Brasil de Bolsonaro, Rússia de Putin e Hungria entre Orbán e Puskás

 

Jair Bolsonaro com os autocratas Vladimir Putin, na Rússia, e Viktor Orbán, na Hungria do craque Ferenc Puskás (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

— E Bolsonaro na Rússia de Putin e na Hungria de Orbán? — abriu os trabalhos Paulo, antes de molhar a palavra com um gole de Original gelada, na mesa do boteco.

— Foi tentar espelhar Lula na Alemanha, na França, na Espanha e no Parlamento Europeu, na Bélgica, em novembro do ano passado — lembrou Aníbal, garganta já umedecida pela cerveja.

Lula em suas visitas de novembro à Alemanha do chanceler Olaf Scholz, à França do presidente Emmanuel Macron e à Espanha do primeiro-ministro Pedro Sánchez (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

— Mas tem duas diferenças básicas. A primeira, Bolsonaro ainda é chefe de Estado. Lula, embora recebido como se fosse, já não é há mais de uma década. Além do que, Alemanha, França e Espanha são democracias. A Rússia e a Hungria, não.

— A Rússia é um caso à parte. Enclave europeu na Ásia, na mistura de povos eslavos com os vikings e os mongóis na Idade Média, saiu da ditadura czarista para a comunista, com a Revolução de 1917. O breve período deles de democracia, nos anos 1990, se deu com a derrama dos oligarcas assumindo os serviços do Estado. E Boris Yeltsin humilhando o país aos olhos do mundo, em suas constantes aparições completamente bêbado. Assim como suas Forças Armadas, temidas durante a II Guerra Mundial e a Guerra Fria, foram humilhadas na república separatista da Chechênia. Tanto que, ao assumir a Rússia no início do milênio, após servir à comunista União Soviética como agente da KGB, Putin logo tratou de colocar alguns oligarcas não alinhados na cadeia e ir às forras na Chechênia.

— É um bom resumo da ópera de Tchaikovsky. Mas você não está defendendo o Putin, está?

— Vladimir Putin é um canalha amoral, capaz de matar envenenados dissidentes russos até na Inglaterra. Mas é também uma águia da geopolítica. Nos 22 anos da sua ditadura mal disfarçada na Rússia, reafirmou o poder do país na Europa, que não passa de um promontório da Ásia. A única líder europeia capaz de lhe fazer frente durante esse tempo foi Angela Merkel, que não comanda mais a Alemanha. Mas nem ela foi capaz de achar alternativa ao dilema: se Putin fechar o gasoduto da Rússia que aquece a Europa durante o inverno rigoroso deles, os demais europeus teriam que queimar lenha para não morrerem de frio.

— E essa celeuma com a Ucrânia?

— A Ucrânia está para a Rússia como a Bahia ao Brasil. Foi lá que tudo começou. Putin está certo ao cobrar a palavra empenhada em 1990, em nome dos EUA, pelo seu então secretário de Estado, James Baker, do governo George Bush pai. A promessa era de que a Otan não avançaria sobre o Leste Europeu, na área de influência da União Soviética, comandada à época por Mikhail Gorbatchov. Assim como a Ucrânia, ex-república soviética independente há mais de 30 anos, está certa ao querer fazer valer a vontade da maioria da sua população, que deseja a entrada do país na Otan. Para ficar mais próxima das democracias europeias do que das ditaduras de Putin na Rússia, ou do seu aliado Aleksandr Lukashenko, na Bielorrússia. Sem paixões, os dois lados têm as suas razões.

— A Otan é um restolho da Guerra Fria, para selar a aliança militar dos EUA com a Europa Ocidental, após a II Guerra, e tentar conter a expansão comunista da União Soviética. Com o fim desta, desde 1991, a Otan talvez tenha perdido o sentido de existir.

— A Otan, como o Pacto de Varsóvia feito pela União Soviética em resposta, têm o mesmo princípio da jihad islâmica. Em árabe, jihad significa “esforço”, não “guerra santa”, como volta e meia é mal traduzido. Parte do pressuposto de que se eu sou muçulmano e tenho dois vizinhos, você, que também é muçulmano, e outro que não é, se este o agredir, eu tenho obrigação de me aliar a você contra ele. É o mesmo princípio da sororidade feminina.

— Só que, vou repetir: a União Soviética, o Pacto de Varsóvia e a ameaça comunista não existem há mais de 30 anos.

— Só não pode contar isso aos bolsonaristas, pois acordar sonâmbulo é sempre perigoso. Mas, sim, a ameaça à hegemonia dos EUA vem muito mais da pujança econômica do capitalismo de estado da China do que do arsenal nuclear da Rússia. Putin ameaça mais o Ocidente com sua guerra cibernética, que em 2016 ajudou a eleger Donald Trump presidente dos EUA e a Grã-Bretanha a sair da União Europeia com o Brexit, do que com o poder dos seus exércitos.

— Sim, por isso o Carluxo foi junto. Foi afinar contato com os hackers russos e com o Telegram para a eleição de outubro. Mas e o papai chamando Viktor Orbán de “irmão”?

 

Vereador carioca e gerente do “gabinete do ódio” do pai presidente, o que Carlos Bolsonaro foi fazer na Rússia? (Foto: Reprodução da CNN)

 

— Orbán é na Hungria o que Bolsonaro queria ser, no Brasil. E não conseguiu por conta da reação das nossas instituições democráticas. Contra o Congresso, o capitão arregou. No lugar de enfrentá-lo, preferiu comprá-lo com os bilhões do Orçamento Secreto, para fazer do Mensalão do PT uma gorjeta e refazer seus laços desde sempre com o Centrão. O mesmo que, na campanha de 2018, era sinônimo de “ladrão” na voz desafinada do general Augusto Heleno. O embate de Bolsonaro agora é com o Supremo e o TSE, que têm no ministro Luís Roberto Barroso um dos grandes vultos da história recente da República. Tudo para tentar emplacar a narrativa mentirosa de fraude na urna eletrônica.

