Guilherme Carvalhal — Heteronímia

 

 

Em uma antiga civilização, um profeta anunciou o novo ordenamento das divindades para que sempre que um homem ou uma mulher morresse, todos aqueles com o mesmo nome, independentemente do status social, mudassem de nome. O nome do falecido jamais seria repetido e ele se tornaria único na morada celeste, justificava o portador da tábua com o mandamento.

Nos primeiros meses da implementação dessa norma pouca coisa se alterou. Morria alguém e os xarás passavam pelo inconveniente de alterar seu registro civil e demais documentos. Aqueles que não enfrentavam esse infortúnio davam risadas quando morria um Quased e todos os Quased precisavam procurar o tabelião para se adequar.

Com o passar dos anos, o peso dessa regra se agravou. Algumas pessoas mudavam várias vezes de nome ao longo da vida e isso atrapalhava o sistema de correios e de cobrança bancária. Provar ser dono de um imóvel e outras demandas judiciais se tornaram confusas em decorrência dessa alteração contínua de contratos e documentos. Os cartórios mesmo encontraram dificuldade para colocar em ordem sua papelada.

No âmbito do convívio social também se notaram rachaduras. Conhecidos que não se viam há tempos muitas vezes caíam em saias justas por não saberem o nome uns dos outros. Houve um caso de um casamento em que os convites foram enviados e o noivo precisou trocar de nome antes da cerimônia, causando forte mal-estar.

Paulatinamente, a quantidade de nomes disponíveis no idioma desse povo foi se esgotando e precisaram adotar os de outros países e até mesmo inventar. Como consequência, o tecido social se converteu em uma intrincada teia de sílabas e fonemas antes inexistentes. Lembrar a identidade do outro se tornou mais difícil diante da capilaridade e a busca por novos nomes acabou criando influências diversas no falar, como na introdução de palavras e expressões exóticas.

Esse processo desencadeou na ininterrupta quebra de laços entre as pessoas. Conflitos aos poucos se tornaram mais comuns e a violência tomou conta das cidades. O não reconhecer uns aos outros levou à barbárie e desencadeou em uma sangrenta guerra civil que conduziu toda essa civilização ao colapso.

Séculos depois, os arqueólogos se empenham em descobrir como um povo portador de uma cultura tão complexa e sofisticada conseguiu sucumbir por conta própria. E mal imaginam os sacerdotes dando risadas quanto ao seu poder de definir os destinos da humanidade envergando as palavras dos deuses.

 

Ciro ofende e ameaça promotora que o processou por injúria racial

 

Na noite de ontem, Ciro Gomes (PDT) chamou de “um filho da puta desses” o promotor de São Paulo que o processou por injúria racial. Na declaração feita durante a sabatina da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), o presidenciável foi além: “Ele que cuide de gastar o restinho das atribuições dele, porque se eu for presidente essa mamata vai acabar”.

 

 

O processo foi movido pelo Ministério Público paulista por conta de uma declaração dada por Ciro em abril, numa entrevista à rádio Jovem Pan. Na ocasião, ao falar da possibilidade de uma aliança sua com o DEM, ele se referiu ao histriônico líder do Movimento Brasil Livre (MBL) e vereador paulistano Fernando Holiday (DEM), que é negro, como “capitãozinho do mato”.

Certamente, o novo destempero de Ciro foi de encontro aos eleitores de esquerda, ressentidos com a operação Lava Jato, que já colocam o pedetista como terceiro colocado em todas as pesquisas nos cenários sem Lula. Mas como a Lava Jato conta com o apoio de cerca de 90% da população brasileira, a incontinência verbal do político cearense parece ter pouca chance de conquistar votos para além dos já convertidos.

Ciro já ficou fora do 2º turno da eleição presidencial de 2002, após declarar que o principal papel da sua então esposa, a atriz Patrícia Pillar, era “dormir” com ele. Depois, em março de 2016, se envolveu num bate-boca em frente ao prédio do seu irmão. Visivelmente alterado, ele chegou a confrontar e ameaçar fisicamente manifestantes — “amanhã, vem um e dá um tiro na sua cabeça, filho da puta!” —, além de se referir a Lula como: “um merda!”.

 

 

Agora, processado por outra declaração infeliz, Ciro ofendeu e ameaçou institucionalmente um membro do Ministério Público. Com o nome preservado, foi revelado hoje que se trata de uma mulher.

O maior promotor de acusação contra Ciro é ele mesmo. E sua boca grande. Fosse peixe, no lugar de presidenciável, dificilmente passaria da fase de alevino.

