oficial no pós-guerra se revelou não só entre os beduínos que liderou, mas na pátria a que serviu. A partir do acordo Sykes-Picot, de 1916, Inglaterra e França já haviam dividido o Oriente Médio nos países que passamos a conhecer. E, no lugar da liberdade e da autodeterminação prometidas por Lawrence aos árabes, as duas nações europeias vencedoras da I Guerra assumiram da derrotada Turquia o papel de domínio da região. O que só acabaria após a II Guerra (1939/45).

Com a lealdade dividida entre árabes e britânicos, algo se quebrou dentro da personalidade multifacetada do próprio Lawrence. Na busca do que desse sentido à sua fantástica aventura na Península Arábica, ele a transformou no livro “Os sete pilares da sabedoria”. Escrito entre 1919 e 1922,  com revisão do dramaturgo e amigo George Bernard Shaw, seu autor só o lançou não comercialmente em 1926. Mas o poder da narrativa foi tamanho que a obra de mais de 600 páginas rapidamente se disseminou, sendo considerada um marco da literatura do século XX.

Mais conhecido como primeiro-ministro da Grã-Bretanha, do que como jornalista, pintor e prêmio Nobel de Literatura, Winston Churchill escreveu sobre o monumento literário de Lawrence, baseado em suas experiências à luz do sol no deserto:

— Se fosse obra de mera ficção, haveria de viver enquanto o inglês fosse falado em algum recanto do globo.

Foi no livro em que o filme se baseou. Depois do que seu autor fez e contou, não houve um movimento de guerrilha no mundo, dos chineses de Mao Tse-Tung e Zhu De, aos cubanos de Fidel Castro e Che Guevara, dos vietnamitas de Ho Chi Minh e Vo Nuguyen Giap, aos brasileiros dos Carlos Lamarca e Marighella, que não tivesse assumidamente bebido no relato do jovem arqueólogo e militar britânico. Nas suas palavras: tomou “nas mãos estas ondas de homens”.

Talvez a grande virtude do filme seja reproduzir em imagens os parágrafos do livro “escritos ao ritmo do lombo dos camelos”, como definiu C. Machado, seu primeiro e definitivo tradutor no Brasil. Para levar a história às telas, David Lean contou com a ajuda de outro mestre da sétima arte: o diretor de fotografia inglês Freddie Young (1902/88). Numa das parcerias mais exitosas do cinema, renderia ao fotógrafo mais dois Oscar, em duas outras obras-primas dirigidas por Lean: “Dr. Jivago” (1965) e “A filha de Ryan” (1970).

Sobre a personagem histórica de Lawrence, tão fascinante quanto intrigante, ou sua imortal cinebiografia, diz C. Machado, tradutor do livro: “Hamlet do Hedjaz (deserto a oeste da hoje Arábia Saudita), que ajustava a mira do velho fuzil enquanto interrogava as estrelas”.

 

Confira o trailer do filme:

 

Sobre o livro:

 

Acusação de racismo para tentar inverter o jogo entre futebol e política

 

No último dia 13 de abril, antes da Copa da Rússia, Özil presenteou o controverso Erdogan com sua camisa 11 do Arsenal (Foto: Reuters)

 

O meia Mezut Özil, do Arsenal, anunciou ontem nas redes sociais que não defenderá mais a seleção da Alemanha. Filho de pais turcos, o campeão da Copa de 2014 saiu atirando e acusou os dirigentes da Federação Alemã de racismo. O pomo da discórdia foi uma foto que o jogador fez em maio deste ano com o presidente da Turquia, o controverso Recep Erdogan, que estava em plena campanha de reeleição.

Na ocasião, a foto e sua ampla divulgação foram alvo de críticas de dirigentes do futebol alemão. Mas como Özil era o camisa 10 da seleção então campeã do mundo, uma das favoritas ao título na Rússia, a coisa ficou por isso mesmo. Daí veio a Copa. E o jogador e sua seleção não jogaram nada.