 

 

— Sim, como o próprio Barroso definiu, a ladainha contra a urna eletrônica é a “repetição mambembe de Trump”, com o voto pelos Correios nos EUA. Mas os dois têm utilidade. Servem como aquele termômetro do peru de Natal, que nos EUA é mais consumido no dia de Ação de Graças: quanto mais a narrativa subir, maior será a certeza da derrota.

— A liderança isolada de Lula em todas as pesquisas também é, até aqui, uma certeza. O que não está certo, mas também é uma possibilidade, é Orbán perder as eleições legislativas da Hungria em abril, e com ela o cargo de primeiro-ministro, após 12 anos. A ver.

— Será que as coincidências entre Brasil e Hungria chegarão a tanto?

— A maior semelhança entre Brasil e Hungria está no futebol mágico que ambos praticaram nos anos 1950. O canhoto Ferenc Puskás, que hoje batiza o prêmio da Fifa ao gol mais bonito marcado no mundo todo ano, é o nosso verdadeiro irmão húngaro. Não Orbán.

 

 

— E ainda temos o romance “Budapeste”, de Chico Buarque, inspirado também na admiração dele pelo futebol de Puskás e da grande Hungria de 1954. Mas e Bolsonaro?

— Começou o governo batendo continência à bandeira dos EUA. E vai terminar após levar flores, em Moscou, ao túmulo do soldado desconhecido do comunista Exército Vermelho, morto contra o nazifascismo na II Guerra. Para depois ecoar na Hungria o lema “Deus, pátria e família” do integralismo, “repetição mambembe” do nazifascismo no Brasil dos anos 1930.

 

Bolsonaro bate continência à bandeira dos EUA em Houston, no Texas, em 16 de maio de 2019, para depois homenagear o túmulo do soldado desconhecido do comunista Exército Vermelho, em Moscou, na última quarta-feira (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

— Como, na Campos de 2022, os apoiadores do presidente colocaram outdoor com o slogan “Uma nação, um povo, um líder”, copiado de ninguém menos que Adolf Hitler.

 

Adolf Hitler e seu slogan “Ein Nation, ein Volk, ein Führer” (“Uma nação, um povo, um líder”) copiado em plena av. 28 de Março, em campanha eleitoral extemporânea e ilegal, pelos bolsonaristas de Campos dos Goytacazes (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

— Bolsonaro e o bolsonarismo são o cachorro que morde próprio rabo. E ainda não percebeu que já chegou ao cotoco — sentenciou Aníbal, antes do gole longo de cerveja e de bater o copo esvaziado sobre a mesa do botequim, como martelo de magistrado.

 

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Pré-candidato a governador, Ganime no Folha no Ar desta 6ª

 

(Arte: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

A partir das 7h da manhã desta sexta (18), quem fecha a semana do Folha no Ar, na Folha FM 98,3, é o deputado federal Paulo Ganime, pré-candidato a governador do RJ pelo Novo. Ele projetará a eleição ao Governo do Estado em outubro, suas chances e as dos seus potenciais adversários.

Ganime também analisará a pré-candidatura do cientista político Felipe d’Ávila a presidente pelo Novo. Assim como as chances da terceira via e a polarização do pleito, segundo todas as pesquisas, entre o ex-presidente Lula (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL).

Quem quiser participar ao vivo do Folha no Ar desta sexta pode fazê-lo com comentários em tempo real, no streaming do programa. Seu link será disponibilizado alguns minutos antes do início, na página da Folha FM 98,3 no Facebook.

 

Rodrigo e Caio derrotam Wladimir na disputa da Câmara

 

Marquinho Bacellar, Wladimir Garotinho, Rodrigo Bacellar e Caio Vianna na disputa pela Câmara de Campos (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

 

Câmara de Feijó a Marquinho

Desde 1993, quando o então vereador de oposição Paulo Feijó se elegeu presidente da Câmara de Campos, a eleição ontem a presidente do vereador de oposição Marquinho Bacellar (SD) foi a maior virada da política goitacá. Há 29 anos, Feijó levou por 11 a 10, com o voto decisivo de Toninho Vianna. Marquinho levou por 13 a 12, com o voto decisivo de Maycon Cruz (PSC). Este havia assinado seu compromisso pela reeleição do atual presidente Fábio Ribeiro (PSD). Que, mesmo com o poder de determinar a pauta, acabou como o maior derrotado. Junto do prefeito Wladimir Garotinho (PSD), que agora terá dois anos muito difíceis pela frente.

 

Viradas de Rodrigo

O maior vitorioso, porém, não foi Marquinho. Mas seu irmão, o deputado estadual Rodrigo Bacellar (SD), licenciado para ocupar a poderosa secretaria estadual de Governo de Cláudio Castro (PL), aliado também de Wladimir. Conhecido, mesmo entre os desafetos, pela grande capacidade de articulação nos bastidores, não é a primeira virada marcante de Rodrigo. Em maio de 2021, veículos de imprensa da capital chegaram a noticiar que ele havia perdido a disputa interna pela secretaria de Governo para o deputado Márcio Pacheco (PSC). Mas, em outra virada de última hora, o parlamentar campista ficou com a pasta.