 

Morre no Rio o jornalista de Campos Joca Muylaert

 

Jornalista Joca Muylaert entre as rosas das ruínas de Atafona (Foto: Facebook)

 

Acabou de falecer no Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, o jornalista Jorge Luís Muylaert, o Joca. Ele tinha 60 anos e estava internado desde 28 de janeiro, para tratamento de leucemia. Devido a complicações pulmonares e renais, ele foi para o CTI do hospital, onde estava desde sexta (13), e faleceu nesta tarde. Joca deixa seis filhos e um neto. O velório será a partir das 8h desta quarta, no Campo da Paz, onde o corpo será sepultado às 16h.

Joca era bastante conhecido na cidade não apenas como jornalista, ofício que exercia muito antes de se formar na Faculdade de Filosofia, em 2002. Como militante político, a partir da reabertura democrática no Brasil, ele foi um dos fundadores do PSDB de Campos no final dos anos 1980. Depois, comandou durante alguns anos o PV no município e foi coordenador do partido na região.

Com militância ativa também no cenário cultural de Campos, Joca foi poeta vencedor do FestCampos de Poesia Falada. Ele também foi diretor da Casa de Cultura Villa Maria, nos anos 1990, ainda no processo de implantação e consolidação da Uenf. Ciente das questões de diversidade que só se tornariam pautas da moda alguns anos depois, um dos destaques da sua administração foi a instalação do Centro de Referência da Cultura Afro-Brasileira (CCAB) na Villa.

Como autor, Joca publicou um único livro: “O Beija Flor Amigo”, lançado em 2002. Pai amoroso de meia dúzia de filhos, dedicou a obra à literatura infantil. No governo Alexandre Mocaiber, ele foi ainda diretor da Biblioteca de Campos durante a gestão da produtora Luciana Portinho na Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL).

Jornalista, poeta, irreverente e contestador por natureza, Joca também foi um boêmio conhecido na noite goitacá. Pelo menos na última década, seu ponto mais frequente era a saudosa Toca dos Amigos, na rua Pero de Góis, que fazia quase de segunda casa. Ele era muito amigo do proprietário, Roberto Alves da Costa. O falecimento deste (aqui), em 9 de abril deste ano, deixou o cliente e amigo, já internado no Inca, profundamente triste.

Elevada pelo encantamento dos seus personagens mais ilustres, a Toca dos Amigos agora é outra. Com uma cerveja estupidamente gelada, é de lá que Joca e Roberto erguerão seus copos de botequim, com choro do santo derramado em chuva, para justificar os que agora são apenas saudade.

 

Leia a cobertura completa na edição desta quarta (18) da Folha da Manhã

 

Encruzilhada Trump/Putin e o despacho da direita e da esquerda

 

(Foto: Kevin Lamarque/ Reuters)

 

A esquerda brasileira odeia o Trump e relativiza o Putin. A direita brasileira se referencia no Trump e finge que ele não deve sua eleição ao Putin. Em coletiva após encontro de cúpula em Helsinque, na segunda-feira (16), Trump desautoriza o serviço de inteligência do próprio país e não se constrange em ser o moleque de recados do Putin.

Conclusão? No tabuleiro geopolítico da Terra, direita e esquerda brasileiras têm a relevância de um despacho na encruzilhada dos peões.

 

Copa da Rússia, contas de Rosinha e impeachment de Crivella em debate

 

Na noite de ontem (15), não pude ficar até o final da sexta edição do 4 em Linha. Mantido por Igor Franco, Gustavo Alejandro Oviedo e Alexandre Buchaul, o debate girou em torno da final da Copa da Rússia, da votação das contas de Rosinha Garotinho (Patri) na Câmara Municipal e da tentativa de impeachment do prefeito carioca Marcelo Crivella (PRB). Se você não assistiu à live no Facebook, ou se viu e quiser rever, confira abaixo:

 

 

Igor Franco — Royal Straight Flush

 

 

No domingo passado, enquanto o país digeria a dolorosa derrota para a Bélgica na já finada Copa da Rússia de 2018, surgiu uma notícia com toda cara de fake news: Lula livre.

A partir da decisão de um desembargador plantonista que posteriormente se descobriria ser um antigo militante petista, a ordem de soltura do presidente foi despachada para que a Polícia Federal a cumprissem em caráter de urgência. Segundo o desembargador Rogério Favreto, havia um fato novo no pedido: a pré-candidatura de Lula. Até o momento, não foi respondida a pergunta sobre onde estaria o desembargador nos últimos dois anos, enquanto o ex-presidente anunciava a quem não perguntasse sua intenção de se candidatar ao Planalto.