Titular no primeiro jogo, na derrota de 1 a 0 contra o México, Özil foi sacado do time na vitória de 2 a 1 sobre a Suécia. E, inexplicavelmente, voltou a ser titular na vergonhosa derrota de 2 a 0 para a Coreia do Sul. Por questão de futebol, não racial, sua presença em campo foi unanimemente encarada pela crítica internacional como um dos motivos do retumbante fracasso alemão.

Herdeira dos Impérios Bizantino e Otomano, além do controle sobre boa parte do mundo islâmico, a Turquia era uma das maiores potências do mundo até I Guerra Mundial (1914/18), quando foi derrotada junto com a Alemanha. O que restou do país foi salvo na Guerra de Independência Turca (1919/23) liderada pelo militar Mustafá Kemal Atatürk (1881/1938), que fundou a República da Turquia como estado laico e foi seu primeiro presidente.

O culto à figura do fundador da Turquia moderna, que sobrevive até hoje, é criticado pelos islâmicos, que dizem não adorarem santos. Ironicamente, o líder mais marcante que o país teve de lá para cá foi Erdogan. No poder desde 2003, ele é considerado um anti-Atatürk, por ter resgatado a promiscuidade entre religião e política banida do país desde a década de 1920, quando já era encarada como sinônimo de atraso.

Por contestações como essa, Erdogan sofreu uma tentativa de golpe fracassada em 2016. Que respondeu fortalecendo seu poder, baseado no populismo religioso, em condições de exceção que perduram. Cerca de 107 mil servidores públicos e soldados foram demitidos e mais de 50 mil pessoas estão até hoje presas. Mais de 5 mil acadêmicos e 33 mil professores também perderam os empregos. Sem contar cerca de 150 jornalistas detidos desde 2016.

Foi a esse tipo de líder político que Özil apoiou publicamente antes da Copa. Meia técnico, ele sempre foi, no entanto, o tipo de jogador conhecido como “vaga-lume”: que acende e apaga durante uma partida. Por essa inconstância, não conseguiu se firmar no Real Madrid, do qual foi liberado para tentar a sorte no Arsenal.

Aos 29 anos, pelas atuações de pouca qualidade e nenhum comprometimento na Copa da Rússia, Özil tinha seu desligamento da seleção alemã tido como certo. Mas, quase um mês após a eliminação germânica do Mundial, o jogador agora alega ter sido vítima de racismo, porque apoiou o governante do país de seus pais, de clara inclinação autocrata, e foi repreendido no país democrático em que nasceu.

Ao simular vontade própria em sua despedida da seleção da Alemanha, após a crônica esportiva do mundo já ter decretado seu adeus, Özil tenta usar o politicamente correto para inverter o jogo. Só pode colar com quem não entende nada de história, geopolítica, ou  futebol. Infelizmente, é a maioria da “torcida”.

 

Alexandre Buchaul — Fim do começo

 

 

Esses últimos dias fecharão o prazo para realização das convenções partidárias e definições dos candidatos para a eleição em outubro. Essa etapa é a finalização de acordos que se arrastam em articulações sem fim há ao menos um ano. Por mais que o calendário eleitoral determine datas em um cronograma bem definido sobre as ações eleitorais dos partidos e candidatos, sabemos que a campanha nunca tem fim. Os exércitos que agora se perfilam para a batalha já deixaram acordos que cobrem a eleição de 2020, sejam lá quais forem os resultados alcançados por cada postulante, os algoritmos estão determinados e, terminando esta eleição, ganhará vida o tabuleiro municipal.

O “centrão”, ao menos por hora, estará com Geraldo Alckmin do PSDB na corrida presidencial, Ciro morre afogado lentamente na própria intemperança, Marina… bem Marina “ainda não decidiu se é contra, a favor ou muito pelo contrário” — faz de sua já habitual indefinição uma nódoa permanente. Bolsonaro, com todas as suas peculiaridades, diz que o centrão é escória, mas que está em boa parte com ele e continua sonhando com a Janaína Pascoal, que não se definiu, como sua vice. Os demais pré candidatos ainda precisam comer muito arroz com feijão, ou sair da cadeia, para valer a pena comentar.

