Agora é oficial: Joe Biden é o próximo presidente dos EUA. Com a virada na Geórgia, estado tradicionalmente republicano, o democrata chega a 280 delegados, 10 a mais que os 270 necessários para determinar o ocupante da Casa Branca a partir de 20 de janeiro. Antes, deve ampliar a vantagem se confirmar os outros 20 delegados da Pensilvânia, mais os 6 de Nevada, somando os 306 de uma vitória incontestável. Donald Trump, que denunciava “fraude” bem antes das urnas de 3 de novembro, sem apresentar uma única prova, voltou a dizer hoje que vai recorrer à Suprema Corte da derrota no complexo sistema do colégio eleitoral. Como é o mesmo que lhe permitiu levar a presidência dos EUA em 2016, mesmo com 2,8 milhões de votos populares a menos que Hillary Clinton, Trump exerce quatro anos depois o famoso jus esperniandi (“direito de espernear”).
Na noite de ontem, Trump usou seus últimos dias na Casa Branca para chamar de “fraude” sua ordem de despejo emitida pela vontade popular. E teve a transmissão do seu pronunciamento interrompida pelos principais canais de TV do seu país, no que deve servir de “novo normal” à mídia do mundo com outros governantes sem pudor de mentir descaradamente. Desde que promulgaram sua única Constituição em 1787, foi a primeira vez em 233 anos que os EUA viram seu presidente atacar sua própria democracia. O atual mandatário republicano foi condenado publicamente por ex-procuradores de governos republicanos, deputados e senadores republicanos. O motivo da “fraude”? Os votos pelos correios, autorizados pela Suprema Corte e prática do país desde a Guerra de Secessão (1861/1865).
Ao Brasil, cujo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se prestou a ecoar publicamente as denúncias de “fraude” do seu “mito”, restam duas alternativas. Ou acerta o passo em sua política externa e na proteção ao meio ambiente, demitindo os ministros olavistas Ernesto Araújo e Ricardo Salles, ou o país se tornará um pária mundial. Sem Trump, sobraram ao capitão a interlocução com a extrema-direita no poder apenas na Hungria de Viktor Órban e na Polônia, de Andrzej Duda. E, em termos de relações comerciais, as duas pequenas nações do Leste da Europa representam ao Brasil pouco ou quase nada.
Apesar da derrota, ninguém com isenção pode ignorar: Trump foi o eixo no qual girou essa eleição presidencial. Que ele perdeu para a pandemia da Covid-19 e suas graves consequências econômicas, como o desemprego galopante nos EUA, não para Biden. Ainda assim, o eleitor estadunidense branco, de pouca instrução e classe média baixa compareceu em massa para votar na reeleição do seu presidente. Que só não conseguiu levar por conta da perda em estados que acabaram sendo decisivos, como Arizona, Winsconsin, Michigan, Geórgia, Pensilvânia e Nevada. Mas basta olhar o mapa da votação para constatar o país que saiu visceralmente dividido das urnas.
A tarefa de suturar a ferida aberta caberá a Biden, político moderado em seus 47 anos de vida pública, acusado de “socialista” em delírio coletivo que agora terá que despertar à realidade com a cara ardendo pelo tapa. O novo presidente dos EUA não é um orador brilhante como Barack Obama, de quem foi vice por oito anos, nem um comunicador histriônico, mas talentoso, como Trump. Joe Biden é um homem normal que, não por acaso, é chamado nos EUA de “regular Joe”. Mas a quem a História legou a responsabilidade de determinar o futuro do seu país e do mundo. E terá que fazê-lo talvez sem poder atender a contento a juventude que tomou as ruas do mundo no Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”).
“O homem é ele e suas circunstâncias”, ressalvava o filósofo espanhol Ortega y Gasset. E as circunstâncias do homem normal, que assumirá a mais longeva democracia representativa do mundo, são enormes. Aparentam também estranhas coincidências. Após conquistar a vaga para disputar a presidência na maior virada da história das primárias do Partido Democrata, contra o socialista de fato Bernie Sanders, Biden chega ao poder após virar a apuração que, até o dia seguinte à eleição, indicava a vitória de Trump. Com a derrota deste, o Partido Republicano, que deu aos EUA a referência presidencial de um Abraham Lincoln, terá que se reinventar para além do trumpismo.