 

Traição de Maycon Cruz revoltou Juninho Virgílio (Montagem: Elaibe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Nas costas de Maycon

Cacifado pela vitória no governo Castro, Rodrigo Bacellar daria no mês seguinte a pista pela qual acabaria por derrotar ontem o governo municipal. Em junho de 2021, como noticiou o blog Opiniões, foi uma ligação de Rodrigo que mudou na última hora o voto do vereador Maycon Cruz, impedindo a aprovação da proposta do novo Código Tributário de Wladimir. Maycon, na ocasião, negou. Embora agora seja bem mais difícil negar sua assinatura no termo de compromisso com a reeleição de Fábio. Por não cumpri-lo, o edil Juninho Virgílio (Pros) partiu para cima do colega, interrompendo a sessão de ontem e sua transmissão ao vivo.

 

“Depurados” da base, Bruno Vianna, Raphael Thuin e Fred Machado votatam em Marquinho a presidente da Câmara (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Contabilidade da derrota

Traições, mesmo sobre a própria assinatura, ocorrem na política e na vida cotidiana. Mas o governo também contribuiu na contabilidade da sua derrota. Por conta da rejeição ao Código Tributário, desde a sua proposição em maio de 2021, a situação rompeu com os vereadores Bruno Vianna (PSL), Raphael Thuin (PTB) e Fred Machado (Cidadania). Juninho Virgílio, por exemplo, foi um dos que cobraram à época a depuração da base. No lugar de ontem cobrar satisfação a Maycon, poderia estar hoje comemorando, se a base tivesse mantido os votos de Bruno, Thuin e Fred. Após serem “depurados”, os três votaram em Marquinho a presidente.

 

Rodrigo e Caio (I)

Além de Rodrigo, quem também teve papel importante para derrotar o governo municipal na eleição à presidência da Câmara foi Caio Vianna. Candidato a prefeito derrotado no segundo turno por Wladimir, secretário de Ciência e Tecnologia de Niterói, pré-candidato a deputado federal em outubro e presidente do PDT em Campos, ele trabalhou pelos votos dos vereadores pedetistas Marquinho do Transporte e Luciano Rio Lu em Marquinho a presidente. Rodrigo e Caio foram aliados no período pré-eleitoral de 2020, quando romperam. Há quem diga que, se não o tivessem feito, teriam derrotado Wladimir. Unidos ontem, deram mostra disso.

 

Rodrigo e Caio (II)  

Com a impopularidade do ex-prefeito Rafael Diniz (Cidadania), Campos saiu das urnas de 2020 dividida em três polos de poder político. Wladimir, que se elegeu prefeito; Rodrigo, eleito deputado em 2018, que ganhou em 2021 a musculatura da secretaria estadual de Governo; e Caio, que nunca se elegeu, mas é bem votado na cidade desde 2016. Na eleição da Mesa Diretora da Câmara em 2021, Wladimir chegou a fazer um acordo com Rodrigo, mas ambos romperam antes da votação. Fábio só foi eleito presidente após Wladimir costurar um novo acordo, com Caio. Neste início de 2022, contra Rodrigo e Caio, Wladimir foi derrotado.

 

Voz da experiência de Anthony Garotinho e Nildo Cardoso (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Experiência ignorada   

Em reunião no Farol, na semana passada, o ex-governador Anthony Garotinho (sem partido) teria aconselhado a só colocarem a eleição da presidência da Câmara na pauta se o governo tivesse 15 votos garantidos. O conselho da experiência foi aparentemente ignorado e Wladimir agora projeta as dificuldades que terá, como qualquer chefe de Executivo, com um Legislativo controlado pela oposição. Vereador mais experiente entre os atuais 25, Nildo Cardoso (PSL) advertia, mesmo antes da eleição do aliado Marquinho a presidente: “Já participei de sete eleições (de Mesas Diretoras) e estou vendo gente (do governo) comemorando antes da hora”.

 

Marcelo Feres, atual secretário de Educação

Mudança na Educação

Das mudanças na Câmara às mudanças no governo, a volta às aulas na rede pública de Campos está marcada para 7 de março. E, segundo garantem fontes do primeiro escalão, não há possibilidade de novo adiamento. Mas após a retomada, que a grande maioria dos pais de alunos considera atrasada, a secretaria de Educação deve mudar de mãos. O nome do novo titular da pasta ainda não está definido, mas não deve ser mais o professor Marcelo Feres. Egresso da rede federal, seu currículo é muito respeitado. Mas a dificuldade de adaptação à realidade municipal pesa na decisão. Que deve ser oficializada até o próximo mês.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Após volta às aulas, mudança na secretaria de Educação

 

Secretaria Municipal de Educação (Foto: Supcom)

 

A volta às aulas na rede pública de Campos está marcada para 7 de março e não há possibilidade de novo adiamento. Após a retomada, que a grande maioria dos pais de alunos considera atrasada, a secretaria de Educação deve mudar de mãos. O nome do novo titular da pasta ainda não está definido, mas não deve ser mais o professor Marcelo Feres. Egresso da rede federal, seu currículo é muito respeitado. Mas a dificuldade de adaptação à realidade municipal pesa na decisão. Que deve ser oficializada até o próximo mês.

 

Morto hoje aos 81, Arnaldo Jabor em vida e obra

 

Arnaldo Jabor (Foto: Valéria Gonçalvez/Estadão)

 

Morreu hoje o cineasta, jornalista e escritor Arnaldo Jabor. Tinha 81 anos e estava internado desde dezembro passado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, após um acidente vascular cerebral (AVC).

Era egresso da segunda geração do Cinema Novo, movimento brasileiro dos anos 1960 e 1970 com base no neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa. Que buscava intrepetar as grandes diferenças socioeconômicas do Brasil numa ruptura com a influência do cinema comercial de Hollywood. Estreou na direção de longas com o documentário “Opinião Pública” (1967), antes de se fixar na ficção, a partir de “Pindorama” (1971).