Na corrida para o legislativo a profusão de candidatos vindos de todos os cantos possíveis, alguns inimagináveis me leva a ter cada vez mais convicção de que deveríamos adotar o sistema distrital.

Acharam ruim? Melhor nem falar sobre o Rio de Janeiro…

 

Hamilton Garcia — Do socialismo cientítico ao socialismo mítico

 

 

O título principal do artigo é uma referência ao texto do revolucionário socialista russo Vladimir Lênin escrito em 1897, onde ele, à semelhança de Marx e Engels n’A Ideologia Alemã (1846), procurava situar a luta socialista nos marcos do realismo empírico (socialismo científico) ou seja, da modernidade fundada, a duras penas, nas révolutions citoyens dos séculos anteriores – em oposição ao idealismo romântico (socialismo utópico) predominante na esquerda da época.

Se no trabalho de Marx&Engels[1] o foco era o idealismo crítico da esquerda alemã, que acreditava ser possível combater “o mundo real lutando contra a ‘fraseologia’ do mundo”, numa “luta filosófica contra as sombras da realidade” — de novo em voga no séc. XXI —, no de Lênin[2] o alvo é a crítica populista ao capitalismo, que se transformara em repulsa ao desenvolvimento e apologia à comunidade rural originária russa.

Enquanto nossos autores alemães[3] refutavam seus filósofos por não terem se lembrado “de procurar a conexão da filosofia alemã com a realidade alemã, a conexão de sua crítica com o seu próprio ambiente material”, nosso russo[4] condenava os populistas por ignorarem as mudanças causadas pelo capitalismo na realidade rural da Rússia, mantendo uma visão romântica do campo e, assim, fazendo “o jogo da estagnação e de toda a sorte de asiatismos” ao comparar “sempre a realidade do capitalismo com a ficção do regime pré-capitalista”, daí concluindo pela superioridade do segundo — como, amiúde, fazemos com relação aos povos naturais e às populações vulneráveis.

O que animava a corrente realista da esquerda, desde o Manifesto Comunista (1848), era a ideia de que “(…) não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais; (…) não é possível abolir a escravatura sem a máquina a vapor e a mule-jenny (fiação automática), nem a servidão sem uma agricultura aperfeiçoada (…). A ‘libertação’ é um fato histórico, não um fato intelectual, e é efetuada por condições históricas, pelo nível da indústria, do comércio, da agricultura”[5].

Deriva disso que a revolução socialista só poderia ser obra de uma sociedade evoluída, onde a divisão do trabalho estivesse suficientemente avançada, o acúmulo de riqueza e cultura elevado e a forma de existência há muito tenha deixado de ser local. Do contrário, diziam nossos alemães, “só a penúria se generaliza, e (…) a miséria recomeçará a luta pelo necessário e se cairá de novo na imundície anterior”[6].

Foi precisamente a não observância desse limite real à mudança social (revolução), levando longe demais a ideia de “revolucionar o mundo existente”[7], que levou o socialismo racional ao colapso. Se na Comuna de Paris (1871), Marx apoiara os trabalhadores por se tratar de um gesto extremo numa situação extrema — sabendo da impossibilidade de qualquer socialismo naquelas condições —, Lênin, ao provar a possibilidade (e necessidade) da revolução popular na Rússia (outubro de 1917) para garantir qualquer progresso democrático ao país, creu ser possível, por isso mesmo, estender o poder popular à esfera econômica sem maiores considerações acerca da capacidade da classe trabalhadora — já em pleno taylorismo — em gerir adequadamente as modernas empresas, com as desastrosas consequências sabidas, entre elas: a guerra civil, o colapso da produção industrial e agrícola, e a consequente anomia social que levou à hipertrofia do Estado e à supressão das liberdades públicas.