Segundo o despacho, o preso mais ilustre e reverenciado do país deveria ser solto de imediato e estaria, inclusive, liberado do exame de corpo de delito — trâmite normal para qualquer movimentação de entrada e saída do sistema penitenciário.

Os autores do pedido de habeas corpus, os deputados Paulo Pimenta, Paulo Texeira e Wadih Damous, todos do PT, pareciam ter tirado a sorte danada: o pedido de soltura foi protocolado apenas meia hora após o início do plantão do desembargador Rogério Favreto. O desembargador, embora tivesse militado por 20 anos no partido dos deputados, tivesse sido nomeado nos governos Lula e Dilma em cargos de confiança e embora também tivesse sido alçado a desembargador pela ex-presidente, não se sentiu pressionado a declarar suspeição. Numa dessas coincidências que só acometem aos petistas, a chegada dos deputados Wadih Damous e Paulo Pimenta à carceragem da Polícia Federal de Curitiba se deu trinta e cinco minutos antes da publicação no site do TRF4 da esdrúxula decisão de soltar Lula. Obviamente, como coincidência não havia no fato do sítio atribuído a Lula possuir pedalinhos com nomes de seus netos, também nesse caso os pontos não foram dados sem nós.

Os deputados petistas executaram um plano ousado e com potencial explosivo no cenário político do país. Peticionar especificamente a um desembargador companheiro, durante o recesso forense, em meio à Copa do Mundo sugando as atenções gerais e, principalmente, durante as férias do incansável e antagonista juiz de primeira instância que havia conduzido o processo era um plano fenomenal. Conseguida a libertação de Lula, uma nova prisão demandaria um motivo muito forte e um desgaste ainda maior das autoridades, considerado todo o tumulto do primeiro encarceramento. Um Lula livre e capaz de articular alianças, gravar vídeos e entrevistas — ainda que em domicílio — subverteria totalmente a já confusa corrida eleitoral, abalaria os mercados e tornaria plausível a hipótese de uma chicana jurídica capaz de habilitá-lo à eleição — hipótese, hoje, tão desejada quanto difícil de ser executada com um ex-presidente preso.

Ecoando as palavras do colega de espaço Alexandre Buchaul, com quem o presente artigo dialoga, o mais esperto e maior político do país lançou uma jogada fulminante para subverter o cenário atual. O lance, porém, não contava, mais uma vez com a carta na manga do juiz Sérgio Moro. Mesmo de férias, o magistrado desafiou a ordem do desembargador Favreto e conseguiu retardar o cumprimento da ordem até que o relator do caso — desembargador Gebran Neto — se pronunciasse e obtivesse o respaldo do presidente do Tribunal.

A ousadia de Moro despertou a ira dos petistas que já comemoravam nas redes sociais e fez ruir o maquiavélico plano. A repercussão do imbróglio, embora possa favorecer politicamente o ex-presidente, jogou holofotes sobre a estratégia petista de escapar do caminho institucional tradicional para buscar a libertação do chefe — o que, em última instância (literalmente) — pode ter acabado por sepultar qualquer chance de uma reviravolta.

Se é possível dizer que Lula jamais enfrentou nas urnas um adversário que fizesse frente à sua habilidade política, é inegável reconhecer que, ao longo da Lava Jato, Sérgio Moro esteve sempre uma rodada à frente do petista.

Sorte do Brasil.

 

Blog elege seleção, técnico, craque, melhor jogo e gol mais belo da Copa da Rússia

 

Como disse o ténico da Inglaterra, Gareth Southgate, “foi uma aventura fantástica” Finda ontem (15) a Copa da Rússia, é hora de voltar o mundo normal e lidar com a crise de abstinência. Antes, o blog se despede elegendo sua seleção, o técnico, o craque, o jogo e o gol mais belos, entre as 32 seleções nacionais que se enfrentaram durante os últimos 32 dias, no maior evento esportivo da Terra. Enquanto Qatar 2022 não vem, vamos nós a eles:

 

Goleiro: Thibaut Courtois (Bélgica)

 

Lateral-direito: Thomas Meunier (Bélgica)

 

Zagueiro: Thiago Silva (Brasil)

 

Zagueiro: Domagoj Vida (Croácia)

 

Lateral-esquerdo: Lucas Hernández (França)

 

Volante: N’Golo Kanté (França)

 

Meia: Paul Pogba (França)

 

Meia: Luka Modric (Croácia)

 

Meia: Eden Hazard (Bélgica)

 

Atacante: Kylian Mbappé (França)

 

Atacante: Edinson Cavani (Uruguai)

 

 

Técnico: espanhol Roberto Martínez (Bélgica)

 

 

Craque: Luka Modric (Croácia)

 

 

Melhor jogo: França 4×3 Argentina (30/06)

 

 

Gol mais bonito: Lionel Messi, primeiro do Argentina 2×1 Nigéria (26/06)

 

 

Confira aquiaqui, aqui e aqui, respectivamente, as seleções, os técnicos, os craques, os melhores jogos e os gols mais bonitos da fase de grupos, das oitavas, quartas e semifinais.