Foi na adaptação da dramaturgia de Nelson Rodrigues que Jabor alcançou sua maior resposta de público e crítico como cineasta. Com trilha sonora do argentino Astor Piazzolla, “Toda Nudez Será Castigada” (1972) teve grande bilheteria, além de conquistar os Ursos de Prata do Festival de Berlim de filme e atriz — para Darlene Glória, no papel da prostituta Geni. Seguiria na adaptação de Nelson no filme seguinte, “O Casamento” (1975), também bem recebido por crítica e público.

Seu filme seguinte, “Tudo bem” (1978), rendeu à diva Fernanda Montenegro o prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília, em grande desempenho ao lado de Paulo Gracindo. Com o filme, Jabor abriria sua “Trilogia do Apartamento”, baseada em conflitos amorosos e existenciais entre um casal. Que seria completa com “Eu Te Amo” (1980), unindo Sônia Braga e Paulo César Pereio como casal falido pelo “Milagre Econômico” da ditadura militar no Brasil; e “Eu Sei que Vou Te Amar” (1986), já na redemocratização do país.

Nesse último filme, há uma fala que nunca esqueci, por achar que diante dela nenhum homem teria alguma resposta. Protagonista feminina do filme, no meio da discussão acalorada com seu marido vivido por Thales Pan Chacon, Fernanda Torres o ameaça, na interpretação que lhe renderia a Palma de Ouro em Cannes como melhor atriz:

— Vou dar para um homem muito melhor que você. Vou dar pra Tom Jobim!

Jabor migraria do cinema ao jornalismo a partir dos anos 1990, quando o então presidente Fernando Collor de Mello (hoje, senador do Pros por Alagoas) extinguiu a Embrafilme e feriu quase de morte o cinema nacional. Provocador e sem dogmas ideológicos, Jabor estrearia como articulista de O Globo em 1995. Depois, estenderia sua atuação jornalística à rádio CBN, aos jornais Folha de S. Paulo e Estadão. E, na Rede Globo, ao Jornal Nacional, Jornal da Globo, Bom Dia Brasil, Jornal Hoje e Fantástico.

Vindo da esquerda, como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, criticou aquela por ressentimento aos governos deste, quando foi erradicada a inflação hoje de volta ao país. Como questionou os governos petistas de Lula — no qual sempre reconheceu, no entanto, a grande inteligência política — e, sobretudo, ao desastre de Dilma Rousseff. No plano estadual, também sempre foi crítico severo do ex-governador campista Anthony Garotinho (hoje, sem partido), ao qual comparava ao ex-ditador venezuelano Hugo Chávez.

 

Atentado terrorista do fundamentalismo islâmico às Torres Gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001

 

Como articulista, empreendia por vezes criativos diálogos com Nelson Rodrigues, com quem falava através de um imaginário telefone de galalite preto. Do que li, foi de Jabor a melhor definição do mundo ainda estupefato pelos atentados às Torres Gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001. Nele, o descendente de judeus-libaneses educado em colégio de padres viu no ato terrorista do fundamentalismo islâmico do Al-Qaeda um alerta ao Ocidente pós-iluminista. Que, com o filósofo alemão Nietzsche, tinha “matado” Deus no século 19. Naquele início de século 21, o jornalista advertiu ao final do seu texto:

— Deus está vivo. E se chama Alá.

Como escritor, Jabor deixa os livros “Os canibais estão na sala de jantar” (1993), “Sanduíches de Realidade” (1997), “A invasão das Salsichas Gigantes” (2001), “Amor É Prosa, Sexo É Poesia” (2004) — que rendeu música em parceria com Rita Lee —, “Pornopolítica” (2006), “Eu Sei Que Vou Te Amar” (2007), “Amigos Ouvintes” (Editora Globo, 2009) e o “O Malabarista – Os Melhores Textos de Arnaldo Jabor” (2014). Vários deles se tornaram best-sellers, alguns desde o lançamento.

 

 

Jabor ainda voltaria ao cinema com “A Suprema Felicidade” (2010). É uma ficção biográfica da sua própria vida, a partir da perspectiva do filho de um pai oficial da Aeronáutica frustrado por não pilotar jatos, e uma dona de casa cuja alegria de vida vai cedendo às desilusões do casamento infeliz. Tudo ambientado no bucólico bairro carioca da Urca. Se não chegou a ser um grande filme, é um honesto acerto de contas do cineasta consigo mesmo.

Assim como seu assumido mestre Nelson Rodrigues, Jabor foi um crítico mordaz da família burguesa de classe média, da qual ele mesmo era fruto. Nunca foi de fazer concessões, nem veio ao mundo para concorrer a prêmio de simpatia. Como os títulos de vários dos seus filmes e livros indicam, tinha obsessão pelo amor entre mulher e homem. Sem atenuar dessa relação os conflitos. É mais do que se pode dizer da mediocridade reinante — contra a qual apontou o dedo sem dó, mas sempre com compaixão — que deixa para trás.

 

Ícaro Barbosa — Pirica, “um dos protótipos pessoais de Deus”

 

Foram várias as manifestações sentidas após a morte precoce de Marcelo Silva Martins, o icônico Pirica, aos 50 anos, na manhã da última quinta. Entre elas, só fui ver na noite de domingo (13) a do meu próprio filho, o jornalista Ícaro Barbosa, de quem Pirica se tornou amigo e “filho adotivo” nos últimos anos.

Ícaro diz ter crescido em meio às histórias de Pirica, pelo fato deste ter sido meu amigo desde a infância. Entre elas, sempre contei ao meu filho a do primeiro encontro entre os dois. Que relato aqui, antes de passar ao pungente texto do Smart.

Era o início dos anos 2000, quando Christiano, meu irmão e padrinho de Ícaro, nos tinha chamado para vê-lo jogando pelada na quadra de futebol de salão — naquela época, ainda se chama em sua forma portuguesa o futsal de hoje — do Tênis Clube. Fomos e lá estava também Pirica, que gostava de jogar de goleiro, posição que nós dois disputávamos, anos antes, em tantas outras peladas da nossa infância e adolescência comuns.