Desde então, já sob o stalinismo — que foi a reação da nomenklatura soviética à tentativa de Lênin, com a NEP, de reverter a tragédia —, o racionalismo socialista foi posto a serviço da mais perversa das formas idealistas de todos os tempos: o marxismo-leninismo, uma espécie de super-Leviatã despótico à serviço da utopia comunista(!); capaz de fazer bula rasa de qualquer abordagem empírica honesta e, pior, usando, para tal, os maiores inimigos da utopia (Marx, Engels e Lênin), em nome dos quais — com o uso arbitrário e abusivo de seus textos, transformados em sagrados — se constituiu a mais fantástica máquina de narrativas fraudulentas da história, à guisa de redenção revolucionária, representada por um jornal chamado Pravda (Verdade).

Iludem-se os que pensam que este cruel processo degenerativo do socialismo-científico, transmutado em socialismo-mítico, tenha se esgotado junto com seu mais célebre protagonista (Stálin) ou sua mais iminente criatura (PCUS). Na verdade, seu ocaso inaugurou uma nova era de mistificações na esquerda, agora não mais sob a roupagem do comunismo, mas do humanitarismo, que, aditivado pelas interpelações pós-modernas de matiz norteamericana (identidades, lugares de fala, etc.), nos levam, sem mais mediações, da razão à emoção e, dependendo do contexto, à comoção, num agir comunicativo que não só prescinde da análise histórica rigorosa e da própria ciência natural, como exige seu abandono em nome de um novo puritanismo ético, de caráter laico-utópico, muito mais amplo e persuasivo do que o comunismo.

É impossível separar o homem de sua natureza histórica e de sua história natural — natureza esta que é a base de sua própria existência —, já haviam nos ensinado os alemães[8], mas a “nova esquerda” não se contentou em suplantá-los — aniquilando, por tabela, o legado de Morgan e Darwin —, libertando também a própria ideia humanitária de qualquer determinação complexa para torná-la apanágio exclusivo de uma “vontade política” personificável.

Não é por outro motivo que complexas antinomias se transformaram em simples paradoxos na verve de lideranças prestidigitadoras, capazes de, em frases curtas e penetrantes ao nível do subconsciente, ressignificar a conexão entre economia e política de modo a possibilitar a mais ampla e discricionária liberdade da última sobre a primeira — maximizando o pecado original leninista.

“Se, ao final de meu mandato, cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida”[9], disse LILS, a maior liderança política da esquerda desde a redemocratização, ao tomar posse, em 2002, sem maiores preocupações com o fato de que o capitalismo brasileiro havia sido capturado pela “doença holandesa” (rentismo) e que a realização deste sonho — mais do que justo, inadiável — não seria sustentável sem reformas econômicas que visassem, mais que o consumo das famílias — perspectiva de curtíssimo-prazo dos liberistas —, os investimentos produtivos capazes de criar empregos e produtos, além de reformas políticas que pusessem fim ao domínio neopatrimonial sobre o Estado, que junto com o setor financeiro se constituem em verdadeiros “devoradores de mais-valia”[10] ou, em outras palavras, parasitas dos excedentes produtivos que deveriam sustentar a economia pública e privada de todos.

 

[1] A Ideologia Alemã – crítica da filosofia alemã mais recente nos seus representantes Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner e do Socialismo Alemão nos seus diferentes profetas, ed. Centauro/SP, 2006, pp. 11-12, 15.

[2] ¿A Que Herencia Renunciamos?, in. Obras Escogidas Vol.1, ed. Progreso/Moscú, 1979, passim.

[3] Op. cit. p. 15.

[4] Op. cit. pp. 96-97.

[5] A Ideologia Alemã, p. 29, grifo meu.

[6] id. p. 45, grifo meu.

[7] Id. p. 31.

[8] Id., pp. 32-33.

[9] Luís Inácio da SIlva, apud. Bernardino Furtado e Ronald Freitas, Cruzada Contra a Fome, in. <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT432696-1659,00.html>, edição 233 de 04/11/02, em 20/07/18.

[10] Gramsci, apud. Giuseppe Vacca, Modernidades Alternativas – o século XX de Antônio Gramsci, ed. FAP-Contraponto/DF-RJ, 2016, p.190.