 

Time mais eficiente da Copa, França é campeã com erros de arbitragem

 

Mbappé comemora seu terceiro gol, quarto da campeã França sobra a Croácia, primeiro a ser marcado por um jogador com menos de 20 anos numa decisão de Copa, desde Pelé (Foto: Reuters)

 

O placar de 4 a 2 na a final da Copa da Rússia, vencida pela França, sinaliza ao futebol mais ofensivo do passado. Inclusive pelo fato de que o jovem Mbappé, autor do terceiro gol francês, foi o único jogador com menos de 20 anos, depois de Pelé, a marcar numa decisão de Mundial. Mas quem ganhou foi a seleção mais eficiente, não a de melhor futebol. E, mesmo nos tempos do VAR, o que definiu a partida foram dois erros do árbitro argentino Néstor Pestana, nos dois primeiros gols da França, respectivamente em falta e pênali inexistentes.

A Croácia começou melhor o jogo, marcando sob pressão no campo adversário e explorando as jogadas sobre os bons, mas jovens e inexperientes laterais franceses. Até que se deu o primeiro erro capital do juiz argentino, tão atabalhoado na final quanto a seleção do seu país na Copa. Aos 17’, à esquerda da área croata, o atacante Griezmann se jogou num lance em que não foi tocado pelo volante Brozovic. Assim mesmo, a falta foi marcada. O próprio Griezmann bateu a bola dentro da área, tocada de cabeça por Mandzukic contra seu própio gol.

Como em todos os jogos da fase eliminatória, em que saiu atrás no placar, a Croácia não se intimidou. Aos 27’, após uma cobrança de falta de Modric pela direita, a bola ficou viva dentro da área, até que o zagueiro Vida a ajeitou para Perisic. Ele dominou, driblou Kanté e bateu de canhota para empatar.

Quando o equilíbrio foi alcançado no placar, coube novamente ao árbitro Pestana desempatar em outro lance polêmico. Aos 39’, após uma cobrança de escanteio pela direita, o meia Matuidi furou a cabeçada e a bola, involuntariamente, foi desviada pelo braço de Perisic. Apesar das reclamações dos franceses, o juiz não marcou nada, até ser alertado pelo fone de ouvido. Ele conferiu o lance na tela ao VAR, ao lado do campo, e mesmo claramente em dúvida — saiu e voltou para olhar de novo — decidiu marcar o pênalti, bem cobrado por Griezmann.

Com a desvantagem no placar, a Croácia se mandou à frente,  tão logo se deu o segundo tempo. E se expôs aos contra-ataques. Num deles, brilhou o talento de Pogba. Aos 13’, da sua intermediária, ele acionou o veloz Mbappé na direita, que chegou à ponta e cruzou a Griezmann. Marcado, ele rolou a Pogba, que tinha corrido até a entrada da área, para concluir a jogada que iniciou. O clássico meia bateu de direita, a bola rebateu na zaga e voltou para ele chapar de pé canhoto, à direita do gol.

Time experiente e acostumado às adversidades, a Croácia sentiu o golpe. E passou a oferecer ainda mais espaços em seu campo defensivo. Aos 19’, após uma boa arrancada do lateral-esquerdo Hernández, Mbappé bateu de fora da área e entrou para a história numa bola defensável, mas aceita pelo goleiro Subasic.

Quando tudo parecia definido, a conhecida arrogância francesa pregou uma peça. Em bola fácil atrasada pelo zagueiro Umtiti, aos 23’, o goleiro Lloris tentou driblar Mandzukic diante do seu gol. E pagou pelo erro, mas não o suficiente para alterar o resultado final: França 4×2 Croácia

Após o jogo, Griezmann foi eleito o melhor jogador da partida. Mbappé recebeu o prêmio de melhor jogador jovem do Mundial. Com igual justiça, ainda que não tenha brilhado na final, Modric foi escolhido melhor jogador da Copa.

Campeão pela França como jogador em 1998, quando levantou a taça dentro de casa, na condição de capitão daquele grande time, Deschamps hoje foi campeão novamente como técnico. Igualou a façanha do alemão Beckenbauer e do brasileiro Zagallo. Mas superou a ambos no caráter histórico da conquista: ser vencedor na Rússia que derrotou Napoleão.

E depois choveu a balde em Moscou.