Ícaro tinha cerca de 2 anos e rápido encheu o saco de ver o futebol dos adultos, preferindo o parquinho infantil ao lado da quadra. Levei ele lá, para se distrair, quando Pirica, no time da cerca, se chegou e ficamos conversando. Após algum tempo de papo, de costas para Ícaro e diante do meu interlocutor, percebi que este ria, olhando por cima do meu ombro, de onde tambem vinham risos.

Tomado pela curiosidade súbita, olhei para trás, para notar Ícaro se divertindo. Não com nenhum brinquedo do parquinho, mas rodando sozinho, até ficar tonto e cair de bunda no chão. Após se refazer, levantava e repetia o pique consigo mesmo, até cair de novo, demonstrando em seus risos de criança o prazer com a sensação de vertigem. Voltei-me novamente a Pirica, quando ele sentenciou, em meio a gargalhadas: “Esse é dos meus!”.

Mesmo com um calafrio me correndo a espinha de pai com a “profecia” — que, graças a Deus, nunca se cumpriu, pelo menos não integralmente —, foi inevitável que eu risse também. Como faziam Ícaro e Pirica na identificação à primeira vista entre ambos, estreitada ao correr dos anos na bela amizade relatada abaixo:

 

Pirica e Ícaro no “escritório” do primeiro, na calçada da Beira Valão (Foto: Fernanda Toledo)

 

Ícaro Barbosa, jornalista (Foto: Facebook)

Pirica, muito estranho para viver e muito raro para morrer

Por Ícaro Barbosa

 

Pirica foi muitas coisas: surfista, radialista, chapeiro, encrenqueiro profissional e vendedor de água. Ele foi o que quis, com um grande coração e sem se preocupar com qualquer julgamento dos ditos “normais”. Tudo isso acabou na última quinta, quando ele foi atropelado e deixado para morrer, abandonado na Salvador Corrêa.

Marcelo Pirica, mais ou menos com a idade que Ícaro tem hoje (Foto: Arquivo Pessoal)

Comecei a ter mais contato com Pirica nos últimos quase dois anos, quando virei seu vizinho. Já o conhecia de vista e através de histórias, por conta da amizade de longa data que Marcelo Silva Martins tinha com meu pai, o jornalista Aluysio Abreu Barbosa. Eu sabia do jeito louco e amigável daquele cara incompreendido… e até me identificava com ele, de certa forma.

Afinidade entre nós dois, o gosto pelo blues e pela cerveja estreitou os laços, a ponto de eu chegar receber o apelido de “Smart” e ser chamado pelo maluco beleza da planície de “irmão” e “filho”.

Frequentemente passava pelo “escritório de Pirica”, aquele trecho final da Beira-Valão que é marcado com colorjet preto nas calçadas, nas muretas e nos arcos com o apelido de Marcelo.

Numa dessas caminhadas, em uma segunda-feira, por volta das 15h, parei e conversei com ele sobre as novidades do mundo do blues. Logo sentei e comecei a mostrar algumas músicas novas para ele. Pirica dançava, acompanhava com atenção e olhos fechados… e com o ouvido afiado ele opinava sobre cada um dos músicos e instrumentos, em cada uma das músicas.

— Gostei disso — disse, se referindo ao headphone conectado no Spotify.

— É a melhor coisa que tem, Pirica… você ouve a música que quiser, de qualquer lugar e a qualquer hora — expliquei.

— Porque você não falou antes, Smart… coloca uma pra mim — pediu, animado com o poder de escolha.

Perguntei qual ele queria e a resposta apressada foi:

— Bota aí “TV Dinners”, do ZZ Top.

A pancada começou no último volume do fone e Pirica entrou em frenesi: balançava a cabeça, tocava uma guitarra imaginária, cantava na calçada do seu escritório e, quando o sinal fechava, estendia o show para a rua — mandando dedo do meio e fazendo caretas para qualquer motorista que por acaso o olhasse meio atravessado.

Quando a música acabou, ele se sentou ao meu lado, na mureta do Valão, de onde eu acompanhava e me divertia com a cena. Pirica, então, devolveu o headphone e voltou a si. Ele falou sério, com os olhos meio marejados, e me deu um abraço: “esse foi o momento mais feliz do meu dia!”, suspirou.

Eu fiquei emocionado com aquilo e resolvi ir numa loja de churrasco das proximidades comprar umas garrafas de cerveja para dividirmos. Ele me acompanhou e conversamos um pouco sobre tudo ao longo do percurso.

Voltamos para o “escritório” e bebemos, assistindo os carros passarem, enquanto no celular tocava The Doors, Eric Clapton, Stevie Ray Vaughan e Barão Vermelho. Quando estava quase acabando a minha segunda garrafa — acompanhando o ritmo pesado de Pirica —, expliquei que tinha que ir embora para fazer algumas coisas em casa.

A gente se despediu e matou o líquido que restava nas garrafas. Pirica enxugou a boca na manga da camisa e sentado, de costas para o valão, arremessou o casco sem se preocupar com o local de aterrissagem. Eu observei, meio incrédulo, a garrafa caindo como bala de morteiro e se estilhaçando no outro lado do declive da Beira Valão. O barulho acabou provocando uma crise de risos em nós dois e chamando a atenção dos transeuntes para a gente… atenção para qual Pirica destinou seu tradicional “FODA-SE”.

Finalmente voltei caminhando pra casa, ainda com um sorriso no canto da boca por causa daquela cena assustadoramente espontânea.