Para não fragmentar ainda mais seu país, Biden terá que buscar o equilíbrio de quem caminha sobre o fio da navalha. Onde é sempre fácil cair, ou cortar o pé. Ainda assim, suas promessas de campanha são ousadas: enfrentar a segunda onda da Covid onde ela tirou o maior número de vidas humanas no planeta Terra, revitalizar o Obama Care dilapidado por Trump em um país sem SUS, taxar as grandes fortunas para bancar a assistência social aos mais pobres e impor um salário mínimo aos EUA de US$ 15 por hora. E o democrata será tão cobrado para implementá-las, quanto se não surtirem o efeito desejado.
A democracia foi inventada na Grécia Antiga, com as reformas de Sólon na cidade-estado de Atenas, por volta de 590 a.C. Funcionaria depois na República de Roma, antes do maior poder da Antiguidade se tornar o Império Romano. O sistema de governo que significa “poder do povo” só seria resgatado, mais de mil e setecentos anos depois, com a invenção da democracia representativa pelo Iluminismo, no séc. 18. E sua primeira experiência no mundo foi justamente no regime fundado pela Revolução Americana, para unir 13 ex-colônias britânicas que se tornaram independentes à bala. E que, sob a mesma Constituição, hoje somam os 50 estados que deram a vitória a Biden no mesmo sistema do colégio eleitoral que fez George Washington seu primeiro presidente, em 1789.
De lá para cá, não são poucos os analistas que consideraram a derrota de Trump, mais que a vitória de Biden, como a sobrevivência da própria democracia. Foi um teste ultrapassado não só pelos EUA, mas pelo mundo que não enxerga na ditadura da China, apesar da sua pujança econômica, uma opção política aceitável. Algo quase se quebrou neste mundo, na sua nação ainda mais importante. O vitral resultante terá suas cores reveladas pela luz do sol do amanhã. Hoje, as sombras perderam.
Quem quiser saber como os destinos dos EUA e do mundo foram definidos, desde as convenções democrata e republicana, passando pelos debates até a eleição presidencial e sua apuração, pode ler ou reler aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Para quem quiser saber um pouco mais desses tais de americanos, e sobre a nossa relação com eles enquanto brasileiros, seguem abaixo valiosas lições na poesia de Caetano:
Americanos
Americanos pobres na noite da Louisiana
Turistas ingleses assaltados em Copacabana
Os pivetes ainda pensam que eles eram americanos
Turistas espanhóis presos no Aterro do Flamengo
Por engano
Americanos ricos já não passeiam por Havana
Veados americanos trazem o vírus da Aids
Para o Rio no carnaval
Veados organizados de São Francisco conseguem
Controlar a propagação do mal
Só um genocida em potencial
— de batina, de gravata ou de avental —
Pode fingir que não vê que os veados
— tendo sido o grupo vítima preferencial —
Estão na situação de liderar o movimento
Para deter a disseminação do HIV
Americanos são muito estatísticos
Têm gestos nítidos e sorrisos límpidos
Olhos de brilho penetrante que vão fundo
No que olham, mas não no próprio fundo
Os americanos representam grande parte
Da alegria existente neste mundo
Para os americanos branco é branco, preto é preto
— E a mulata não é a tal —
Bicha é bicha, macho é macho
Mulher é mulher e dinheiro é dinheiro
E assim ganham-se, barganham-se, perdem-se
Concedem-se, conquistam-se direitos
Enquanto aqui embaixo a indefinição é o regime
E dançamos com uma graça
Cujo segredo nem eu mesmo sei
Entre a delícia e a desgraça
Entre o monstruoso e o sublime
Americanos não são americanos
São os velhos homens humanos
Chegando, passando, atravessando
São tipicamente americanos
Americanos sentem que algo se perdeu
Algo se quebrou, está se quebrando