Naquele dia, assim como quando recebi o soco que foi a notícia da sua morte, lembrei de um trecho do livro que estava lendo na época, “Medo e Delírio em Las Vegas”, do jornalista estadunidense Hunter S. Thompson:

“Lá vai ele. Um dos protótipos pessoais de Deus. Uma espécie de mutante de alta potência que nunca foi considerado para fabricação em massa. Muito estranho para viver e muito raro para morrer.”

Numa quinta nebulosa, pensei que nenhuma combinação de palavras ou notas musicais vai ilustrar tão bem o que foi o lendário Pirica. Seja lá o que tenha significado para si mesmo e para todos aqueles tantos campistas que conviveram com ele.

 

Felipe Drumond — Correlação entre armas e criminalidade

 

 

Felipe Drumond, advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processo Penal, e colecionador, atirador e caçador (CAC) registrado no Exército Brasileiro

Aumento de armas lícitas e incremento de criminalidade: uma correlação comprovadamente inexistente

Por Felipe Drumond

 

Desde o início do mandato do atual presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019, a possibilidade de a população civil adquirir armas de fogo tem voltado ao centro do debate. Recentes episódios de apreensão de quantidade relevante de armamento e munições de calibres restritos que, em tese, teriam sido legalmente adquiridas por Colecionador, Atirador e Caçador (CAC) registrado no Exército, para serem desviadas para organizações criminosas aumentaram as tensões a respeito do tema. Some-se a isso a iminência da votação, no Senado, do Projeto de Lei (PL) 3.723/2019, que regulamenta a atividade do tiro desportivo, da caça e do colecionismo e seus respectivos acervos de armas.

O contexto tem sido utilizado para que parte considerável da mídia e entusiastas do desarmamento elevem o tom das críticas clamando por mais restrições. Sustenta-se que (pseudos) estudos demonstram que quanto mais armada estiver a sociedade, maior será a violência, além de terem ganhado corpo as alegações de que armas de acervos particulares, especialmente de CACs, são usadas para abastecer a criminalidade, o que seria ainda mais agravado por supostas políticas de afrouxamento no controle das armas pelo Estado. Nada mais equivocado e carente de qualquer comprovação.

Quando, em 2003, entrou em vigor o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), seus entusiastas defendiam mais restrição e maior controle no comércio de armas e munições para se reduzir os índices de violência. No decorrer da década de 80, o Brasil apresentava uma variação de cerca de 14 mil (1980) a 29 mil (1989) homicídios por ano, dentre os quais não se tinha uma porcentagem maior do que 47% desses delitos praticados com armas de fogo.  Durante a década de 90 e início dos anos 2000 esses números subiram consideravelmente, com um salto do patamar de cerca de 32 mil, em 1990, para mais de 51 mil homicídios em 2003. O porcentual de emprego de armas de fogo nesses crimes também subiu de maneira progressiva, alcançando a marca de 71% em 2003.

Em 2004, já após início da vigência do Estatuto do Desarmamento, os números totais de homicídios praticados com arma de fogo reduziram em cerca de 5%. Era o contexto perfeito para os desarmamentistas afirmarem que se comprovava a tese de que o aumento de armas em circulação, ainda que lícitas, causava elevação dos índices de violência.

No entanto, não se propagava que os homicídios como um todo haviam sido reduzidos em torno de 5% naquele ano, de modo que as mortes provocadas por armas mantinham-se no mesmo patamar de cerca de 70% das ocorrências. Não havia, portanto, diminuição proporcional nessa prática de violência armada, de modo que não se pode ser atribuído nenhum efeito à política de restrição ao comércio de armas.

Embora os desarmamentistas insistam em afirmar que a restrição às armas poupou milhares de vidas e diminuiu a violência, em nenhum período de vigência do Estatuto do Desarmamento isso pode ser verificado. Ao contrário, a média anual de homicídios praticados com arma de fogo entre os anos de 1987 a 2003 é de 59,99%, enquanto entre 2004 a 2020, após a vigência da lei restritiva, a média é de 71,73%, o que representa um aumento nominal de 11,74 pontos porcentuais. Apesar de ter sido extremamente dificultado o acesso às armas de fogo, não houve redução de seu emprego na violência letal.

Após uma escalada crescente no número de homicídios em plena vigência do Estatuto do Desarmamento, em 2018 houve uma marcante redução nesses indicadores, que registraram 55.914 mortes, 12,29% a menos que em 2017, quando ocorreram 63.748 assassinatos. Por outro lado, no mesmo ano houve um aumento considerável nas novas armas de fogo registradas, totalizando 196.733 unidades, 42,4% a mais que em 2017. Provava-se, mais uma vez, a improcedência da tese central dos desarmamentistas: apesar do aumento de 42,4% de armas em circulação, os homicídios foram reduzidos em cerca de 13%.

Em 2019, ano marcante de estabelecimento das políticas de incentivo às armas de fogo do governo federal, novo recorde foi estabelecido na diminuição de homicídios. Naquele período esse número foi reduzido para 44.033, o que representou 21,25% menos mortes, a maior redução registrada em 40 anos.

Os novos registros de utilização de armas de fogo nesses crimes foram ainda mais notáveis. Enquanto em 2018 41.179 homicídios tiveram emprego de arma, 13,33% a menos que em 2017 (47.510), em 2019 foram 30.825 delitos dessa espécie, o que representou uma queda histórica de 25,14%. Desde 1999 não eram registrados homicídios com arma de fogo em patamar tão reduzido.

Por outro lado, o ano de 2019 representou novo recorde no registros de novas armas. De acordo com dados disponibilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2017 e 2019 ocorreu uma elevação de 65,6% nos registros de armas de fogo cadastradas no Sinarm, da Polícia Federal, partindo de 637.972 em 2017 para 1.056.670 em 2019. Apesar disso, os indicadores do Datasus registraram, no período, uma diminuição de 30,93% nos números absolutos de homicídios e de 35,12% nos delitos dessa natureza praticados com armas.

As taxas de homicídio por 100 mil habitantes também têm experimentado reduções históricas, em que pese o aumento vertiginoso das armas lícitas em circulação no país. Após  ter sido registrada a mais alta de taxa de homicídios em 2017, com  30,7/100  mil habitantes, a partir de 2018 esses indicadores passaram a diminuir, com 26,8  homicídios/100 mil habitantes, uma queda de 12,64% em comparação ao ano anterior. Em 2019, houve diminuição ainda mais significativa, que não se alcançava desde os idos de 1993, tendo sido registrada taxa 21,87% menor que em 2018, representando 20,9 homicídios por  100  mil habitantes,  marca repetida  em  2020.

Mas não é só. Tem sido comum a afirmação de que a “facilitação” de acesso às armas representa perigoso instrumento para desvio dos acervos particulares para abastecer a criminalidade. Nesse sentido, são robustecidas as críticas às normas que regem as atividades dos CACs, tendo em vista poderem adquirir, mediante autorização e registro do Exército, quantitativo maior de armas e munições, inclusive modelos semiautomáticos de calibres restrito. Supõe-se, assim, de maneira equivocada, ser corriqueiro CACs adquirirem armas e munições junto à indústria e a lojas do ramo para, posteriormente, repassarem especialmente para organizações criminosas armadas.

Entretanto, tais premissas não se verificam nos dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Do total de armas apreendidas por práticas criminosas, uma parcela ínfima corresponde àquelas registradas no Sigma, sistema vinculado ao Exército Brasileiro, no qual são registrados os armamentos dos CACs e demais produtos controlados. Em 2017, apenas 0,13% das apreensões era de armas registradas no Sigma. Em 2018 essa proporção foi de 0,15%, enquanto, em 2019, mesmo após os sucessivos aumentos exponenciais de novas armas em circulação, foram apenas 0,28% de armas cadastradas no Sigma apreendidas.

Natural seria que os índices de apreensão desses armamentos fossem minimamente robustos se as armas adquiridas por CACs estivessem, de maneira reiterada e volumosa, sendo desviadas para a criminalidade, o que sugere a forçosa conclusão de que não há indicativos concretos de uso relevante dessas armas para abastecimento de criminosos, mas apenas ocorrência de casos isolados sem expressividade global.

É minimamente estranho se supor que o crescimento na aquisição lícita de armas e munições ocorrido a partir de 2018 seja uma preocupante fonte de abastecimento para criminosos. Isso porque o destacado poderio bélico da criminalidade habitual não é novidade no Brasil, sendo certo que há muito tem estado suficientemente abastecida de armas e munições, especialmente em razão da aquisição desses itens por contrabando, mesmo quando de fabricação nacional, uma vez que o armamento aqui produzido não raramente é exportado e, posteriormente, retorna ao Brasil pelas mais distintas vias ilícitas.

É igualmente equivocada a ilação de que as sucessivas modificações por parte do Poder Executivo nas normativas de armas utilizadas pelos CACs têm retirado do Estado um efetivo controle sobre esses produtos. Essa suposição tem sido imprecisamente respaldada, entre outros motivos, no fato de que, em 2020, o Comando Logístico da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército editou as Portarias Colog de números 46, 60 e 61, que tratavam, respectivamente, de procedimentos de rastreamento de produtos controlados, de identificação e marcação de armas de fogo e de marcação de embalagens e cartuchos de munição, e posteriormente as revogou por meio da Portaria Colog nº 62/2020.

A revogação dessas normas não representa afrouxamento na fiscalização de produtos controlados por parte do Exército. Ocorre que as portarias em questão impunham providências para a comercialização de armas e munições que, em última análise, viabilizaria o mercado exclusivamente para a indústria nacional, impondo ainda mais uma prática monopolista que retiraria a possibilidade de concorrência com produtos estrangeiros. Isso levaria, inclusive, à subtração das forças de segurança governamentais da possibilidade de receberem equipamentos de ponta e de maior confiabilidade em relação aos nacionais. Por outro lado, as determinações das normas revogadas não proporcionavam, sob o ponto de vista técnico, controle e rastreabilidade efetivos e inéditos em relação às armas de fogo e munições.

Entretanto, em 15 de setembro de 2021, com a finalidade de suprir a necessidade de mais controle e rastreabilidade, o Exército editou a Portaria Colog nº 213/2021, que aprova normas regulamentadoras de dispositivos de segurança e procedimentos para identificação e marcação de armas de fogo e suas peças, fabricadas no país, exportadas e importadas, e que vigorará a partir do mês de março de 2022.

Com a implementação da atual política de acesso às armas, para além do aumento no número de seus registros, observa-se um incremento considerável nos estabelecimentos de comercialização de produtos e de prestação de serviços relacionados a armas de fogo, bem como nas práticas de tiro esportivo, modalidade absolutamente pacífica, sem intercorrências criminosas e violentas registradas, responsável pela primeira medalha de ouro olímpica para o Brasil, conquistada por Guilherme Paraense na Antuérpia, em 1920. Atualmente são milhares de empregos criados e mantidos em razão das atividades relacionadas às armas, que são responsáveis por expressiva geração de riqueza e movimentação da economia em momento de retração econômica no país e no mundo.

É lamentável se observar que um tema de tão destacada importância esteja, cada vez mais, sendo tratado com base em preferências e paixões políticas pessoais, em detrimento de um debate técnico, voltado para a observação de índices estatísticos isentos dos impactos das armas de fogo na defesa e na segurança da sociedade, além de sua repercussão no mercado de um país desejoso de crescimento econômico.

 

Uma Campos dos Goytacazes na vida de Pirica

 

(Pirica no desenho de Igor Magacho Couto)

 

“Eu não posso causar mal nenhum

A não ser a mim mesmo

A não ser a mim mesmo

A não ser a mim”

(Cazuza)

 

Uma Campos na vida de Pirica

 

“Quem não conhece Pirica, não conhece Campos”. Dada por ele mesmo numa entrevista informal em vídeo ao meu filho, Ícaro, adotado pelo entrevistado, essa era a melhor definição de Marcelo Silva Martins, o Pirica. E da sua exata correlação com a cidade, que amanheceu quinta mais triste com a sua morte precoce, aos 50 anos. Estava no Hospital Ferreira Machado (HFM), para onde fora levado algumas horas antes, após ser atropelado na noite de quarta, na subida da Beira Valão com a Salvador Corrêa, uma das raras da planície que o tinha em alta conta. E baixou “à úmida terra imposta” na manhã de ontem, no Campo da Paz, levando no caixão a bandeira de uma das suas maiores paixões em vida: o Fluminense Football Club.

Nos vários testemunhos que pipocaram após sua morte, alguns foram emblemáticos. Entre eles, o dado pelo amigo comum George Gomes Coutinho, sociólogo, cientista político, professor da UFF-Campos e músico nas horas vagas. Pois Pirica era, sem nenhum favor, um dos maiores conhecedores de blues e rock da cidade. Escreveu George e publiquei no blog Opiniões, ao final do texto para anunciar a morte sentida: “Filho das classes altas campistas, optou por fazer de sua existência algo entre o desbunde e o mais profundo ‘foda-se’ aos tradicionalismos da planície escravista. Ele debochava solenemente dos lambe botas da açucarocracia. Fazia sentido. Era filho legítimo da contracultura”.

Na definição do sociólogo está a de Pirica sobre si. Filho do hoje falecido empresário Maurício Martins, dono da Big 13, ele foi filho também do boom que as malharias tiveram na cidade nos anos 1980. Foi na década em cujo início nos conhecemos, ainda crianças, na colônia de férias do Auxiliadora. E no final da qual estudamos juntos, embora em turmas separadas, no mesmo colégio. Entre uma coisa e outra, teria fim a última ditadura militar brasileira, em 1985. A mesma que, 37 anos depois, alguns afirmam não ter existido. Os mesmos que pregam pela morte de crianças, questionando nelas a aplicação da vacina contra a Covid.

Criança e adolescente, Pirica sorveu da fase áurea das confecções. Como em outro testemunho, dado pessoalmente por outro amigo comum de adolescência, o médico Pedro Ribeiro Gomes: “Ninguém diria que aquele cara desdentado, quando criança, conheceu a Disney”. Pirica conheceu. E optou, na vida adulta, por rir do Mickey Mouse, seus príncipes encantados e Patetas, com a boca escancarada. Mas não cheia de dentes, como a cantada por Raul Seixas. Rir de deboche da vida burguesa, “ouro de tolo” a quem a mastigou, sorveu e cuspiu. Conhecer Pirica era conhecer Campos, tanto pela sua elite, quanto por quem não lhe dá a mínima. Sem nunca perder a capacidade de rir de si mesmo. E de, naturalmente, fazer rir.

Como também testemunhou ontem, em seu velório, o radialista Ricardo Salgado: “Pirica era a essência do bom humor; um humor infantil, um humor doce. Ele disse não à riqueza da família dele, mas não de uma maneira marginalizada. Ele foi viver a vida, foi curtir a vida. E curtiu a vida, em toda sua essência, à maneira dele. Era uma ótima pessoa. Quem não conheceu Pirica, não conheceu a essência do campista. Pirica era bem-humorado, Pirica era politizado, Pirica conhecia muito bem as coisas de Campos. Vai deixar um espaço muito grande no meio underground, no meio do rock, do blues. A juventude de Campos perdeu, talvez, um dos maiores bon vivants da nossa geração”.

Do tempo dos lados B dos discos, dos quais conhecia de cabeça todos os músicos de qualquer gravação de rock ou blues, Pirica nunca ignorou que há a outra face em qualquer moeda. Na contabilidade das suas, outro amigo comum, o empresário Pedro Vianna também deu seu testemunho. Marcado pela bifurcação entre a sua própria vida e a breve de Pirica: “Tinha uma personalidade sempre controversa desde novo. Como Eu, foi buscar no mundo das drogas uma fuga para o não enfrentamento de questões que não vêm ao caso agora externar. Sete de dezembro de 2000, no churrasquinho do Sangue Bom, por volta das 3h da manhã, foi o meu último diálogo com Ele. Dali, Eu saí para busca de uma nova forma de viver e Ele infelizmente não se permitiu a mesma oportunidade”.

Na dúvida, como numa letra de blues, ficam os versos da “cantiga” de Dante Milano: “A vida é tempo perdido./ O que se ganha é bem pouco./ Que vale ao morto o vivido?/ Que vale ao vivo, tampouco?”. Cerca de duas décadas atrás, lembro de os ter repetido a Pirica, numa madrugada ébria daquelas conversas sobre tudo. Na afluência de alma entre os rios Paraíba do Sul e Mississipi, foi no Bar do Afrânio, pé sujo mais tradicional de uma planície deltaica. Bem perto de onde seu frequentador mais assíduo seria colhido por um carro e pela vida, após quedar sozinho no meio da rua e de uma outra noite, tantos anos depois.

Também lembro que, com o fundo de uma música brega que tocava no jukebox do Afrânio, Pirica protestou aos versos. E, com seus inconfundíveis dois dedos entre a boca e o bigode, ecoou em sua voz rouca de bluseiro a resposta às indagações do grande poeta modernista brasileiro: “A minha vida valeu!”.

Pirica não morreu. Desaguou no Paraíba para encontrar Neivaldo na foz.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.